Expropriação de terras de escravagistas poderia ter evitado pelo menos 159 libertações de escravizados no caso de apenas uma única propriedade no Maranhão: a Fazenda Zonga, do pecuarista Miguel de Souza Rezende.
Se a Fazenda Zonga, em Bom Jardim (MA), tivesse sido confiscada do pecuarista Miguel de Souza Rezende após a primeira libertação de trabalho escravo da área em 1996 – como prevê a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, que tramita desde 1995 no Congresso -, a escravidão de pelo menos outras 159 pessoas poderia ter sido evitada. Detalhe: a ”propriedade” em questão fica dentro da Reserva Biológica (Rebio) de Gurupi.
Pela sexta vez, trabalhadores em condições análogas à escravidão foram encontrados na Fazenda Zonga. Da primeira vez, foram 52 libertados. Todos os que vieram nos anos seguintes, portanto, poderiam não ter ocorrido caso houvesse a expropriação. Foram 32 libertações em 1997, 69 em 2001, 13 em 2003 e, agora em agosto de 2010, mais 45.
Ao todo, 276 trabalhadores foram libertados das fazendas de Miguel, de 77 anos. Além dos 211 escravizados na Zonga (nesta última fiscalização, havia escravos também na Fazenda Minas Gerais, que está registrada no nome da esposa do pecuarista), houve mais uma libertação de 65 pessoas da Fazenda Pindaré, em João Lisboa (MA), também em 2003.
As 45 vítimas desta vez faziam o “roço de juquira” (preparação de terreno para pasto) e tinham registro na Carteira de Trabalho e da Previdência Social (CTPS). Este, porém, era o único item da legislação trabalhista que o empregador respeitava. As condições de alojamento e alimentação eram degradantes e o salário não vinha sendo pago regularmente.
“Quando fomos negociar o pagamento das verbas rescisórias, os advogados do fazendeiro disseram que os empregados estavam registrados, então não havia problemas. Como se não fosse necessário respeitar outros direitos dos trabalhadores”, disse Camila Bemergui, auditora fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Ela coordenou a operação do grupo móvel interinstitucional, formado por integrantes do MTE, do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Polícia Federal (PF).
A ação foi motivada pela denúncia de um trabalhador que abandonou o serviço e os trabalhadores estavam no local há cerca de seis meses. O pagamento era feito a cada dois ou três meses e o valor recebido era inferior ao salário mínimo (R$ 510). “Mesmo que quisesse ir embora, o trabalhador não conseguiria. Ele não teria como não poderia bancar o transporte, já que não recebia os salários adequadamente”, acrescenta a auditora Camila. Além disso, a fazenda fica distante de núcleos urbanos e até da rodovia que dá acesso a outras cidades (65 km de distância). O isolamento geográfico é um dos componentes que agravam o quadro de escravidão contemporânea.
Os alojamentos oferecidos pelo empregador eram feito de madeira, com muitas frestas. Um espaço reduzido era dividido por 30 homens e dormiam em redes trazidas por eles mesmos de casa. O “banheiro” não tinha instalações sanitárias e o chuveiro não funcionava. Os empregados utilizavam um brejo próximo para tomar banho. A cozinha estava em estado precário de conservação. De acordo com a fiscalização, a comida servida aos empregados estava estragada e com vermes.
Miguel se recusou a pagar as verbas rescisórias e os trabalhadores voltaram aos municípios de origem em veículos alugados pelo MTE e só com as guias para recebe o Seguro-Desemprego para o Trabalhador Resgatado. O procurador do trabalho Marcos Rosa, que integrou o grupo móvel, ajuizou uma Ação Cautelar, na Vara do Trabalho de Santa Inês (MA), para tentar bloquear os bens do fazendeiro e garantir o pagamento dos empregados.
Passado escravagista
Antônio Gomes dos Santos, um dos 52 que libertados pela primeira vez da Fazenda Zonga em setembro de 1996, recebeu via Justiça, apenas neste ano, a quantia de R$ 15 mil de indenização do proprietário. Miguel pagou R$ 7 mil em espécie e ofereceu o restante em “bolas de arame”. Em outubro de 1997, a mesma fazenda foi fiscalizada pela segunda vez e os 32 libertados também atuavam no “roço de juquira”.
Esses dois flagrantes resultaram no primeiro processo criminal contra Miguel pelo crime previsto no Art. 149 do Código Penal. O caso chegou à Justiça Federal em fevereiro de 2003, após denúncia do Ministério Público Federal (MPF). Contudo, por decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o processo foi repaddado à Justiça Estadual, em outubro de 2004.
A Comarca de João Lisboa (MA) reconheceu a prescrição e declarou extinta a punibilidade do réu em 18 de abril de 2005. O Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos (CDVDH) de Açailândia (MA) recorreu da decisão judicial, que foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Maranhão (TJ-MA) em 14 de agosto de 2006. De acordo com Nonnato Masson, advogado do CDVDH, o TJ-MA negou seguimento ao recurso.
“Entramos com um recurso no Supremo Tribunal Federal (STF), em outubro de 2006, para que o recurso pudesse subir (para a instância federal). O então ministro Sepúlveda Pertence determinou que o recurso subisse em 2007. Com a aposentadoria de Sepúlveda, o recurso passou para Carlos Alberto Menezes Direito em setembro de 2007. Com a morte de Menezes Direito, o processo passou para o ministro José Antonio Dias Toffoli, em outubro de 2009. Tofoli negou seguimento ao recurso em janeiro deste ano e nós recorremos da decisão. Até agora o caso não foi julgado”, resume Nonnato.
A pena máxima por redução à condição análoga à escravidão é de oito anos de prisão. A lei estabelece que crimes com pena máxima de até oito anos prescrevem em 12 anos; para os maiores de 70 anos, como é o caso de Miguel, esse prazo cai pela metade (seis anos). O “gato” (intermediário no aliciamento dos trabalhadores) Francisco Barroso da Silva, que atuava na Fazenda Zonga, chegou a ter a sua prisão decretada em 29 de março de 2005, mas nunca foi preso.
Em 2001, o terceiro flagrante de escravidão na Zonga em terras de Miguel Rezende foi comprovado por outra equipe do grupo móvel. Os fiscais encontraram 69 vítimas de trabalho escravo. Esta ação resultou num outro processo na Comarca de Senador La Roque (MA), sob responsabilidade do juiz Marcelo Testa Baldochi. O magistrado – que é dono da Fazenda Pôr-do-Sol, na qual escravos também foram flagrados em 2007 e ainda é acusado de ter participado pessoalmente de despejo violento de ocupantes da área – emitiu sentença polêmica, determinando a mudança de instância do processo de Miguel. Na época, a promotora Raquel Chaves Duarte Sales disse que a decisão causara “tumulto e prejuízo processual”, pois Miguel tinha 76 anos e havia risco de prescrição do crime.
No ano de 2003, mais duas libertações de trabalhadores escravizados ocorreram nas fazendas do pecuarista – 65 na Fazenda Pindaré, em João Lisboa (MA), e 13 na mesma Zonga. Cada uma das fiscalizaçóes de 2003 resultou em processos que tramitam na Justiça Federal, em São Luís (MA).
Miguel ainda esteve presente na primeira “lista suja” do trabalho escravo, divulgada em novembro de 2003, por conta da fiscalização de 1996. Na segunda atualização do cadastro, ocorrida em julho de 2004, o nome do proprietário foi inserido mais uma vez pelo flagrante de 2001. A terceira inclusão do nome de Miguel ocorreu em dezembro de 2004, pelas libertações ocorridas em 2003 nas Fazendas Zonga e Pindaré.
http://www.ecodebate.com.br/2010/08/23/maranhao-pecuarista-e-flagrado-pela-6%C2%AA-vez-com-trabalho-escravo/