‘O indígena não é coisa do passado, ele é um projeto de futuro’. Entrevista especial com Abraham Colque

“A princípio, uma criança indígena rural pode ouvir: ‘Que queres ser no futuro?’ E, então, pode responder: ‘Eu quero ser presidente da Bolívia’. Isto é sumamente importante quando sabemos que há uns 30 anos a população indígena não podia aspirar a qualquer coisa porque era excluído de possibilidades”, é o que aponta Abraham Colque. O teólogo concedeu esta entrevista à IHU On-Line a partir de Dacar, quando participou do Fórum Social Mundial.

A identidade do indígena, seja no contexto da realidade boliviana, latino-americana ou global, além da ideia da Terra Madre e do Bem-viver comos projeto de futuro para a sociedade atual são ideias refletidas pelo teólogo. “Hoje a situação mudou, e acredito que se trata de uma das mudanças mais importantes. Um indígena, onde quer que tenha nascido, pode querer ser presidente, pode ter formação acadêmica, pode abrir uma empresa, pode ter participação política. E isto é muito valioso”, declarou.

Abraham Colque é formado em Teologia pela Universidad Bíblica Latinoamericana da Costa Rica e mestre pela Universidad Libre de Amsterdam (Holanda). É reitor do Instituto Superior Ecumênico Andino de Teologia – ISEAT (La Paz/Bolívia) e Secretário Executivo da Comunidad de Educación Teológica Ecuménica Latinoamericana y Caribeña – CETELA. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é, em sua compreensão, o significado de assumir a identidade indígena no contexto boliviano, latino-americano e mundial?

Abraham Colque – O conceito é recente e tem a ver com um projeto político. É uma afirmação de um coletivo de pessoas que se reconhecem como iguais, antes de tudo, mas que também se reconhecem como pessoas e como coletividade que foi oprimida e excluída de sua participação nos governos e nas decisões de suas vidas. Então, buscam elementos comuns, que não é o idioma. O idioma pode marcar um território, por exemplo, os aimará, na Bolívia, são dois milhões de pessoas. Então, ou buscam outros elementos, que pode ser a territorialidade nos povos indígenas do Amazonas, um território, um lugar que marcam a presença de nossos ancestrais. Ou ainda buscam uma vestimenta e, então, falam diferentes idiomas, mas têm um indumentário em comum. E mais, podem acrescentar certas práticas e crenças, como, por exemplo, chamam-nos indígenas andinos porque somos crentes e temos uma relação com a Pacha Mama. E indígenas andinos existem os da Bolívia, os do norte do Chile, os do Peru, os do sul do Equador, os do sul da Venezuela… Todas estas regiões andinas têm uma certa crença que está ligada à relação com a Madre Tierra.

IHU On-Line – Como você entende que esta mais recente articulação sociopolítica e sociocultural dos povos indígenas repercute em nível internacional? O que há de positivo, o que há de uma possível instrumentalização ideológica ou política? E qual a importância disso?

Abraham Colque – O perigo de afirmar com demasiada força as identidades indígenas, o específico, o perigo é que pode tender a quebrar uma sociedade, a criar certas autoexclusões, gerando afirmações como: “nós temos este território, esta identidade; tu não pertences a este lugar, somente nós”. Então isso pode fragmentar um coletivo social que vem sendo construído em nossos países da América Latina durante estes dois séculos de independência.

Mas, por outro lado, a potencialidade é que, de pouco a pouco, os povos indígenas, pelo fato de lutar contra seus governos e seus Estados, têm compreendido que não apenas é uma luta contra um setor poderoso do país, mas que o setor poderoso tem suas ramas e seu centro em outro lugar. Então, por isso, é importante que haja esses processos de articulação, pois os problemas que vivem os indígenas são globais. Se há contaminação do meio ambiente, então todos são afetados. E os indígenas que ainda continuam sendo povos que vivem em seus setores muito críticos e vulneráveis são os primeiros que têm que dar o alerta, pois estão sofrendo as consequências da mudança climática de forma mais direta.

Nesse sentido, é importante esta articulação, porque são como a consciência, como a voz das vítimas desse processo mundial, dessa ordem mundial. Por isso é que sua articulação pode ter muito mais efetividade, porque é uma voz também mundial e é um alarme à sociedade global. Então, acredito que existem perigos, mas sua articulação é um potencial muito grande, como agora está acontecendo com as vozes que vêm daqui, dos fóruns e de outras instâncias.

IHU On-Line – Observam-se pesquisadores, instituições, movimentos se referindo seguidamente aos povos indígenas, à articulação, à organização dos indígenas, à sabedoria dos indígenas. Como você vê isso?

Abraham Colque – Parece-me muito importante e muito positivo. Para mim o indígena não é coisa do passado: ele é um projeto de futuro, é algo que se tem de ir construindo.

IHU On-Line – Na abertura do Fórum Social Mundial, em Dacar, nós ouvimos o discurso de Evo Morales, muito apaixonado, muito empolgado em sua fala. Que avaliação você faz da presença do presidente da Bolívia no evento?

Abraham Colque – Evo é um símbolo como pessoa, mas também como representante dos povos indígenas. Acredito que é muito importante a palavra e o testemunho de Evo, porque ele tem propostas e as leva adiante como governante. Ainda quando ele fica sozinho diante de uma defesa, acredito que há uma voz do povo indígena que se expressa e é apoiada pelo Estado boliviano através de sua voz. Isto é muito bom.

Outra coisa que valorizo muito é a articulação do mundo indígena com os outros setores de movimentos sociais, de organizações dos sem terra, organizações europeias, americanas, alternativas, asiáticas, africanas… Acredito que essa rede é importante. Não é apenas o problema do mundo, não é somente dos povos indígenas. Muitos questionam a constante presença de Evo nesse tipo de evento e evocam a pergunta: Como está a Bolívia? A resposta é que a Bolívia está lutando para seguir. O problema atribuído ao presidente Evo Morales é que ele é muito focado no discurso e, às vezes, em nosso país há muito por fazer. Assim é um compromisso também quando Evo vem e diz que defender a Madre Tierra é um compromisso para ele. Ainda assim, é bom que ele fale, porque vamos exigir dele na Bolívia que honre com o que prometeu.

IHU On-Line – É recente na história da América Latina termos presidentes de origem indígena como Evo Morales, Hugo Chávez e Rafael Correa. Qual é o significado político, histórico, cultural deste novo dado político?

Abraham Colque – A princípio, uma criança indígena rural pode ouvir: “Que queres ser no futuro?” E, então, ele pode responder: “Eu quero ser presidente da Bolívia”. Isto é sumamente importante quando sabemos que há uns 30 anos a população indígena não podia aspirar a qualquer coisa e era excluído de possibilidades de profissões, ser doutor, ingressar na universidade.

Hoje a situação mudou, e acredito que se trata de uma das mudanças mais importantes. Um indígena, onde quer que tenha nascido, pode querer ser presidente, pode ter formação acadêmica, pode abrir uma empresa, pode ter participação política. E isto é muito valioso.

IHU On-Line – Nas oficinas realizadas no Fórum Social Mundial se falou muito da filosofia e da proposta ética do bem-viver, e que está presente também na constituição boliviana. Quais os desafios e possibilidades de isso se impor como uma possibilidade não só para o povo indígena, mas para a humanidade neste momento de crise ambiental e de crise civilizatória?

Abraham Colque – Acredito que a proposta do bem-viver, que também é uma construção discursiva, tem muito alcance, muita energia e como projeto de futuro de sociedade é sumamente positivo, porque se contrastam o exercer a modernidade no ocidente e construir essa sociedade que busca sempre viver melhor, mas o melhor sempre às custas de outros. Então, bem-viver significa que está se vivendo bem “em relação com”. É sempre um coletivo. Assim, parece-me importante esta discussão.

O bem-viver é uma alternativa, é um novo modelo, um novo paradigma de desenvolvimento entre convivas, mas tem que ter bases concretas na realidade. Tem de nos levar a mudanças concretas. As pessoas têm que sentir isso, e se nós não dermos passos a favor deste viver bem o discurso pode se perder.

IHU On-Line – Desde suas experiências como teólogo, cristão, indígena, como você percebe que se dá a aproximação e convivência da fé cristã com as tradições culturais e religiosas dos povos indígenas? Quais os desafios a enfrentar?

Abraham Colque – A princípio, se alguém vê o censo da Bolívia, por exemplo, percebe que 98% da população se diz crente e 96% se diz cristã. Mais de 70% da população boliviana é indígena e supõe-se que é indígena cristã. No entanto, neste tempo e nesta conjuntura, há partido em vários grupos. Por exemplo, um grupo indígena que começa a ver o cristianismo como algo oposto. A afirmação da identidade indígena tem a ver com a descolonização e com a crítica a um tipo de cristianismo que se impõe aqui desde a colônia. Então suas afirmações religiosas, suas afirmações espirituais, suas afirmações políticas têm que estar em confrontação com o cristão.

O cristão tem outra cara, é visto como opressor e colonialista. Que haja, portanto, uma reflexão crítica de sua própria religiosidade. Nós que trabalhamos com boa parte da população católica e evangélica boliviana apenas colocamos que no mundo indígena que é possível viver de uma maneira coerente a identidade indígena, mas também a opção cristã. Porque nós trabalhamos na vertente da opção cristã da libertação. Não nos identificamos muito com estas estruturas hierárquicas eclesiais que, em muitos casos, são antitestemunho da sociedade. Por exemplo, na Bolívia, neste momento, as mulheres têm 50% de participação no parlamento e na assembleia, têm uma participação muito alta nos ministérios, mas nas igrejas a participação das mulheres é pequena. As igrejas não são um modelo, não são algo a seguir, estão como um fardo, algo que se tem de carregar.

Eu acredito que é possível articular e viver de maneira coerente a identidade indígena, porque, por exemplo, as feministas e muitos movimentos alternativos estão buscando uma compreensão diferente de Deus, não mais em Deus pai… Então alguns indígenas desenvolvem sua espiritualidade com Pacha Mama. Entendem a mãe como uma mulher geradora de vida, a fonte de onde vem a vida é a tradução correta, portanto. E é claro que se deve questionar o patriarcalismo que vem destas correntes indígenas e do cristianismo. Nós estamos tentando em nosso trabalho ajudar na reflexão teológica nos dois caminhos. Tanto no caminho de desconstrução de um cristianismo que recebemos, como também num caminho crítico a respeito de nossa espiritualidade indígena.

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