O relatório organizado pela Coordenação Geral de Avaliação de Substâncias Químicas da Diretoria de Qualidade Ambiental do Ibama é categórico: todos os defensivos agrícolas são tóxicos e o grau de toxicologia varia de I a V. O documento “não traz uma informações novas do ponto de vista dos órgãos reguladores, mas a novidade de torná-las públicas para os usuários e interessados”, esclarece Márcio de Freitas. Segundo ele, a intenção é divulgar os dados toxicológicos dos defensivos agrícolas anualmente para avaliar a evolução desses produtos e “ter um retrato anual de como está a comercialização dos agrotóxicos no país”.
De acordo com Freitas, além da toxidade, o maior problema enfrentado no Brasil diz respeito “à educação para o uso”. Da mesma forma que há automedicação, explica, “há uma autodeterminação do agricultor em utilizar os produtos e não observar as questões do ponto de vista técnico”.
Em entrevista concedida à IHU On-Line por telefone, Freitas argumenta que o fato de “o Brasil galgar o primeiro lugar no uso de agrotóxicos” tem relação direta com o crescimento da agricultura no país. “Há essa associação na medida em que o país expande a sua lavoura, principalmente do ponto de vista da agricultura intensiva, da monocultura e da produção em larga escala”.
Na opinião dele, o uso de agrotóxicos na agricultura é inevitável, já que este é o modelo adotado em todo o mundo. O desafio, entretanto, é “propor uma alternativa com produtos menos tóxicos e impactantes à saúde e ao meio ambiente, além de pesquisar alternativas de combate às pragas agrícolas especificas”. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que perigos o Ibama evidenciou no relatório sobre os defensivos agrícolas?
Márcio de Freitas – O Ibama é um dos três órgãos que faz a avaliação para o registro de agrotóxicos no Brasil. A avaliação é feita a partir da classificação do grau de periculosidade, o qual está vinculado às características que o agrotóxico tem quando é lançado no meio ambiente. São avaliados 19 parâmetros, que entram em um modelo matemático o qual gera, posteriormente, a classificação em graus de periculosidade em classes I, II, III e IV, além de uma classe V, que é impeditiva de registro. Cada grau de periculosidade está associado a uma característica ambiental.
IHU On-Line – Que diagnóstico o senhor faz dos defensivos agrícolas utilizados no Brasil? Se são perigosos, o que sustenta a comercialização?
Márcio de Freitas – Em primeiro lugar, temos de entender que estamos lidando com produtos tóxicos, venenos utilizados para combater pragas e são perigosos por natureza. Não existe um agrotóxico que não seja perigoso; esse é um dado científico. Alguns deles, inclusive, são utilizados para suicídios. Todos que usam esses produtos sabem que estão lidando com um veneno.
A classificação do Ibama leva em consideração o comportamento ambiental do produto. Então, se um produto é venenoso e persiste no meio ambiente por mais tempo que outro, ele será mais perigoso; se ele é acumulativo na cadeia alimentar, será mais perigoso. O que o Ibama faz é alertar para o grau de periculosidade do ponto de vista ambiental, classificando-o como muito perigoso, altamente perigoso, perigoso e pouco perigoso. Se, além de perigoso, o produto tiver algumas características que a legislação prevê como, por exemplo, ser mutagênico, então, ele será impeditivo de registro. Existem alguns produtos que não tiveram o registro autorizado em função do grau de periculosidade. Não é o Ibama que classifica o produto e, sim, a característica físico-química do produto e ecotoxicologia, ou seja, o quanto o produto é tóxico para o meio ambiente.
IHU On-Line – A partir do relatório sobre a comercialização de agrotóxicos no país lançado pelo Ibama, quais são as preocupações e desafios em relação à produção e consumo de defensivos agrícolas?
Márcio de Freitas – Esse relatório existe em função de uma previsão legal, prevista no artigo 41 da lei de 1989. O Ibama recebe e processa esses dados há algum tempo e resolveu publicá-los simplesmente para tornar pública uma informação relativa a regulação dos agrotóxicos no país. A intenção é fazer essa publicação anualmente para se ter condição de avaliar a evolução desses produtos e disponibilizar esses dados para a academia, os produtores, os governos estaduais e todos os interessados. Será possível ter um retrato anual de como está a comercialização dos agrotóxicos no país, mas também será possível acompanhar a tendência de evolução. Poderemos avaliar se há uma tendência do mercado de consumir produtos mais ou menos perigosos, se eles estão concentrados em algumas culturas ou estados.
O relatório não traz uma informação nova do ponto de vista dos órgãos reguladores, mas a novidade de torná-las públicas para os usuários e interessados.
IHU On-Line – Em 14 de janeiro de 2011, o ativo metamidofós foi banido do país e, atualmente, o acefato está passando por um processo de reavaliação. Quais os riscos desse defensivo agrícola?
Márcio de Freitas – Ele está sendo reavaliado porque há suspeita de que seja um produto mutagênico, por isso a Anvisa solicitou a reavaliação. A instituição contratou o Instituto Oswaldo Cruz para fazer a avaliação. Depois, os três órgãos (Ibama, Anvisa e Ministério da Agricultura) irão se debruçar sobre os novos estudos e irão concluir as medidas a serem adotadas.
É importante entender que os produtos são avaliados e registrados a partir desta avaliação conjunta feita pelos três órgãos: Anvisa, Ibama e Ministério da Agricultura. A Anvisa avalia as questões de toxicologia humana; o Ibama, de toxicologia ambiental; e o Ministério da Agricultura avalia a eficácia do produto para aquilo que ele se propõe, ou seja, combater pragas. Então, as três avaliações sendo autorizativas, o produto recebe autorização para ser utilizado no Brasil.
Depois de registrado, por alguma motivação extraordinária – por exemplo, uma nova pesquisa, um trabalho publicado que revele características que durante o processo de avaliação não foram identificadas –, pode-se motivar uma reavaliação, que é o que está acontecendo com o acefato e aconteceu com o metamidofós. Se um produto é proibido na Europa, nós avaliamos os estudos e colocamos o produto em reavaliação no Brasil para decidir se tal proibição faz sentido no país. Esse é um processo normal.
IHU On-Line – Como se dá a relação entre os órgãos responsáveis ao analisar as implicações do uso de agrotóxicos? Há divergências?
Márcio de Freitas – Quando uma determinada empresa quer registrar um produto no Brasil, ela entra simultaneamente nos três órgãos, os quais avaliarão de acordo com a sua peculiaridade. A lei atribui a cada um deles um papel distinto. Existe um comitê técnico de assessoramento que faz a compatibilização e a discussão interna entre os três órgãos. Essa comissão reúne os três órgãos responsáveis pelo registro e, quando há questões polêmicas de divergência, elas são dirimidas nesta instância. Não havendo consenso, são remetidas aos ministérios correspondentes e os ministros discutem a questão.
No caso de o produto ser agrícola, quem emite o registro é o Ministério da Agricultura. Quando um produto é utilizado em ferrovia, por exemplo, ou em floresta nativa, quem avalia e emite o registro é o Ibama. No caso dos domissanitários, utilizados nas residências, são autorizados pela Anvisa. Essa divisão é estabelecida pela lei e os procedimentos estão normatizados, norteando a atuação dos três órgãos.
É importante lembrar que a lei de agrotóxicos é de 1989 e existe o decreto de 2004, além de outras legislações que estão sendo aperfeiçoadas. Esse processo já é bastante antigo no Brasil. Tanto as empresas registradas quanto os órgãos envolvidos no registro já atuam há mais de 20 anos.
IHU On-Line – Em 2008, o Brasil se tornou o maior consumidor de agrotóxicos agrícolas. Que fatores justificam o aumento do uso de agrotóxicos nas lavouras brasileiras?
Márcio de Freitas – Desde os anos 2000, o Brasil está classificado entre os seis maiores consumidores de agrotóxicos. Diria que o fato de o Brasil galgar o primeiro lugar tem relação direta com o crescimento da agricultura no país. Ao mesmo tempo em que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos, é um dos maiores produtores agrícolas do mundo. Há essa associação na medida em que o país expande a sua lavoura, principalmente do ponto de vista da agricultura intensiva, da monocultura e da produção em larga escala.
O grande desafio dos órgãos agrícolas é acompanhar o desenvolvimento da agricultura e contribuir para que o país tenha uma agricultura menos impactante do ponto de vista ambiental, de saúde pública e adequada às pragas nacionais. É importante lembrar que, do ponto de vista agronômico, o Brasil tem particularidades em relação aos demais países. O Brasil, dentre os produtores de alimentos, é o que detém a maior biodiversidade do planeta. Portanto, temos de ter responsabilidade em preservar essa biodiversidade, responsável pela produtividade agrícola. O meio ambiente sustenta todo o desenvolvimento econômico. Não há desenvolvimento econômico sem um meio ambiente sadio. Se os solos estiverem esgotados, a biodiversidade reduzida, perderemos polinizadores e uma série de características que o país tem e que o levam a ser um grande produtor de alimentos. Às vezes as pessoas pensam que o meio ambiente é uma oposição ao desenvolvimento econômico, quando, na verdade, ele é a base do crescimento econômico. Não existe nenhuma produção econômica que não dependa do meio ambiente: nem indústria, nem serviços, nem agricultura. Não há nada que prescinda de um meio ambiente saudável.
IHU On-Line – Entretanto, a política agrícola brasileira incentiva o uso de defensivos agrícolas? Há uma contradição na política governamental?
Márcio de Freitas – Não há uma contradição. Porque, para que o Brasil seja competitivo do ponto de vista agrícola, é preciso que a agricultura esteja pari passu com o desenvolvimento agrícola mundial. Se este desenvolvimento hoje está baseado no uso intensivo de agroquímicos e fertilizantes, cabe a nós sermos protagonistas no sentido de propor uma alternativa com produtos menos tóxicos e impactantes à saúde e ao meio ambiente, além de pesquisar alternativas de combate às pragas agrícolas específicas e adequadas à realidade brasileira por meio do uso de produtos biológicos. O Brasil tem se desenvolvido bastante nesta área, ainda muito aquém da indústria química. Entretanto, não podemos esquecer que a indústria química é a maior potência em termos de indústria no mundo. Não casualmente, são também os produtores de medicamentos, além de serem multinacionais.
IHU On-Line – É possível não utilizar agrotóxicos?
Márcio de Freitas – Não diria que é possível não utilizá-los. Diria que é possível utilizá-los com racionalidade. O grande problema evidenciado no Brasil não diz respeito aos produtos registrados, pois o país está praticamente no mesmo nível dos países desenvolvidos: dificilmente se encontram produtos registrados no Brasil que estejam proibidos em outros países. Recentemente, dez funcionários do Ibama fizeram uma capacitação nos Estados Unidos. O diferencial do Brasil é a educação para o uso. É o mesmo problema que o país enfrenta em relação à medicação. Como ainda há uma automedicação na indústria farmacêutica, há uma autodeterminação do agricultor em utilizar os produtos e não observar as questões do ponto de vista técnico. Os produtos têm rótulo e bula, da mesma forma que os remédios e, portanto, é importante seguir as indicações de uso. Entretanto, esse é o ponto em que, no Brasil, sofremos mais em função das características de analfabetismo alto, com dificuldade de instrução e equipamento na agricultura. Então, há mau uso em função de má formação e de não observação daquilo que a legislação prevê.
IHU On-Line – Quais são os principais desafios da indústria química em relação aos agrotóxicos e defensivos agrícolas?
Márcio de Freitas – O grande desafio da indústria química é fazer produtos eficientes com baixa toxicologia. Produtos que combatam especificamente o alvo a que ele se destina, ou seja, combater a praga da lavoura sem causar problema às demais espécies envolvidas na cadeia alimentar e na biodiversidade do país.
IHU On-Line – De que maneira os defensivos agrícolas interferem na qualidade ambiental, de acordo com a avaliação do Ibama?
Márcio de Freitas – Quando o Ibama recebe um pedido de registro de agrotóxicos, ele solicita uma série de ensaios padronizados dentro de um padrão internacional. Poucos laboratórios do país são credenciados para fazer esses ensaios, os quais são caros e demorados. A partir destes testes, é analisada a mobilidade do produto no meio ambiente, quer dizer, como ele se desloca no meio ambiente depois de ser aplicado na lavoura, o que acontece com o produto se chover, se ele pode atingir os lençóis freáticos, se é volátil e pode ser transmitido pelo vento. A outra questão avaliada é a persistência, ou seja, por quanto tempo ele fica ativo e demora para se degradar. Quanto mais móvel o produto for, mais perigoso ele é.
Outra característica avaliada é se ele é acumulativo nos tecidos orgânicos vivos ou não. Se ele for, a capacidade dele se propagar e ser acumulativo na cadeia alimentar é maior e, portanto, ele é mais perigoso. Se esse produto for tóxico aos micro-organismos de solo, significa que ele é mais perigoso. É importante lembrar que a toxidade não específica à praga que ele quer combater pode levar, por exemplo, à exaustão do solo e à perda da capacidade de produção. Então, a preocupação do Ibama é ambiental, mas ela também se reflete na manutenção da saúde ambiental do país para poder continuar produzindo.
Já existem estudos mostrando que lavouras de café em locais onde não existam insetos polinizadores produzem 40% menos do que uma lavoura onde há polinizadores naturais como as abelhas, que fazem o papel de reprodução das plantas. Nós estamos avaliando a toxidade do produto a abelhas, peixes, micro-organismos de água doce, aves etc., buscando identificar que efeitos os agrotóxicos trazem sobre as espécies nativas e, com isso, classificamos o produto como mais ou menos perigoso.
IHU On-Line – Muitos ambientalistas afirmam que o sumiço das abelhas se deve ao uso de agrotóxicos. O Ibama já tem alguma conclusão sobre o assunto?
Márcio de Freitas – Nós estamos estudando a questão e ainda não temos uma conclusão, mas devemos ter nos próximos meses. Estamos consultando pesquisadores, solicitando novos exames.
IHU On-Line – Pode adiantar alguma informação? É possível que o sumiço dos insetos esteja relacionado ao uso desses produtos?
Márcio de Freitas – Ainda não. Isso provavelmente será tornado público no primeiro semestre de 2011.
IHU On-Line – Resumindo, qual a posição do Ibama em relação ao uso de defensivos agrícolas? Qual a atuação do órgão na fiscalização desses produtos?
Márcio de Freitas – O Ibama não tem posição; é um órgão técnico de avaliação ambiental e não há um posicionamento político. Temos critérios técnicos, avaliamos as questões que nos são submetidas e, em função disso, nos posicionamos com clareza afirmando se o produto é ou não perigoso. Se o Ibama entender que o produto não pode ser registrado, emite um laudo apresentando as características impeditivas de registro e nega o registro.
Não é nosso papel emitir posição de ser contra ou a favor dos agrotóxicos. Posicionamo-nos objetivamente sobre as questões que nos são dadas a avaliar. Naturalmente, do ponto de vista da defesa ambiental, interessa ao país que tenhamos produtos menos tóxicos. Quer dizer, interessa ao Ibama e ao Brasil que se tenha uma agricultura competitiva, produtiva, capaz de ser um dos maiores produtores agrícolas sem prejuízo ao meio ambiente brasileiro. Sem este meio ambiente, certamente o Brasil não seria um grande produtor agrícola. É importante ter esse vínculo. O país precisa ser uma potência emergente, mas também é importante que se continue tendo condições para dar continuidade a esse desenvolvimento.
IHU On-Line – Após a publicação do relatório, qual será a próxima atitude do Ibama em relação aos defensivos agrícolas?
Márcio de Freitas – Estamos trabalhando no sentido de melhorar a avaliação, incorporando a questão de avaliação de risco. Esta é uma meta para 2011: buscarmos, além de avaliar a periculosidade, associá-la à forma e ao local em que está sendo utilizada. Isso vai dar uma característica de maior risco do produto. Essa avaliação de risco o Ibama ainda não faz, embora alguns países desenvolvidos já utilizam esse método. A outra meta é publicarmos o relatório de 2010 com inovações no sentido de incorporar maiores informações sobre importação e exportação, um maior detalhamento dos produtos não agrícolas e dos produtos biológicos.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Márcio de Freitas – Gostaria de destacar que é importante atentar para a questão do uso. Uma coisa é registrar o produto e outra é a maneira como ele é utilizado. Nesse aspecto, o papel dos estados é fundamental porque a fiscalização do uso, pela lei, cabe aos estados da União. Esse é um desafio do país no sentido de articular essas relações entre quem registra e quem utiliza. Por isso, a intenção de publicação do relatório também é a de nos aproximar dos estados em relação a essas informações que detemos e colocar a Coordenação Geral de Avaliação de Substâncias Químicas e a diretoria de Qualidade Ambiental à disposição para as informações complementares que os interessados venham a ter.
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