Sonia Magalhães, da Associação Brasileira de Antropologia e da Universidade Federal do Pará, fez uma apresentação audiovisual detalhada sobre a condição atual e futura da região (ocupação por comunidades indígenas e não-indígenas, reservas ambientais e indígenas, a vazão dos rios, a área de alagamento projetada para a hidrelétrica). Com isso, demonstrou que a área efetiva de impacto do projeto é muito maior que aquela alardeada pelo governo – o que também foi assinalado pelo professor João Pacheco de Oliveira Filho, da Associação Brasileira de Antropologia e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este relatou que os estudos apresentados pela Eletronorte sempre se caracterizam por sua incompletude, e que a situação apenas se agravou nos últimos meses, quando o ritmo em que o governo federal tem tentado tornar a obra um fato consumado tem se acelerado. Por outro lado, o processo de consulta com as comunidades locais foi açodado e limitado, e pontuado por tentativas de aliciamento das populações locais, ou pela ignorância de manifestações contrárias a Belo Monte. A posição da Associação Brasileira de Antropologia, divulgada recentemente por meio de uma nota, recomenda a abertura de um grande debate público sobre o projeto, que o reconheça não simplesmente como a execução de uma obra física, mas algo que envolve uma reflexão sobre a política de desenvolvimento do Brasil. Para isso, assinalam a necessidade não apenas de cumprir as determinações legais que regem o processo de consultas, como também uma discussão sobre modelos de desenvolvimento alternativos à lógica de que Belo Monte é um exemplo.
Andrea Zhouri, do GT de Povos Tradicionais da Associação Brasileira de Antropologia e da Universidade Federal de Minas Gerais, focou sua intervenção justamente nessa lógica, que caracterizou por seu planejamento centralizado e autoritário; sua crença na gestão como técnica “neutra” de resolução dos “obstáculos” que se opõem aos mega-projetos; a desqualificação técnica de qualquer oposição; e a mobilização do discurso do “interesse nacional” contra aquilo que é descrito como “interesses particulares”, ou até mesmos “mesquinhos” – palavra usada, segundo ela, por um funcionário do IBAMA em uma audiência com povos do Xingu. Ela mostrou como essa lógica, que considera o licenciamento ambiental como “empecilho” ao “desenvolvimento” implica severas falhas no cumprimento das etapas do processo de concessão de licença: “há um verdadeiro comércio de EIA-RIMAs, tratados como mercadorias que as companhias compram a fim de garantir a execução de seus projetos; alem disso, as oitivas limitam a participação da população. Lembrou, por último, que a figura da “licença parcial” que foi recentemente concedida para o início do desmatamento da região de Belo Monte não existe na legislação brasileira, o que caracteriza o processo de “flexibilização” que se tem visto cada vez mais nos últimos anos.
Deborah Duprat, Subprocuradora Geral da República, questionou: “Como se pode dizer que a energia hidrelétrica é limpa, se ela implica a destruição de relações sociais, de áreas ancestralmente habitadas, de relações humanas? Isso deixa claro que o conceito de natureza, e portanto de ‘impacto ambiental’, por trás dessa lógica de desenvolvimento é de uma natureza intocada, sem seres humanos”. Ela listou algumas das irregularidades técnicas e legais no projeto de Belo Monte que a levou a impetrar liminares contra sua tramitação. Por exemplo, até hoje não há um estudo sobre seu futuro impacto na bacia hidrográfica da região; e, quando começou o processo de oitivas com a população local, ainda não existia um EIA-RIMA em que essa pudesse se basear para o debate. Por último, observou: “precisamos acabar com esta idéia de que esses projetos trazem o desenvolvimento para a região. Temos 50 anos de experiência, no Brasil, com a construção de barragens, e os resultados são sempre muito mais negativos que positivos.”
Mais questionamentos técnicos foram levantados por Adriana Ramos, do Instituto Sócio-Ambiental. O BNDES, banco público que é o grande financiador da obra, costuma ter como única condição para a cessão de financiamento o licenciamento ambiental, e manifestou não reconhecer o tipo de “licença parcial” concedido a Belo Monte. “Agora, se o BNDES não pode financiar um projeto que todos consideram excessivamente caro e dificilmente viável, qual banco privado vai correr o risco?”. E terminou: “o atabalhoamento com que foi conduzido todo esse processo só faz confirmar a suspeita de que é um projeto inviável, irregular, e que responde a interesses obscuros”.
“Energia para quê, energia para quem?”, começou perguntando Moises, representante do Movimento dos Atingidos por Barragens. “Não temos um problema de geração de energia. Temos um problema de modelo de sociedade”, disse ele, ressaltando a maneira como os benefícios de Belo Monte se distribuem desigualmente entre grandes companhias (da região, mas também nos grandes centros do país), e como o PAC resolve os problemas da infra-estrutura nacional de uma maneira que concentra renda nas mãos de construtoras e grandes empresas. “Crucial nessa concentração de renda”, ele salientou, “é o papel do BNDES, que põe dinheiro público em mega-projetos privados”. Ele reafirmou a posição do MAB contra Belo Monte, e sua disposição de lutar não só contra este, mas contra outros projetos no Brasil e fora dele.
Paulo Maldos, secretário-geral da Secretaria Nacional de Articulação Social da Presidência da Republica, claramente envergonhado com tudo que ouvira, iniciou declarando que estava ali para ouvir mais do que falar, e que reconhecia o valor de todas as críticas feitas, não apenas contra o governo, mas contra o estado brasileiro em geral. Reconheceu, de maneira indireta, que houve problemas com a tramitação de Belo Monte, e manifestou-se de acordo com algumas pontuações anteriores: que tratava-se de um debate sobre a concepção de relação com a natureza e os modelos energético e de desenvolvimento. Comprometeu-se a levar essa pauta de debate ao governo “no futuro”, mas não assumiu nenhum compromisso imediato com o caso de Belo Monte.
Domingos Dutra, deputado federal (PT-MA), falou de sua experiência com a hidrelétrica de Estreito, em seu estado, onde todos os problemas observados no Xingu também ocorreram. “As hidrelétricas são o maior negócio no Brasil hoje, e no caso de Estreito, o que vimos foi o Estado brasileiro abrir mão de suas responsabilidades, para que elas fossem executadas pelas próprias empresas”. Afirmou que é necessário pressionar o governo para que, pelo menos, as condicionantes sejam cumpridas; mas arrancou aplausos dizendo: “esse governo tem gente do bem e gente do mal; tem gente do bem e gente do Cão. Se os gritos das ruas não empurram o governo na direção correta, os gritos das sombras empurram ele na direção do mal”, e citou como exemplo o controle detido pelo senador José Sarney, seu conterrâneo, sobre a área de Minas e Energia na administração Dilma.
Depois do debate, foi lida uma nota à imprensa, e lembrou-se aos presentes do ato de entrega das mais de 5 mil assinaturas contra Belo Monte recolhidas nas últimas semanas – e uma noticia de última hora: a confirmação de uma audiência entre lideranças indígenas e sociais com um assessor da presidenta Dilma, a realizar as 12h de amanhã.
Belo Monte e o modelo de sociedade