Trabalhador rural é assassinado em acampamento no Tocantins

Por Bárbara Vidal e Maurício Hashizume

Integrante do Acampamento Bom Jesus, Gabriel Vicente de Souza Filho não resistiu aos cinco tiros que recebeu em meados de outubro. Fazendeiro e dois pistoleiros são acusados pelo crime ocorrido em Palmeirante (TO)

A violência associada aos conflitos de terra do país ceifou mais uma vida. Desta vez, a vítima foi o trabalhador rural Gabriel Vicente de Souza Filho, assassinado no Acampamento Bom Jesus, em Palmeirante (TO).

Gabriel não resistiu aos cinco tiros recebidos no último dia 16 de outubro. A coordenação regional Araguaia-Tocantins da Comissão Pastoral da Terra (CPT) acusa o fazendeiro Paulo de Freitas e mais dois pistoleiros pelo crime. Uma testemunha presenciou o ocorrido. Segundo relatos, antes de ser alvejado, o sem-terra estava disposto a exigir que Paulo – que se apresenta como proprietário de parte da área em disputa – devolvesse seu facão, subtraído à força das mãos de outra lavradora acampada.

O clima de tensão por conta das disputas fundiárias é agudo e se arrasta há anos. Desde 2007, 30 famílias reivindicam a criação de um assentamento no local conhecido como Fazenda Recreio – hoje dividida em Fazenda Freitas (do acusado Paulo de Freitas, frontalmente contrário à demanda apresentada pelos sem-terra) e Fazenda Recreio II (de responsabilidade do antigo dono do toda a extensão, Pedro Bringel, que já concordou em negociar a parcela que lhe cabe para viabilizar o projeto de assentamento).

Várias denúncias relativas à situação de risco foram encaminhadas a órgãos públicos em nível estadual e federal, de acordo com informações da CPT. Os próprios agentes da pastoral sofreram ameaças diretas de Paulo de Freitas. Na companhia de pistoleiros com armas de fogo, o fazendeiro teria declarado inclusive que daria um basta à vida de outro acampado.

No dia seguinte à ameaça, este mesmo sem-terra chegou a se deslocar até a delegacia de Palmeirante (TO) para fazer o boletim de ocorrência acerca do caso. Contudo, não encontrou ninguém na unidade policial para fazer o devido registro. No retorno, teve ainda de fazer um desvio por um caminho mais longo para evitar bloqueios por parte dos ameçadores e chegar até o acampamento. Naquela mesma tarde, Gabriel foi assassinado.

“Quantas vezes essa situação [que atenta contra a vida das pessoas] foi denunciada? Quantas vezes a polícia poderia ter apreendido as armas que são ostensivamente carregadas pelo fazendeiro e pelos pistoleiros?”, indaga Xavier Plassat, que faz parte da equipe da CPT na região. Ainda em 2007, a pastoral divulgou denúncias de despejo violento comandado pelos mesmos fazendeiros na mesma área conflituosa no Tocantins.

Em entrevista ao programa de rádio Vozes da Liberdade, Xavier analisa o contexto por trás da morte de Gabriel. Ele vê a região norte do Tocantins sendo cobiçada pela aptidão a diversos cultivos que interessam grandes fazendeiros, como a soja e o eucalipto (muito vinculado à demanda das siderúrgicas do Pólo Carajás pela matéria-prima do carvão vegetal). Ou seja, para o representante da CPT, a pressão sobre as terras se intensificou.

Muitas dessas terras, completa Xavier, nunca tiveram situação fundiária bem definida; inclusive com áreas devolutas ocupadas sem título legal. Esse quadro por si só conflituoso recebe o complemento do que ele define como “atuação demorada, frágil e fraca, quando não corrupta, por parte dos órgãos oficiais”. Tudo isso, segundo ele, gera “um ambiente que favorece o uso e abuso de outros meios do que o uso da lei para resolver os problemas”.

A violência ronda outra área no município de Palmeirante (TO): o Assentamento Santo Antonio Bom Sossego. Famílias que vivem no projeto e agentes apoiadores da CPT vem recebendo ameaças. A área está sendo explorada por madeireiras. A região como um todo, reforça Xavier, passa por um processo de mudança rápida. A terra está se valorizando com a Ferrovia Norte-Sul e o eixo de escoamento de produção da soja.

“Estatísticas acompanhadas pela CPT há muitos anos mostram que o campo de impunidade extremo no país é justamente aquele dos assassinatos e mortes no campo”, destaca Xavier, que acompanha a questão cotidianamente. “A gente conta nos dedos das mãos os casos que foram apurados entre tantas centenas de trabalhadores que foram assassinados”.

Situação fundiária

Em nota à Repórter Brasil, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) sustentou que “não foi comunicado anteriormente” pela CPT das ameaças contra as famílias do Acampamento Bom Jesus. Informou também que a Ouvidoria Agrária Regional, o Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e o próprio Incra “estão prestando orientações jurídicas às famílias do acampamento e acompanhando a apuração do caso”.  Procurada pela reportagem, a Ouvidoria Agrária Nacional – que está acima das Ouvidorias Regionais – não informou quais providências foram efetivamente adotadas.

A segurança dos trabalhadores rurais e os esforços para investigar a existência de milícias armadas nas propriedades rurais da região foram discutidos, ainda segundo o Incra, em audiência (19 de outubro) de representantes da Ouvidoria Agrária Regional com o Secretário de Segurança Pública do Estado do Tocantins e o Delegado Geral de Polícia Civil. O caso foi encaminhado à Polícia Federal (PF) e ao Ministério Público Federal (MPF).

Sobre o quadro fundiário, a assessoria da Superintendência Regional do Incra em Tocantins assegura que as duas fazendas “são áreas particulares e que o caso não se trata de conflito em terra pública da União”, constatação que teria sido confirmada por “levantamento cartorial”.

O órgão atesta também que Fazenda Recreio II e a Fazenda Freitas tem 960 hectares e 975 hectares, respectivamente. Por isso, ambas se encaixam na categoria de média propriedade rural, conforme a escala dos padrões tocantinenses (para os quais as grandes propriedades estão condicionadas à extensão igual ou superior a 1,2 mil hectares).

O art. 185 da Constituição Federal determina que a pequena e média propriedade rural (definidas em lei) não são suscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária, desde que seu proprietário não possua outra. O Incra garante ter feito pesquisa junto ao Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR), “comprovando que os proprietários das áreas citadas [Paulo de Freitas e Pedro Bringel] possuem apenas um imóvel cada”.

No entanto, o proprietário da Recreio II concordou em vender a terra pela modalidade de compra e venda (prevista no Decreto Nº 433/1992) para que seja formado o projeto de assentamento com o objetivo de atender os acampados. “Em cumprimento a prazos legais, a audiência deve ser realizada, dia 26 de novembro”, prevê a assessoria do Incra.

Já o acusado Paulo de Freitas não demonstrou interesse em negociar o imóvel. Assim sendo, o Incra declara que “não pode vistoriar, avaliar, adquirir e nem criar projeto de assentamento” na Fazenda Freitas.

Há cerca de oito meses, agentes da CPT e da ONG Repórter Brasil, por meio do programa educativo “Escravo, nem Pensar!”, iniciaram um trabalho com um grupo de famílias do Acampamento Bom Jesus. De acordo com Xavier Plassat, da CPT, os campados apresentam características de vulnerabilidade vinculadas à exploração do trabalho escravo contemporâneo.

“Nesse clima de terror, as famílias não conseguem plantar para a sobrevivência elementar no acampamento”, afirma Xavier. Existe uma tendência de saída do acampamento para procurar alguma empreitada fora e conseguir algum recurso. “São as condições ideais para o aliciamento”.

http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=1821

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.