Em São Paulo (SP), trabalho escravo na cadeia produtiva de confecções foi abordado em audiência pública. Já em Belo Horizonte (MG), ato exigiu o julgamento imediato dos mandantes denunciados pela “Chacina de Unaí”
O enfrentamento ao trabalho escravo em áreas urbanas e a chaga da impunidade foram foco de atividades especiais nesta semana temática por conta das variadas comemorações inspiradas pelo Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo (28 de janeiro).
Auditores fiscais do trabalho, integrantes de outros órgãos públicos, representantes do empresariado, de sindicatos e de organizações da sociedade civil estiveram presentes na audiência pública para tratar da exploração de mão de obra escrava no setor das confecções. Organizado no auditório da Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP), o encontro abordou a situação de imigrantes sul-americanos que movem milhares de oficinas de costura não só na metrópole, mas também em diversos outros pontos espalhados pelo estado mais rico do país. Na busca de alternativas à situação vulnerável em que vivem em seus países, vítimas estrangeiras são muitas vezes atraídas por esquemas criminosos que combinam tráfico de pessoas, trabalho forçado e outros delitos.
Entre os passos dados no sentido de combater esse tipo de violação dos direitos humanos fundamentais, os responsáveis pela fiscalização trabalhista destacaram especialmente os esforços para a responsabilização dos reais beneficiários da exploração do trabalho em condições análogas à escravidão de imigrantes, no bojo do Pacto Contra a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo – Cadeia Produtiva das Confecções.
Antes dessa investida nas cadeias produtivas, prevalecia uma tendência de enquadramento apenas dos donos de oficinas que atuam na ponta do processo.
Durante a audiência, o auditor fiscal Luis Alexandre Faria destacou a série de fiscalizações realizadas ao longo de 2010: desde o caso da oficina com imigrantes submetidos à escravidão que produzia peças para a rede varejista Marisa (e que também confecicionara anteriormente para a C&A), ocorrida em março, até a grande operação de 11 de agosto que culminou no flagrante de trabalho escravo na cadeia de suprimento da marca de moda jovem 775 e também na costura dos coletes utilizados pelos recenseadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Em dezembro do ano passado, o mesmo grupo da SRTE/SP atendeu denúncia de trabalho escravo urbano referente a outro setor econômico e libertou ainda dezenas de trabalhadores migrantes vindos do Nordeste que faziam a manutenção da linha férrea que liga Santos (SP) a Mairinque (SP), sob concessão da companhia América Latina Logística (ALL). Os empregados estavam alojados em precariedade extrema dentro de contêineres sem estrutura adequada em trecho isolado na Serra do Mar.
Uma das principais preocupações ao longo das fiscalizações, de acordo com Luís Alexandre, diz respeito à proteção das trabalhadoras e dos trabalhadores alcançados. A orientação adotada é a de evitar que as vítimas, que já tiveram de enfrentar um quadro de desumanidade, sejam punidas pela segunda vez por conta da situação migratória em que se encontram. O objetivo das ações, portanto, é garantir os direitos de cidadãos naturais de países como a Bolívia e o Paraguai – com os quais o Brasil mantém acordo de livre residência – conferindo a emissão da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) e corroborando para a regularização.
A equipe da SRTE/SP lançou a todos os participantes a ousada meta de trabalhar em conjunto para eliminar a escravidão no meio urbano até a Copa do Mundo de futebol de 2014, que terá o Brasil como anfitrião e a capital paulista como uma das cidades-sede.
A coordenação do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano está a cargo da auditora fiscal do trabalho Giuliana Cassiano. Em explanação sobre o tema, ela lembrou que, além da legislação doméstica e das convenções e tratados internacionais relativas ao trabalho escravo, as operações de libertação de estrangeiros devem respeitar o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, mais conhecido como Protocolo de Palermo.
Giuliana sublinhou aspectos que caracterizam o trabalho análogo à escravidão – como o trabalho forçado, a restrição da liberdade, a jornada exaustiva, o trabalho degradante, a servidão por dívida e a retenção de documentos – e defendeu uma fiscalização cada vez mais integrada, que possa envolver diversos segmentos do Estado.
“Como a Defensoria Pública da União (DPU) defende o acesso à Justiça, não poderia ficar fora do combate ao trabalho escravo”, comentou André Carneiro Leão, membro da entidade. A DPU em São Paulo esteve como parceira da SRTE/SP no caso Marisa e em mais uma operação no setor de confecções. Para ele, a intervenção da DPU não tem a intenção de apenas “judicializar” as ocorrências, mas de somar esforços para eliminar o problema.
Segundo números do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), mais de 39 mil pessoas foram libertadas em mais de 1 mil operações, no período de 1995 até 2010. As fiscalizações de repressão à escravidão vasculharam cerca de 2,8 mil fazendas e estabelecimentos. Ao todo, foram emitidas 21 mil guias de Seguro Desemprego do Trabalhador Resgatado e a reincidência de trabalhadores que são resgatados mais de uma vez é de 2%.
Radicada no Brasil, a advogada boliviana Ruth Camacho enfatizou a relevância da educação e da orientação necessárias para que pequenos empreendedores fragmentados e fragilizados na ponta da cadeia produtiva sejam plenamente informados acerca dos benefícios da formalização de seus negócios e da adoção dos padrões e normas trabalhistas vigentes. O testemunho de Ruth, que presta atendimento aos estrangeiros no Serviço Pastoral do Migrante (SPM), colocou em evidência a forma como muitos imigrantes são levados a pensar. Enquanto o caminho da legalidade é caro, complicado e desvantajoso, a clandestinidade tende a prometer o oposto: baixo custo, simplicidade e retorno garantido.
A solicitação de maior cuidado e investimento nas mediações entre essas pessoas que estão sujeitas à superexploração nas oficinas de costura e órgãos públicos como a Polícia Federal (PF) coube ao padre Mario Geremia, do CPM. Já Paulo Ylles, do Centro de Apoio ao Migrante (Cami), realçou que o Brasil ainda não ratificou a Convenção Internacional sobre os Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias – aprovada pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1990.
Paulo também citou a indefinição acerca dos casos omissos relacionados à abertura de anistia aos estrangeiros em situação ilegal, ocorrido em 2009. As entidades que atendem imigrantes são unânimes quanto à preocupação com relação à segunda fase do processo de anistia, que deve se encerrará no final deste ano. A PF tem exigido documentos e comprovações adicionais e complexas para a conversão de vistos temporários em permanentes.
O bloco dos empresários têxteis saudou as iniciativas conjuntas com o poder público e a sociedade civil com vistas ao combate ao trabalho escravo contemporâneo. Na perspectiva de Ronald Massijah, do Sindicato das Indústrias do Vestuário do Estado de São Paulo (SindiVestuário), o alto índice geral de informalidade pede políticas públicas de maior alcance (principalmente no campo econômico) que possam incentivar a massificação de boas práticas trabalhistas sem direcionamento para um ou outro setor.
A iniciativa privada tem a sua disposição diversas ferramentas para minar a continuidade da escravidão no país. Além do compromisso específico da cadeia produtiva de confecção idealizado e mantido pela SRTE/SP, companhias e associações podem fazer parte do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que completou cinco anos em 2010 e visa isolar economicamente os empregadores que exploraram mão de obra escrava. Além disso, o suporte convicto e efetivo de industriais do setor urbano para a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001 – que confisca as terras de escravagistas – seria crucial para destravar a matéria, que aguarda votação do plenário na Câmara dos Deputados desde agosto de 2004.
Incentivo e protesto
No dia 28 de janeiro daquele mesmo ano, três auditores fiscais (Eratóstenes de Almeida Gonçalves, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva) e um motorista (Ailton Pereira de Oliveira) que estavam a serviço do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) foram assassinados numa emboscada durante fiscalização de rotina na área rural do município de Unaí (MG).
Para José Roberto de Melo, que atua à frente da SRTE-SP, o episódio que ficou conhecido como “Chacina de Unaí”, apesar da tristeza pelas trágicas mortes, não foi capaz de impor medo aos auditores fiscais do trabalho. A violenta e covarde ofensiva contra os servidores, acrescentou José Roberto, reforçou a importância do trabalho desenvolvido e a indignação foi convertida em incentivo para a continuidade das inspeções.
Uma salva de palmas, convocada por José Roberto na audiência, foi dada em homenagem aos funcionários públicos assassinados da “Chacina de Unaí”. As vítimas fatais de acidentes de trabalho, que continuam sendo contabilizadas em diversos segmentos ano após ano, também foram lembradas. Os cerca de 500 auditores fiscais que atuam no Estado de São Paulo são encarregados de para fiscalizar atividades que respondem por 42% da economia nacional.
Mais de 200 pessoas engrossaram ato público que cobrou o julgamento dos acusados pela “Chacina de Unaí”, organizado pelo Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) e pela Associação dos Auditores Fiscais do Trabalho de Minas Gerais (AAFIT/MG), em Belo Horizonte (MG).
Com faixas, cartazes e camisetas denunciando os sete anos de impunidade, a manifestação em frente ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) contou com a participação de duas viúvas dos auditores que perderam a vida: Helba Soares, viúva de Nelson; e Genir Lage, viúva de João Batista.
Depois da derrubada de dois últimos recursos que tramitavam no Superior Tribunal de Justiça, o processo principal da “Chacina de Unaí” está pronto para voltar ao TRF-1 em Minas Gerais para que seja submetido a júri popular. São nove os acusados. Cinco deles, que teriam participado da execução do crime, estão presos. Indiciados como mandantes, os outros quatro permanecem em liberdade. Apenas o réu Antério Mânica teve seu processo desmembrado dos demais por ser prefeito de Unaí (MG) e ter direito a foro especial. Cinco mil balões brancos, que simbolizam a esperança de que o julgamento seja marcado com celeridade, foram soltos no ato.
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