O documentário Lixo extraordinário oferece ao público oportuna lição de solidariedade e transcendência. O artista Vik Muniz e o catador Tião Santos têm muito a ensinar ao Brasil
Inez Lemos
O filme Lixo extraordinário narra a trajetória do artista plástico Vik Muniz entre os catadores do aterro de Jardim Gramacho, em Duque de Caxias (RJ). Muniz resolve pintar a vida dos trabalhadores do lixão – personagens de um cotidiano entre urubus e a sujeira que os urbanos industrializados produzem e descartam, sem sequer se dar ao trabalho de separá-la. O documentário nos fala de uma outra vertente da felicidade, pois saímos do cinema com uma inveja danada de Vik Muniz e de Sebastião Carlos dos Santos, o Tião, presidente da Associação dos Catadores do Jardim Gramacho. Não digo isso apenas pelo sucesso do filme, prêmios e indicação ao Oscar, mas pela emoção de algumas cenas, como o abraço sincero, comovido e pleno de gratidão que Tião dá em Vik depois do leilão de uma das obras. Esse abraço metaforiza o momento de suprema felicidade, a aliança com o outro que possibilitou o instante em que, emocionados, ambos expressem alegria pela parceria que ultrapassa a marginalidade e se consolida no reconhecimento. A alegria dos catadores chega sob luzes e holofotes, tal como sonham as garotas candidatas a modelo e artista. Alegria gestada entre mosquitos e pobreza, frustrações e humilhações. O laço social foi moldado no sofrimento – emergiu de um trabalho de parceria, cooperação e amizade.
Não é nada agradável trabalhar na fedentina do lixo. Entretanto, a tristeza se transforma quando analisada na plenitude, sem descartar sentimentos e angústias de seus atores sociais – quando incluímos no olhar a dimensão humana que cerca a vida desses trabalhadores. Vik Muniz reverteu lixo em arte, sujeira em brilho, dor em alegria, desesperança em felicidade. Captou a história que cochilava entre vísceras, restos e dejetos que jogamos fora – resíduos que dispensamos sem ciência e consciência. Como cuidar da podridão que descartamos se recusamos saber sobre o lixo nosso de cada dia?
Sonhamos apenas com o brilho do sucesso, mesmo que ele se sustente na infelicidade do outro, no fracasso e na vergonha. A sociedade produz gente que se sente fracassada e infeliz. Muniz e Tião são personagens do enredo de uma felicidade engendrada na lama que cerca todos nós. Juntos, tiraram os trabalhadores da escuridão do ostracismo. Mergulharam na esperança de conquistar o mundo exibindo a porcariada que a humanidade produz. Da lama fez-se o ouro. A felicidade deixou de ser ilusão, orquestrada na interioridade e nos acordes da transcendência. Vik Muniz transcendeu o feio, atravessou o fedor e atingiu a beleza das entranhas, almas que padeciam entre urubus.
O projeto de felicidade delineado na modernidade se tornou um bem subjetivo, capital psicológico. O novo sujeito circula livre das tradições – a trajetória existencial é marcada mais por escolhas individuais e autônomas que pelo repertório de cunho social e filiações. Onde se encontra a chave desse estado que muitos perseguem com avidez? Há o caminho seguro que garantirá ao indivíduo a suprema felicidade, como apregoam as biotecnologias? Como conquistar a imposição ferrenha de felicidade num mundo que nos oferece múltiplas opções e, ao mesmo tempo, acena com um rol de exigências e modelos de vida feliz? Como nos desvencilharmos da ordem de felicidade como dever e não como aspiração, projeto que associa vida pessoal e social – indivíduo e comunidade? Qual a origem do individualismo como gestor da felicidade contemporânea?
A modernidade, ao colocar em cena o hedonismo, desloca o conceito de felicidade para o registro do corpo e entra em conflito com o cristianismo, que apregoa a felicidade por meio da purificação da carne e da salvação da alma – verdadeira comunhão com Deus. O corpo vai ocupar o lugar primordial, agora não basta apenas pedir a Deus nossas aspirações e desejos, temos que buscá-los no real do corpo. Em decorrência dessas transformações, Nietzsche teceu sua crítica ao cristianismo: “Deus está morto”. Agora, a obtenção do prazer e evitar o desprazer se tornam critérios para atingir a suprema felicidade.
A hipótese de que a felicidade é um bem subjetivo, capital passível de ser investido e acumulado materialmente, torna-se aterrorizante e perturbadora. A profecia nietzschiana metaforiza a dissociação do mundo com a transcendência. A morte da ordem simbólica marca o advento do individualismo desgarrado de narrativas que orientavam a existência social – significantes que vetorizavam o certo e o errado, o adequado e o inadequado, o direito e o dever. O sujeito da atualidade, livre das interdições, é instado a agir segundo suas convicções. De forma autônoma, busca o máximo das fruições e dos prazeres da vida. O que antes era reivindicação e meta a ser conquistada se tornou imperativo. Todos perseguem, sob os mesmos parâmetros, o mesmo estilo de vida – ideal de felicidade iniciado com o racionalismo científico e aprofundado pela biotecnologia.
Que felicidade, se o homem, desamparado, não conta mais com a providência divina? A experiência de felicidade não é mais financiada por Deus. Com a racionalização burocrática das instituições e com o discurso da ciência orientando as práticas sociais, dá-se o controle da vida cotidiana, sobretudo quando a imprevisibilidade e o acaso são banidos. Agora tudo é passível de ser avaliado, controlado e previsível. Viver se tornou um grande plano de metas. Sobre os indivíduos recai a responsabilidade das ações.
A vida humana se torna questão de cálculo e estratégia, incrementa-se o poder dos indivíduos sobre a natureza. Surge a ideia de perfectibilidade e a felicidade é forjada no espaço social, mediada por estratégias de discurso numa articulação entre poder, política e ciência. A construção de um projeto de felicidade se caracteriza, desde então, pelo culto ao individualismo. É quando assistimos à desconstrução das práticas sociais nos espaços públicos. Com a emergência do “homem privatizado”, o cidadão narcísico da sociedade neoliberal dissemina o ethos que vai fundar o discurso sobre a felicidade. Atualmente, ser feliz é viver livre das amarras religiosas e seguindo padrões estabelecidos pelo mercado, com total autonomia para ocupar e privatizar os espaços geográficos e humanos. Salve-se quem puder! É a ética a reboque da tecnociência.
O indivíduo moderno, ao não contar mais com a proteção divina, tampouco com o Estado, muitas vezes se desespera. Sozinho, trava a batalha diária pela sobrevivência. Deprime-se, distante da concepção de solidariedade, amizade, e desamparado diante de tragédias. A cultura narcísica se assegura ao disseminar o eu ideal. Cria-se, primeiro, um padrão de eu que vai predominar, garantindo o modelo de felicidade centrado no individualismo e no consumismo, enquanto o outro é excluído, assim como qualquer imperativo de ética e alteridade. O sujeito é forjado sem se interrogar sobre suas convicções – interesses que transcendem o modelo vigente. Desprovido da dimensão simbólica, ele se vê como o único responsável pela sua felicidade.
Se não há felicidade possível senão sob luzes e holofotes, como sobreviver ao medo, ao pânico pela não conquista do sucesso? Como controlar a ansiedade e nos desviarmos do tédio e do desencantamento pelo mundo frívolo, desprovido de transcendência e simbologia? Como escapar do deserto – opressão por uma vida sem sentido, forjada no repertório do eu sozinho? A felicidade é uma ideia, uma narrativa, o sonho que projetaram para nós e acabamos aceitando. Embora, muitas vezes, o modificamos e o ampliamos. Importa que o desejo esteja realmente ajustado à crença de que ali reside a salvação. Qual felicidade, a que nos deixa pressionados e estressados na competição pela busca da boa imagem?
A música que nos encanta é composta em conjunto, cantada em parceria e harmonizada no coletivo. Diferente da minimalista, refúgio dos solitários. O samba do eu mínimo é um samba sem paixão, sem sangue e emoção. Diferente do abraço que Tião deu em Vik Muniz por ter transformado feiura em beleza! Aterro sanitário é feio, depósito de sucatas e dejetos. Mas feios também são a arrogância, o excesso de narcisismo. É acreditar que seremos felizes sozinhos. No mundo dos sentimentos, há os nobres e os vulgares. Dizem que a inveja pertence aos vulgares. Mas, quando somos tocados em nossa vaidade, no orgulho de sermos reconhecidos e elogiados, geralmente produzimos algo de bom.
Lixo extraordinário, além de ser uma aula de sociologia, questiona o narcisismo. Provoca o desejo de abandonar o individualismo e de experimentar a felicidade engendrada no outro.
Inez Lemos é psicanalista. E-mail: [email protected]
ESTADO DE MINAS, 25-2-2011 – Caderno Pensar