Entender os processos comunicacionais construídos pelo povo kaingang era o objetivo da doutora em comunicação Carmem Pereira. Em entrevista concedida por email à IHU On-Line, ela fala o contexto no qual se formam esses processos de comunicação e como eles influencia na vida desses povos indígenas. “A multiplicidade cultural não é o mosaico da diferença, e sim uma marca das condições e dos enfrentamentos dessas condições em desiguais e diferentes contextos da existência humana. Entendo que a diferença é oriunda dos processos que tornam não só os homens desiguais, mas que também excluem o pensamento e os saberes do homem multidimensional”, explica Carmem ao falar da relação entre as configurações de identidade dos kaingangs com a comunicação.
Carmen Rejane Antunes Pereira é graduada em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria e especialista em Comunicação Social Trajetórias e Perspectivas pela Universidade de Passo Fundo. Na Unisinos realizou o mestrado e o doutorado em Ciências da Comunicação.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais as peculiaridades dos processos comunicacionais do povo kaingang?
Carmem Pereira – Antes, é preciso dizer que os processos comunicacionais kaingang constituem a base da pesquisa de recepção que focalizou as apropriações midiáticas operadas por indígenas situados nos fluxos da região Metropolitana de Porto Alegre. Para compreender as peculiaridades desses processos considero o contexto histórico da recepção a partir de uma rede de mediações/matrizes que estruturam a experiência cultural com os meios de comunicação e permitem compreender o sujeito receptor na sua construção como públicos, configurado por suas forças vitais e suas demandas como sujeito político. Isto implica dizer que ao, investigar processos comunicacionais, estamos nos referindo a interações peculiares com as mídias, as quais são compreendidas nos modos de ser do receptor, nas suas trajetórias de ouvinte, telespectador e leitor.
Uma das mediações relevantes, que demarcam a compreensão desses processos, é o que denominamos itinerância para dar conta da mobilidade kaingang, sem reduzi-la a um fenômeno hipostasiado pelo passado ou pelo presente. Na verdade, a itinerância é um termo utilizado para abranger uma gama de fluxos humanos que dizem respeito a matrizes culturais e às circunstâncias do tempo presente, concomitantemente. Permite entender a presença kaingang nas cidades, como uma marca cultural de longa data conjugada as pressões advindas da precarização dos territórios ameríndios provocada pelo modelo econômico nas suas configurações regionais.
Por isso, ainda abrangem a busca por melhores condições de vida, seja através de relações com órgãos do Estado, da complementação dos estudos, do atendimento de saúde e ainda das redes de reciprocidade que permitem a confecção e a comercialização do artesanato, bem como das relações que tecem a rede de afetos de uma extensa parentela. Envolvem também divergências internas que explicitam um modo de estabelecer hierarquias e de idear aldeias, exercendo autonomia comunitária, mediante o respeito de valores como a prática do idioma, a força, o diálogo e defesa dos interesses da comunidade, nas diversas arenas do mundo branco.
Entende-se a itinerância como um modo de viver em que os kaingang exercendo o direito de ir e vir tecem territórios de pertencimento, como lugares de sobrevivência material e simbólica. Tais lugares são percebidos como lugares de memória, porque investidos de significações e valorização de tradições que aparecem no artesanato, no reaprendizado da língua, nos nomes matriciais, e em vários outros elementos que conformam os processos de construção dos pertencimentos kaingang. Daí porque a itinerância é compreendida numa rede de mediações composta ainda pela organização política revigorada pela retomada dos territórios, a geração e a memória coletiva, em que os coletivos urbanos kaingang, sejam eles aldeias ou núcleos domésticos, são lugares resultantes de processos históricos igualmente importantes para pensar a visibilidade social indígena.
IHU On-Line – Que configurações da identidade cultural do povo kaingang você identificou nos processos de comunicação pesquisados?
Carmem Pereira – A identidade cultural é entendida em multiplicidade constitutiva e em processualidade histórica, na medida em que a diferença é forjada nas múltiplas relações de desigualdade e exclusão que configuram a sociedade como realidade combinada. A multiplicidade cultural não é o mosaico da diferença, e sim uma marca das condições e dos enfrentamentos dessas condições em desiguais e diferentes contextos da existência humana. Entendo que a diferença é oriunda dos processos que tornam não só os homens desiguais, mas que também excluem o pensamento e os saberes do homem multidimensional.
Nesse aspecto, minha pesquisa buscou compreender a historicidade do receptor nas suas configurações como povo indígena, dotado de matrizes culturais que ativam e são mobilizadas nas tessituras do grupo étnico; o que, vale dizer, de fronteiras que são mobilizadas pela memória coletiva fortalecendo a identidade social e, ao mesmo tempo, impregnando os modos de ver e se fazer visto pelo mundo que o cerca. Nesse sentido, falar a língua, usar nomes do mato e situar-se em marcas clânicas são elementos de distinção para o sujeito que também expressa a sua identidade na esfera pública como sujeito de direitos originários que conflitam muitas vezes com interesses privados que contradizem os direitos coletivos. Dessa maneira, as configurações identidárias também sinalizam uma minoria social fortalecida como identidade cidadã, cuja imagem será importante para entender a sua posição no campo comunicativo.
IHU On-Line – Quais lugares os povos indígenas ocupam nas construções midiáticas?
Carmem Pereira – Esta é uma pergunta que leva a considerar a visibilidade midiática dos povos indígenas, uma vez que a noção de lugar está relacionada ao lugar geográfico humano, como espaço praticado, como temporalidade e como voz do sujeito intercultural. Dessa forma, como os lugares indígenas são visibilizados ou se tornam objeto de notícias é uma indagação relevante, na medida em que abre caminho para entender os agendamentos, os enquadramentos que reproduzem um vasto número de estereotipias e os apagamentos da memória histórica. Mas também os processos pelos quais os grupos kaingang se valem de tecnologias comunicacionais para visibilizar o protagonismo social do mundo indígena.
Para isso, precisamos entender as construções midiáticas num vasto conjunto de modalidades informativas e/ou ficcionais que tecem o campo comunicativo, como configuração desigual e excludente, e considerar ainda a recorrência de um padrão jornalístico que reduz os fenômenos sociais vinculados à dinâmica da exclusão/inclusão. A visibilidade do protagonismo indígena na instância midiática pressupõe, por isso, múltiplas relações configuradas em diversos contextos.
Na pesquisa, essas relações foram dimensionadas dentro de uma problemática da visibilidade midiática indígena, não somente em relação a um veículo, mas em relação aos padrões de relatos e formas de enquadramento na produção de notícias sobre o índio e os lugares kaingang. Nesse contexto, as configurações identidárias apontam para a posição dos atores nas condições e enfrentamentos dos povos indígenas como sujeito de direitos no campo comunicativo. Posição que é tecida como identidade de projeto na especificidade das fronteiras do grupo étnico, portador de matrizes ancestrais e mobilizador dos sentidos de comunidade de origem, como vida percebida e como organização política.
Essa posição é mobilizada em distintos cenários midiáticos, sendo importante para compreender a identidade a partir da sua configuração como minoria cidadã, cujas demandas de reconhecimento passam pela expressão de direitos que conectam o direito à igualdade e à diferença, num campo desigual e excludente; campo em que as mídias aparecem como um agente relevante para garantir a visibilidade pública e, ao mesmo tempo, como um lugar que reduz a realidade do mundo indígena.
IHU On-Line – Como esse espaço ocupado vai influenciar na formação da identidade deste povo?
Carmem Pereira – Eu não diria como formação, dado que a identidade diz respeito a configurações que identificamos e entendemos em processualidade. Do ponto de vista kaingang, a cultura hoje também tem que ser mostrada, divulgada, noticiada, compartilhada. Isso significa travar embates em outros tempos e outros espaços, utilizando-se de novas armas numa arena social em que a diferença é propulsora do sentido de coabitação num mundo em que a desigualdade é combinada com a exclusão, mas também se converte, pela sua inclusão, em um espectro da mercadoria.
Nesse sentido, os meios de comunicação são entendidos como tecnologia que serve para registrar os feitos e as tradições, constituindo álbuns de lembranças grupais. Os meios também são vistos como espaço importante para divulgar a cultura, pois a cultura mostrada é a “cultura que está viva”, tornando-se, por isso, uma mediação relevante na compreensão das notícias como referências ao mundo indígena, já que a cultura “viva” inclui mostrar o que “a gente ta sofrendo e o que a gente ta fazendo”, mostrar “o sentimento do índio”, como expressam os interlocutores. Compartilhar a cultura na esfera pública tecida pelos meios significa, portanto, ser visto no seu “acesso de bater na mesa e ser atendido” e como voz de quem não está atrás da cortina.
IHU On-Line – Como a midiatização se faz presente nessa relação entre comunicação e o povo kaingang?
Carmem Pereira – Na pesquisa a midiatização foi dimensionada pela espessura dos meios na experiência cultural, como um processo social oriundo dos entrecruzamentos envolvendo a cultura global e culturas locais, nos seus mistos ancestrais, urbanos, regionais. Esses entrecruzamentos nos falam de matrizes como racionalidades distintas, mas também de afinidades tecidas por formas comunicacionais da oralidade, as quais serão importantes para compreender os vínculos com os meios e seus produtos e as apropriações operadas pelos sujeitos. Isto tudo desde um conjunto de mediações como os gêneros informativos e televisivos e as competências oriundas da memória étnica, entre outras mediações.
Ao nos referirmos a esses entrecruzamentos, pressupõem-se relações dialéticas que se estabelecem ao longo de processos tecnológicos, sociais, culturais, históricos e políticos pelos quais as mídias conformam uma ambiência compartilhada por distintas culturas, na medida em que seus produtos/programas passam a fazer parte do cotidiano de pessoas ou grupos sociais. Essa ambiência tem suas raízes na expansão da urbanização e na formação dos sistemas midiáticos no século XIX, e sua inserção social e histórica foi compreendida a partir de vínculos acionados por matrizes culturais que tecem as estratégias de comunicabilidade e arquitetam a mediação entre as gramáticas da produção e as gramáticas de recepção.
A midiatização, portanto, implica pensar os ordenamentos midiáticos atravessando os contextos locais em escala planetária, transformando formas de agir e pensar e criando novas formas de vida. Possibilita assim, pensá-la como cultura, atuando como uma matriz e uma racionalidade que impregna as práticas sociais em diferentes contextos socioculturais, intervindo na modelação social. Entretanto, por ser o mundo social em grande parte diversificado, nem todas as práticas sociais se midiatizam de forma homogênea, pois os processos de transformações e/ou transculturações são operados mediante particulares atores, desiguais universos materiais e distintos universos culturais e políticos, enfim.
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