Nei Lopes e a matriz africana em vários tempos

Por Uelinton Farias Alves*

Mantendo a linha das fortes narrativas baseadas na africanidade e seus temas correlatos, Nei Lopes reaparece na cena literária com um novo romance que volta a remexer no intricado universo de histórias de vidas repletas de conflitos e emoções, anseios e desejos, sob o foco das questões raciais, com base no tráfico transatlântico e na centenária escravidão brasileira e de além-mar.

Como em seus trabalhos anteriores — a exemplo de “Mandingas da mulata velha na Cidade Nova” (2009), sobre a legendária Praça Onze, e da epopeia “Oiobomé” (2010), rapsódia sobre a história do fictício país fundado no fim do século XVIII pelo ex-escravo Domingo Vieira dos Santos —, “Esta árvore dourada que supomos”, recém-lançado pela editora portuguesa Babel, instalada no Brasil, também vai ao encontro de raízes, ancestralidades e mistérios afro-históricos.

Neste livro, Nei Lopes transporta a ação do romance para vários planos do tempo, dentro e fora do Brasil, de Gana e de uma Buenos Aires cheia de “negros e macumbeiros”, como revela uma de suas personagens. Neste caso, o fenômeno do tempo — como ensina a sábia epígrafe do sacerdote católico ruandês Aléxis Kagame, citada na abertura da obra — se materializa em duas dimensões distintas: a que compreende todos os fatos que estão prontos para ocorrer, que estão ocorrendo ou que acabam de ocorrer; e a dos acontecimentos já passados, que ligam o início das coisas ao momento presente.

Autor de sambas de sucessos, como “Senhora liberdade”, em parceria com Wilson Moreira (“Abre as asas sobre mim/ Oh senhora liberdade”), Nei Lopes há pelo menos duas décadas se dedica com incansável afinco à pesquisa histórica de matriz africana e à literatura. Talvez seja, nos dias de hoje, entre nós, o escritor afrodescendente, para usar um termo corrente, com o maior e mais variado número de obras publicadas sobre temas da diáspora africana, incluindo, entre outros, poesias, contos, dicionários e enciclopédias.

Neste novo romance, cujo título foi retirado do inspirado verso de um conhecido soneto do poeta santista Vicente de Carvalho (1866-1924), o autor traça a história e a trajetória da família Vagner Adriano-Maura Rivera, e vai do Caribe do século XVIII aos nossos dias, passando pela Bahia de Todos os Santos e pela cidade do Rio de Janeiro, usando recursos de >ita<flashback em situações de conflitos raciais, em discussões sobre crenças religiosas e, ainda, em abordagens e fundamentações sobre a busca de cura da anemia falciforme na população negra no mundo.
Além disso, o livro traz também ao leitor a saga do escravo e revolucionário Jeb Fowler, que, depois de lutar na guerra dos Marrons na Jamaica, acaba chegando à Bahia, onde seduz uma freira branca, que engravida e é por isso queimada na fogueira da Inquisição, sob a acusação de ter um caráter “demoníaco”.

Entremeando histórias reais com a ficcional, formato recorrente em muitas de suas obras, Nei Lopes, já ganhador do prêmio Jabuti, trabalha sua narrativa também sob uma linha cronológica dos fatos, deixando a leitura de “Esta árvore dourada que supomos” bastante atraente e mesmo, em certas passagens, bem prazerosa.

Nasce desse movimento uma série de possibilidades. Na orelha do livro, Joel Rufino dos Santos diz que o romance é de um tempo “cósmico”, revelando dois de seus ingredientes básicos: o som e o gosto da prosa lopesiana. Na verdade, Nei Lopes é uma espécie de Lima Barreto do Irajá, enquanto o escritor carioca de “Triste fim de Policarpo Quaresma” e de “Clara dos Anjos” era do Engenho Novo.

Ambos primam pelo detalhismo urbano, com o culto dos costumes e do jeito de ser suburbano, mas com a distância estilística de fato e de direito que une e separa esses os escritores. Embora a aproximação dos “sujeitos”, do alter ego em si, do eixo propulsor do fazer literário — ou seja, a premissa da matéria que transporta as ações do dia a dia para a página da ficção — seja uma constante em um e outro.

Daí é que surge algo que vem tornando a literatura produzida por Nei Lopes, com perdão aos nossos mestres das letras, uma necessidade cada vez mais desejada e esperada. Ele evolui a cada novo trabalho, que nos chega numa velocidade impressionante e em grande estilo. Basta saber se, ao mesmo tempo em que ocupa as vitrines das livrarias a cada ano, conseguirá manter a qualidade da fabulação que tanto busca.


*UELINTON FARIAS ALVES é jornalista e escritor, autor da biografia “Cruz e Sousa: Dante Negro do Brasil” (Pallas Editora, 2008), entre outros livros.

http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/

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