O soteropolitano Zulu Araújo, presidente da Fundação Cultural Palmares, é o entrevistado da Muito deste domingo. Leia trechos inéditos da conversa que ficaram de fora da revista:
Quando o senhor deixou de ser Edvaldo Mendes Araújo para se tornar Zulu?
Me tornei Zulu em 1965, quando eu tinha 13 anos. Tinha acabado de entrar no Severino Vieira. E estava passando um filme chamado África, Adeus. Eram uns documentários exóticos que passavam à época sobre o continente africano. E dentro desse filme falava-se sobre os zulus. Os zulus à época eram vistos quase como animais, eram um tribo africana, extremamente guerreira. Eles eram baixos, magros, mas eram absolutamente furiosos e combatentes, agressivos. E o Rei Zulu era uma figura que segundo meus colegas que foram assistir ao filme era muito parecida comigo. Eu era magro, pequeno, mas era danado. Aí ficou ‘Rei Zulu, Rei Zulu’. Com o tempo, o reinado foi caindo, ficou só o Zulu (risos). Quando eu entrei na escola de arquitetura [da Universidade Federal da Bahia] aí já era Zulu e eu só fiz a adequação do Araújo porque é meu sobrenome. E hoje é o meu nome público, particular, pessoal.
Onde o senhor cresceu aqui em Salvador?
No Solar do Unhão. Ali chama-se Rua Desembargador Castelo Branco. Nasci no número 5. É aquela favela que tem ali em frente. Me criei ali até os 21 anos de idade.
E o senhor conseguiu, mesmo vindo de uma família pobre, entrar na universidade.
Comecei a trabalhar aos 9 anos de idade. Me mantive com o meu salário, meu trabalho, meu esforço a partir dos 9 anos. Minha roupa, minha alimentação, meu lazer, desde os 9 anos de idade sou eu quem pago. Trabalhava na Editora Beneditina, no Mosteiro de São Bento. Trabalhei lá dos 10 aos 17 anos e quatro meses. Antes, aos 9, fui aprendiz de alfaiate no Pelourinho. E lá na Editora do Mosteiro eu era encadernador de missal. Missal eram os livros de missa. Tinha livro em latim, o livro dominical e o livro em português. E vendia como água. Trabalhava clandestinamente e era uma exploração do trabalho do menor. Toda vez que o Ministério do Trabalho aparecia, eles escondiam a gente na cela dos padres.
E por que o senhor quis estudar arquitetura?
Fui pro Severino Vieira e era um bom ensino público. E lá eu conheci um colega chamado Carlinhos Cor das Águas. E o pai dele era construtor. Então, inicialmente, meu pai queria que eu fizesse direito, porque ele queria um doutor na família, porque na minha família não tinha nenhum… Resolvi fazer engenharia mecânica e por fim decidi fazer arquitetura, influenciado pelo pai de Carlinhos Cor das Águas, que era Carlos Carvalho, que me convenceu da beleza da arquitetura. Passei no vestibular, vindo da escola pública.
E o senhor chegou a trabalhar na área?
Quando era estagiário trabalhei em vários lugares, em escritórios de alguns arquitetos importantes daqui. Depois que me formei, trabalhei em alguns projetos de desenvolvimento urbano da prefeitura. Aquela via ali do Nordeste de Amaralina, aquela via de baixo, do Vale das Pedrinhas, trabalhei naquele projeto, depois de formado fui diretor de cultura do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e posteriormente fui para o campo da política, porque eu era militante político, fiz parte do movimento estudantil, fui vice-presidente do Diretório de arquitetura quando ainda era calouro, depois fui do CUCA (Centro Universitário Cultura e Arte), depois disputei eleição pro DCE e depois disputei eleição para a Une, no processo de reconstrução da Une. Então eu tinha uma trajetória no movimento estudantil, ligado ao Partido Comunista Brasileiro, na época clandestino. Fui militante do partidão por mais de trinta anos. Fui militante na clandestinidade e depois na legalidade. Entrei como base, depois virei dirigente do comitê universitário, depois fui dirigente municipal, depois dirigente estadual e depois dirigente nacional. E também me dirigi para a área cultural na medida em que eu comecei desde a escola de arquitetura a trabalhar com produção cultural. A escola de arquitetura foi um celeiro e ao mesmo tempo a vanguarda dentro da universidade na década de 70 em termos de manifestações culturais.
E como o senhor passou do movimento estudantil para o movimento negro? Eles andaram juntos?
Não. Eu passo para o movimento negro quando há a primeira campanha no Brasil contra o apartheid na África do Sul. E quem desenvolvia essa campanha era Fernando Santana, um deputado federal do PCB. Ele liderou a campanha no Brasil de boicote à África do Sul por conta da prisão de Nelson Mandela, que naquela época já tinha vinte e tantos anos de preso. E paralelo a isso, aconteceu uma outra coisa, que foi o assassinato em São Paulo de um negro que era jogador de basquete e foi confundido com um assaltante. E isso me chamou a atenção porque eu era vice-presidente do Diretório Acadêmico de Arquitetura numa escola que tinha dois negros. Eu fui presidente de uma chapa pro DCE num ano atípico. Eu era presidente de uma chapa, Miltinho [Milton Santos[ era presidente de outra e Valdério presidente de outra. Três negros, nos quais a maioria absoluta [dos estudantes] eram brancos. E evidente que nós sofremos discriminações, e a gente não conseguia entender, porque a gente era de esquerda, se achava igual… Me lembro que fui fazer um discurso na Faculdade de Medicina e o pessoal pediu para eu sair da sala, dizendo que em vez de estar ali, eu devia estudar para virar gente. Isso em 70 e pouco, certo? Então esses dois fatos me fizeram ir para uma reunião, na época no escritório de Marcelo Cordeiro, que era deputado federal. Foi o primeiro escritório que abriu para que o movimento negro se reunisse. E eu fui nas primeiras reuniões e era aquele sectarismo muito forte, tanto é verdade que aí eu vivi o outro lado da moeda. Apesar de eu ser negro, militante do movimento negro, diziam que eu era negro de alma branca, porque eu fazia arquitetura, que era uma profissão de branco. Aí eu vi a bobagem que era o sectarismo. Comecei a militar no movimento negro, mas sem perder a perspectiva política. Eu considerava que não bastava apenas lutar contra o racismo. Era preciso ter um conteúdo político nisso aí. Fernando Santana foi muito importante porque ele me dizia que apesar de ele ser favorável ao continente africano, lá tinham alguns ditadores que eram iguais ou piores aos ditadores brancos. Vide Amin Dada. Então a luta contra o racismo não era uma coisa da cor da pele. E que muitas vezes, valia mais a pena ter um aliado branco na luta política do que um negro. E isso eu vivi rapidamente, quando nós tivemos Edvaldo Brito candidato a prefeito de Salvador com o slogan ‘Para quem tem a Bahia no sangue’. E ele era candidato do carlismo. E o outro candidato era Virgildásio Sena, que era branco, mas era o candidato da esquerda… Então entrei no movimento negro primeiro de forma individual, não me associei a nenhum grupo.
O senhor foi por muitos anos um dos diretores do Olodum.
O primeiro grupo que eu posso dizer que eu posso dizer que me associei foi o Grupo Cultural Olodum, isso já em 1982, 1983. Eu tinha um contato muito forte com o Ilê Aiyê, mas discordava da linha política do Ilê. Primeiro porque era uma linha política conservadora e segundo porque era racialista. Quer dizer, hoje eu sei que era racialista. Na época eu apenas não gostava da ideia de que tinha que “riscar”, como era o popularmente dito, para entrar no Ilê. Tinha uma ideia no Ilê Aiyê muito poderosa e muito forte, que tinha um objetivo e teve um resultado, que era o de demarcar um terreno semelhante ao do branco que segregava. E se os brancos segregavam, nós também podíamos segregar… Acho que foi importante essa inflexão do Ilê Aiyê, embora eu tenho que dizer que eu nunca me associei a essa vertente. Então minha entrada no movimento negro foi atípica. Não entrei como batuqueiro, como presidente de bloco afro… Não, eu já era Zulu. Já tinha uma trajetória política, já era reconhecido.
E o convite para integrar a equipe da Fundação Palmares veio de Gilberto Gil, não foi?
Aí já é mais adiante. Porque eu tive essa trajetória no movimento negro aqui com o Olodum, numa fase áurea do Olodum. Viajamos para muitos países, me envolvi numa teste que eu acreditava que era que a luta era contra os racistas, e não contra a cor da pele das pessoas. O Olodum foi expressão disso. E isso fez com que a gente associasse o Olodum ao movimento de luta de esquerda, pela igualdade, não só racial, mas também política. E o Olodum conseguiu agregar em torno dele um conjunto de lideranças políticas negras que tinham experiência política na esquerda, mas que também não era sectários, da chamada extrema esquerda. Isso fez com que eu tivesse uma outra projeção. Coordenei diversos projetos, porque eu tinha uma formação de arquiteto, eu era o único universitário que tinha no Olodum naquele período, não tenho a menor dúvida disso. E tinha uma série de contatos que me favoreciam muito no trabalho cultural. Daí para eu chegar à Palmares tem um misto do meu conhecimento no mundo da cultura e no mundo da política. O Gil me conhecia dos dois lados. Era meu amigo, me conhecia do Partidão. A gente já se conhecia de um monte de lugar. E ao encontrá-lo, ele falou: ‘olha, Zulu, eu estou indo para o Ministério da Cultura e gostaria de poder contar com a sua ajuda’. Aí me chamou para eu ir num show dele na Conhca Acústica e anunciou meu nome publicamente. Foi uma surpresa extremamente positiva. Fui inicialmente como diretor de intercâmbio cultural. Era do departamento de promoção, estudos e pesquisas da Cultura Afro-Brasileira. Passei quatro anos como diretor. Esses quatro anos foram extremamente importantes para meu amadurecimento político e do exercício da gestão pública. Porque aí eu consegui realizar a Conferência dos Intelectuais da África e da Diáspora, o CIAD, que foi realizado aqui na Bahia em 2006, foi o maior evento já realizado na Bahia. Tinham 12 países, mais de 300 intelecutais africanos e mais de tres mil intelecutais brasileiros. Foi um evento fantástico. Também realizamos o Festival África-Brasil, I e II, que contou com figuras fantásticas. Enfim, nós pegamos a Palmares, que era algo parecido como se fosse uma ONG do movimento negro e a transformamos.
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