Ao longo da última década, Brasil e Moçambique vem estreitando progressivamente os seus laços através de uma série difusa de intercâmbios nas mais diversas áreas e a partir daí, retomando conexões há muito tempo adormecidas, a despeito da história comum que liga os dois países na sua origem. Um e outro foram colônias de Portugal. E ainda que o tenham sido em contextos diferentes, é possível verificar a existência de diversos pontos de contato que possibilitam novas partilhas de ações e significados no mundo contemporâneo globalizado. Entretanto, trata-se de uma relação bastante desigual, em função da condição geopolítica de cada um: de um lado, temos um Brasil que surge como potência mundial emergente e de outro, um Moçambique recém-recuperado de um conflito armado que deita suas raízes na Guerra Fria. Nesse sentido, as recentes trocas verificadas entre ambos são portadoras de novos horizontes na medida em que chegam para preencher uma enorme lacuna de desconhecimento mútuo produzido no contexto das ordens mundiais anteriores.
Nos dias 9 e 10 de Outubro, o alcance desta cooperação foi simbolicamente marcada pela visita do presidente Luís Inácio Lula da Silva à capital Maputo. Uma visita cheia de significados políticos fortes, já que se tratava da terceira e última ao país como presidente da república, em seus oito anos de exercício; nunca antes algum mandatário brasileiro havia visitado tantos países africanos e estabelecido tantos programas de cooperação no continente, nas mais diversas áreas. E sobretudo, reforça mais ainda o caráter simbólico desta visita o fato de, a princípio, ter sido anunciada também a presença de Dilma Rousseff, sinalizando a pretensão de continuidade deste estreitamento de laços também com o governo da presidente recém-eleita (como sucessora indicada por Lula).
O objetivo principal desta passagem foi prestigiar duas das mais expressivas iniciativas de cooperação brasileira na África, ambas impulsionadas por ele próprio: a instalação de uma fábrica de antirretrovirais[1] e a implementação dos três primeiros pólos da Universidade Aberta do Brasil no continente africano, nas cidades moçambicanas de Maputo, Beira e Lichinga. Moçambique é, dentre os países africanos, o maior beneficiário da cooperação brasileira e, aquele com quem esta se dá de forma mais diversificada, compreendendo projetos de grande relevo em áreas como saúde, educação, agricultura, esporte e formação profissional. E como contrapartida, o país é também o destino preferencial de grandes investimentos capitalistas brasileiros, tais como prospecção de petróleo, exploração de carvão mineral, construção civil, e outros.
Num sentido mais amplo, a visita de Lula vem coroar a institucionalização de um processo de influência sócio-cultural do Brasil sobre Moçambique, dando-lhe contornos mais claramente políticos e macro-econômicos, em função da renovada prioridade atribuída ao continente africano pela política externa brasileira. Este processo já vinha se desenvolvendo ao longo das duas últimas décadas de forma quase que espontânea, por via de fenômenos culturais como as telenovelas, a expansão das igrejas evangélicas, a capoeira, o consumo e outros. Mais uma vez, deve-se destacar a natureza desigual destas trocas por forma a compreender o universo de possibilidades que se abrem para cada um dos lados.
Uma aula para o futuro
No primeiro dia da visita, Lula proferiu a aula inaugural no lançamento dos três primeiros pólos da Universidade Aberta do Brasil[2] em Moçambique. Trata-se de uma parceria com Ministério da Educação e as principais universidades locais (UEM e UP), na qual prevê-se a oferta de cursos de ensino à distância nas áreas de Matemática, Biologia, Administração Pública e Pedagogia, inicialmente. Contando com um investimento de 32 milhões de dólares ao longo de 9 anos, o programa projeta a ampliação para 7 pólos em 2011 e 11 em 2012. Números e projeções à parte, a fala de Lula teve um impacto significativo perante a opinião pública moçambicana, tanto em relação à forma quanto no que diz respeito ao seu conteúdo. Rejeitando a formalidade do terno e gravata, o presidente brasileiro se apresentou trajando uma guajavera[3], abusou da linguagem popular e discursou em pé, andando diante dos interlocutores. Nesse aspecto, Lula impressionou o público moçambicano em geral pela informalidade, bastante estranha para os padrões moçambicanos nesses contextos e mais ainda pela capacidade de se comunicar com o cidadão mais simples. Este fato foi significativamente destacado pela imprensa local, contrastando com a distância com que o governo moçambicano se relaciona com a sociedade[4].
Do ponto de vista do conteúdo – reforçado pela retórica inflamada com que se dirigiu aos presentes – Lula afirmou que levar a experiência da UAB para os países africanos, especialmente os de língua portuguesa, significava a realização de um sonho. Para tal, fundamentou a sua fala fazendo referência à sua trajetória pessoal, destacando o fato de “ser o primeiro presidente do Brasil sem diploma”. Seguindo esta linha, levou algumas importantes mensagens aos moçambicanos, cidadãos e governantes, ali presentes; aos primeiros, destacou a importância da educação na mobilidade social das pessoas e no progresso do país. Já aos últimos, enfatizou a necessidade de um ensino público transformador – aproveitando para criticar o discurso neo-liberal sobre a educação no Brasil, hegemônico na década de 1990, “segundo o qual o mercado resolveria a questão” – exortando o Estado moçambicano a não “repetir o mesmo erro” e a assumir e responsabilidade por esta área fundamental.
Ainda em tom inflamado e pessoal, Lula apontou aquelas que seriam as razões para priorizar as relações com o continente africano e indicou como principal a “dívida histórica”, dado o papel central desempenhado pelo Brasil no tráfico de escravos para a América. Aqui, não deixou de apontar o samba, o futebol e a “cintura mole”, como importantes heranças culturais resultantes desse processo que justificam uma maior aproximação entre os dois lados do Atlântico. Em, relação à cooperação em outras áreas – sobretudo a agricultura, com forte participação da Embrapa – Lula apelou ao resgate da auto-estima dos povos do Sul global através da exploração do seu enorme potencial agrícola, o que lhes confere vantagem comparativa e maior independência em relação ao Norte.
Retóricas à parte, é necessário refletir sobre o significado mais denso das palavras de Lula. Por um lado, o discurso da “dívida histórica para com a África” encontra fácil acolhimento no público (evidenciado pelos fortes aplausos neste momento), porém, carrega consigo uma série de distorções relativas ao que se entende por “África” e pelo próprio processo do tráfico de escravos. Esta linha de raciocínio se sustenta sobre uma suposta uniformidade geográfica, histórica e cultural do continente e na idéia de que o tráfico de escravos teria operado justamente sobre essa tal homogeneidade; ora, estudos mais atualizados mostram que o tráfico não afetou da mesma maneira todo o continente e que o seu modus operandi variou bastante ao longo do tempo, muitas vezes chegando a contar com a participação ativa de povos africanos. Em todo o caso, o discurso cai como uma luva no contexto. Mas seria mais correto dizer que a dívida do Brasil é para com a própria população afro-brasileira, devido à falta de políticas públicas com vistas a absorver esse enorme contingente populacional, desde a sua “libertação”, com a abolição da escravidão, em 1888[5].
Por outro lado, há a questão da vantagem competitiva a ser adquirida pelo Brasil no mercado global, a partir dos pesados investimentos que tem se verificado na última década. Estranhamente (ou nem tanto assim), a mídia brasileira não dá o devido destaque a este enorme fluxo de capitais e de mão-de-obra[6] qualificada trazido a Moçambique por empresas como a Petrobrás, que vem realizando prospecções de petróleo na região do Rovuma, ao norte do país; a mineradora Vale, que além de explorar o carvão em Tete, na região central do país, tem investido na construção infra-estruturas como aeroportos e ampliação de uma linha férrea na região centro-norte do país, justamente para escoar a produção. Assim, do ponto de vista econômico, o Brasil passa a acessar vastas fontes de matéria-prima e recursos naturais em concorrência com outros países ou empresas, com relativa vantagem por possuir tecnologia especialmente adaptada a regiões tropicais.
No dia seguinte (10/11), Lula visitou as instalações da futura fábrica de antirretrovirais na Matola[7], cujo início de atividades está previsto para 2012. Na verdade, houve um atraso no cronograma em função de problemas de financiamento; o projeto todo está orçado em 9 milhões de dólares, tendo a Vale assumido a responsabilidade de injetar a metade desse valor, que faltava. Trata-se de um projeto de grande impacto idealizado por Lula, no qual se espera que Moçambique produza 250 milhões de remédios para o combate à AIDS, para serem distribuídos não apenas localmente, mas também em outros países africanos. Nas palavras do próprio presidente:
“O fato de estarmos construindo a primeira fábrica de medicamentos genéricos para combater a Sida no continente africano poder ser anunciado como uma revolução (…) Esta fábrica vai libertar o povo de Moçambique da subordinação aos laboratórios dos países desenvolvidos.”
Durante as suas intervenções, Lula enfatizou a necessidade de se libertar das estruturas de dependência política e econômica em relação aos países ricos, deixando uma mensagem particularmente relevante para os moçambicanos, uma vez que o país se ressente bastante dessas tais estruturas[8]. Nesse sentido, a instalação de uma fábrica de tal importância no próprio território nacional vem para atender uma vertente considerada fundamental no espírito da cooperação brasileira: a transferência de tecnologia. Neste caso, fornecida pela respeitada Fundação Oswaldo Cruz que, para esse efeito, abriu recentemente um escritório local. Porém, houve um certo tom de frustração na visita à fabrica, dado que a inauguração estava anteriormente prevista para agora, justamente no fim do mandato de Lula, revestindo-a de um caráter simbólico ainda maior. Como referido acima, a inauguração não pode ser feita por conta de dificuldades financeiras e assim, o presidente não pôde cumprir a sua “promessa de campanha” desta vez[9].
Apesar da “frustração”, Lula disse, que deixava Maputo “feliz, por saber que o Brasil estava contribuindo com a sua tecnologia para melhorar a saúde de milhares de soropositivos africanos”. Visivelmente emocionado e mais uma vez, quebrando o protocolo (chegou a chorar), reforçou a posição de seu governo:
“Estamos lutando contra um atraso secular. Estamos lutando contra coisas que deveriam ter sido feitas há 30, 40, 50 anos atrás, mas que não foram feitas. A nossa geração está fazendo as reparações que deveriam ter sido feitas noutros momentos (…) Para o nosso caso (Brasil), é uma pena que os outros governos passados tenham preferido olhar para os olhos verdes da Europa do que para os olhos castanhos de África”.
Uma nova liderança global
O anúncio desta nova etapa das relações entre o Brasil e os países africanos – particularmente para Moçambique, privilegiado neste contexto – traz novos desafios e projeções para os dois lados. Para o país de Lula, avizinha-se uma renovada responsabilidade na condução deste processo, agora sob o comando de Dilma Rousseff. É possível presumir que, caso Lula não conseguisse eleger a sua sucessora, a continuidade desta vertente da cooperação brasileira estaria seriamente ameaçada. Já para Moçambique, para além dos benefícios efetivos[10], impõe-se a necessidade de absorver positivamente o impacto da presença de um país política e economicamente mais forte no contexto internacional, vindo a assumir posições de liderança. Como encargo, espera-se um alto grau de comprometimento e responsabilização da contraparte moçambicana[11], para que as ações de cooperação sejam levadas a bom termo. E de quebra, prevê-se um desenvolvimento da própria sociedade civil local, a reboque do novo padrão de relações institucionais que se pretende.
Quis o destino ou a estratégia política que Lula e sua comitiva estivessem de viagem para Seul, para participar da reunião do G-20 onde, juntamente com as outras nações ricas do mundo, discutem-se os rumos da economia mundial. Dada a impossibilidade de um país como Moçambique participar num fórum desta natureza, as posições assumidas pelo Brasil acabam por, de certa forma, representar os interesses dos países do Sul global em geral. Assim, talvez seja esse o significado mais denso da visita do presidente brasileiro ao nosso país: reforçar a legitimidade necessária para assumir cada vez mais a sua devida posição de liderança no concerto das Nações.
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[1]Coquetel de medicamentos para o combate ao HIV/AIDS. Este é um dos grandes dramas sociais de Moçambique – cuja taxa de infecção é estimada em 16%, de acordo com dados da OMS – e outros países africanos, tanto em relação à gravidade do problema em si quanto ao fato de necessitarem de ajuda externa para combatê-lo, tornando-se mais dependentes das “doações” dos países ricos.
[2] Criada pelo governo federal brasileiro em 2005, a UAB é um sistema de integração de diversas instituições de ensino superior voltado para a formação de professores para o ensino público básico e tem como destaque o ensino à distância.
[3]Traje informal bastante popular entre dirigentes políticos latino-americanos.
[4]Ainda que se expliquem em função de uma complexa combinação de situações, as violentas manifestações registradas no início de Setembro na capital do país foram atribuídas á “arrogância e insensibilidade” do governo, que passa por uma crise de representatividade.
[5] Razão fundamental pela qual a esmagadora maioria da população afro-brasileira se encontre atualmente em condição social inferior no país.
[6] Desde 2009, a Vale prevê a contratação de cerca de 2.500 funcionários brasileiros para as suas instalações em Tete, promovendo assim, um verdadeira novo vetor de povoamento na região.
[7] Cidade industrial adjacente à capital Maputo.
[8]Relativamente ao exercício governamental de 2005-2009, calcula-se que 40% do orçamento de Estado moçambicano seja composto de “doações” da chamada comunidade internacional. Este modelo torna o país vulnerável na medida que sufoca o seu desenvolvimento autônomo, comprometendo a sua soberania, em última instância.
[9] O anúncio da construção da fábrica foi feito logo no início do mandato de Lula, em 2003.
[10]Sobretudo a descentralização do desenvolvimento do país, historicamente concentrado no Sul do país, e por isso, fonte latente de conflitos sócio-políticos internos).
[11]O Estado moçambicano possui estruturas de funcionamento notadamente arcaicos, herdados do colonialismo e do socialismo recentes.
*Sociólogo e Mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia
http://www.pambazuka.org/pt/category/features/68735