Descolonização e Viver Bem são conceitos que estão intrinsecamente ligados. Entrevista especial com Katu Arkonada

Unisinos – Katu Arkonada é basco, nascido no território sob a administração/colonização espanhola, e vive hoje na Bolívia, depois de ter vivido durante meses em Belém do Pará, na Amazônia brasileira, trabalhando na coordenação do Fórum Social Mundial. É pesquisador e analista do Centro de Estudos Aplicados aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Ceadesc, em Cochabamba, na Bolívia. Colaborou com a Coordenadoria Andina de Organizações Indígenas – Caoi na construção da Cúpula Continental dos Povos e Nacionalidades Indígenas, realizada em Puno, Lago Titicaca, no Peru. Atualmente colabora com o Vice-Ministério de Planejamento Estratégico do Estado da Bolívia na construção de indicadores de Bem Viver para os projetos de desenvolvimento.

A busca por uma “vida em plenitude” impulsionou as populações indígenas que originariamente viviam no território latino-americano. Uma vida, segundo Katu Arkonada, pesquisador e analista do Centro de Estudos Aplicados aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Ceadesc, da Bolívia, “em harmonia entre o material e o espiritual, consigo mesmo e com a Mãe Terra”, em entrevista, por email, foi concedida à IHU On-Line.

Por isso, o Sumak Kawsay, ou Bem-Viver, pode ser considerado um princípio ético-moral que nos foi legado pelos índios andinos, mas que encontra expressões próprias nas demais comunidades indígenas. Hoje, segundo Arkonada, surgem novas construções híbridas entre conceitos milenares da cosmovisão indígena, como o Bem-Viver, e conceitos centenários, ocidentais e modernos, como a ética ou a moral.

Assim, justamente no momento em que o mundo ocidental vive uma crise profunda, “uma crise de vida e de modelo estrutural e de civilização”, defende Arkonada, vê-se o Bem-Viver como um novo paradigma que pode nos ajudar a sair do caos em que vivemos. Mas hoje em dia, explica, não se pode dissociar este modo de vida de conceitos como descolonização (do poder e do saber) e desmercantilização da vida.

Por outro lado, o Bem-Viver nos convida a “sair da dicotomia entre ser humano e natureza”, diz Arkonada. Ou seja: “despertar para uma consciência de que somos filhos da Mãe Terra, da Pachamama, e tomar consciência de que somos parte dela, de que dela viemos e com ela nos complementamos”. É um estilo de vida que nos ensina “não a viver melhor, mas sim a viver bem com menos”, resume. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Sumak Kawsay (quéchua equatoriano) ou Suma qamaña (aimará boliviano) expressam a ideia de uma vida melhor, ou Bem-Viver. Quais são os aspectos centrais desse conceito indígena?

Katu Arkonada – Em primeiro lugar, não se trata de viver melhor. Ao menos não dentro dos padrões ocidentais, em que o viver melhor equipara-se a ter mais. Em todo caso, é necessário abordar a cosmovisão aimará ou quéchua para compreender ou, pelo menos, aproximar-se da compreensão do significado profundo dos termos.

Em aimará, Suma é traduzido como algo muito bom, excelente, plenitude. E Qamaña como conviver, viver em definitivo, de modo que o termo Suma Qamaña poderia ser traduzido mais aproximadamente como “vida em plenitude”, e uma tradução similar pode ser feita do termo quéchua Sumak Kawsay.

Quando se fala de vida em plenitude, está se fazendo uma referência a viver em harmonia entre o material e o espiritual, consigo mesmo e com a Mãe Terra. Em última instância, saber conviver com tudo o que nos rodeia, com a comunidade.

IHU On-Line – A Bolívia e o Equador incorporaram em suas Constituições o princípio do Bem-Viver. O que significa o resgate dessa ideia no atual momento político e histórico da América Latina?

Katu Arkonada – É muito interessante que as Constituições do Equador e da Bolívia, derivadas das assembleias constituintes e aprovadas no final de 2008 e início de 2009, respectivamente, introduzam os princípios do Bem-Viver e do Viver Bem em seus textos.

No caso do Estado Plurinacional da Bolívia, a nova Constituição Política do Estado já o introduz tanto no seu preâmbulo, quanto no segundo capítulo, em que fala sobre os princípios, valores e objetivos do Estado, assumindo-o como um princípio ético-moral. Também é muito interessante a construção de formas híbridas entre conceitos milenares da cosmovisão indígena, como o Suma Qamaña, e conceitos centenários, ocidentais e modernos como a ética ou a moral. Da mesma forma, fala-se também de Viver Bem nos artigos referentes à educação ou quando se determina a estrutura e a organização econômica do Estado.

O resgate da ideia também deve ser entendido em seu contexto. Na realidade, as formas de vida baseadas no Viver Bem têm uma tradição milenar. Na verdade, agora, alguns ocidentais, humildemente e depois de ter convivido e de ter se aproximado dessa forma de pensar e de viver, começaram a se atrever a recolher, sistematizar, traduzir e plasmar no papel uma tradição de pensamento que, até poucos anos atrás, havia sido fundamentalmente de transmissão oral, para que, a partir do pensamento ocidental, possa-se entender uma lógica oriental e milenar.

Em todo caso, no momento em que o mundo ocidental vive uma crise profunda – na realidade, produto de múltiplas e profundas crises, crise financeira, social, política, climática, alimentícia… e, no fundo, uma crise de vida, e de modelo estrutural e de civilização –, é nesse momento em que se vê o Viver Bem como um novo paradigma que pode nos ajudar a sair do caos em que vivemos.

E, precisamente neste momento, no bicentenário em que a maioria dos países latino-americanos estão celebrando ou vão celebrar a independência das colônias, a aproximação a esse conceito ganha mais importância. Porque, mesmo que, há 200 anos, tenha havido uma independência e foram formados os novos Estados-nação latino-americanos, na realidade, persistiram até hoje as formas coloniais de estruturação do Estado e de dominação de uma minoria, no caso da Bolívia mestiça e crioula, sobre uma maioria indígena. Por isso, hoje em dia, não se pode dissociar o Viver Bem, como conceito, de outros, como o da descolonização.

IHU On-Line – Você diz que “não é possível entender um verdadeiro processo descolonizador sem o Viver Bem”. Sobre que fundamentos e como se desenvolveria essa descolonização?

Katu Arkonada – Acho que, hoje em dia, pelo menos na Bolívia, descolonização e Viver Bem são conceitos que estão intrinsecamente ligados. Na Bolívia e na América Latina em geral, é onde está se dando a luta contra as novas formas de colonialismo, o capitalismo colonial/moderno, como define Aníbal Quijano, além de persistirem as velhas estruturas do Estado colonial e racista.

E, se falamos dessa luta – que na Bolívia passou da resistência à tomada do poder –, temos que falar do movimento indígena. Hoje em dia, é um ator que não só resiste e luta para que se deem verdadeiros processos de descolonização, quando defende seu direito de existir na terra que lhe viu nascer; quando defende a Mãe Terra contra a exploração dos recursos naturais; ou quando luta contra a sociedade racista; mas que, além disso, passa a propor formas alternativas de vida, por uma verdadeira descolonização do poder e do saber, e por uma desmercantilização da vida.

E é aí em que o Viver Bem ganha uma transcendência histórica. Mas devemos estar alerta, porque precisamente há um grande risco – depois de institucionalizar o termo Viver Bem na Constituição – de esvaziá-lo de conteúdo, de que acabe sendo algo sobre o qual os intelectuais escrevem e ao qual, como conceito de moda, as ONGs dedicam fóruns. E, como diz Boaventura de Sousa Santos, um dia nos daremos conta de que o Banco Mundial dedicou-lhe um relatório e, a partir daí, teremos perdido todo o potencial que tem como novo paradigma para o qual caminhamos.

A Bolívia, nesse contexto histórico, tem um grande protagonismo. Depois da Revolução Cubana de 1959 e do processo bolivariano iniciado na Venezuela, as lutas iniciadas na Bolívia pelos movimentos sociais, com referentes como a Guerra da Água no ano 2000, a do gás em 2003 ou a recente Cúpula de Tiquipaya para enfrentar a crise climática, além de iniciativas governamentais, como a recente criação do Vice-Ministério de Planejamento Estratégico do Estado, que tem a missão de criar indicadores de Viver Bem que possam ser aplicados nos grandes projetos de desenvolvimento, indicam-nos o caminho. A Bolívia e o movimento indígena originário em geral têm muito a contribuir e a complementar o projeto de socialismo do século XXI para o qual Cuba, Venezuela e Equador caminham. E aí novamente torna-se imprescindível buscar formas híbridas, que resgatem o melhor de cada projeto de vida, para construir esse novo e desejado paradigma de civilização.

IHU On-Line – Falando sobre a nova Constituição, que direitos e deveres o Estado assume frente à natureza?

Katu Arkonada – Nesse sentido, a Constituição do Equador é mais avançada em termos políticos, na medida em que consagra os Direitos da Natureza, embora os recentes protestos do movimento indígena e dos povos originários contra a Lei da Água nos fazem temer que isso virou apenas um conceito discursivo.

Na Bolívia, a nova Constituição Política do Estado fala várias vezes de harmonia com a Natureza quando se fala das Relações Internacionais, da extração de recursos naturais ou do direito à terra no território indígenas originários campesinos. No entanto, as contradições continuam acontecendo – o que torna muito difícil encontrar um equilíbrio entre desenvolvimento e industrialização de um país em que 500 anos de colonialismo e de saque, com o leilão das políticas econômicas impostas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional nos anos 1980 – deixaram uma situação muito precária e, ao mesmo tempo, a busca de uma alternativa, de um desenvolvimento harmônico que saia do esquema tradicional, ocidental e moderno de exploração dos recursos naturais.

IHU On-Line – A partir do conceito de Pachamama, como o Bem-Viver entende a relação entre o ser humano e a natureza?

Katu Arkonada – Viver Bem é sair da dicotomia entre ser humano e natureza. É despertar para uma consciência de que somos filhos da Mãe Terra, da Pachamama, de Ama Lurra como dizemos em euskera, meu idioma, e tomar consciência de que somos parte dela, de que dela viemos e com ela nos complementamos.

Nesse sentido, é interessante a ideia do nosso presidente, Evo Morales, de criar uma lei dos Direitos da Mãe Terra, da Pachamama. E, mais uma vez, voltamos a ver uma forma híbrida entre um conceito ocidental e moderno, como é o caso dos direitos, e um oriental e milenar. Direitos da Pachamama é uma metáfora do que a Bolívia é hoje, um laboratório de conceitos, uma aprendizagem contínua e uma confrontação entre diferentes formas de pensar, na busca de um novo paradigma, de uma nova forma de vida.

IHU On-Line – Que desafios o paradigma do Bem-Viver apresenta à atual cultura capitalista, ocidental e moderna de desenvolvimento e progresso?

Katu Arkonada – O que é desenvolvimento? O que é progresso? Aqui na Bolívia, as ONGs têm nos ensinado que o desenvolvimento é medido com uma série de indicadores, que o motor do desenvolvimento é o avanço tecnológico, colocando as pessoas em posição de supremacia frente à natureza e em um vale-tudo para alcançar a sociedade do bem-estar, esse modelo exportado da Europa e que também se refere aos grandes interesses econômicos, que nos impuseram o capitalismo depredatório como modelo sócio-econômico. Progresso são os índices do PIB e da renda per capita mais elevados, mesmo que seja às custas da uma deterioração social e ambiental, como a que nos levou a essa crise de civilização que sofremos.

Nessa conjuntura, o paradigma do Viver Bem ensina-nos não a viver melhor, mas sim a viver bem com menos. Ele precisa ser um marco na educação. Precisamos criar uma ética de Viver Bem e reconstruir um pensamento e uma forma de vida mais comunitária, com outras formas de repensar as relações interpessoais e a economia, um equilíbrio entre a cultura e a Mãe Terra, em que a complementaridade ou a reciprocidade sejam as duas faces de uma mesma moeda.

IHU On-Line – Em termos econômicos, como o Bem-Viver nos ajuda a repensar a produção e a produtividade?

Katu Arkonada – Aqui temos de ver como passar da teoria à prática: repensar e caminhar em direção a novos paradigmas e, no plano econômico, desenvolver a economia comunitária.

Novamente, temos que aprender muito com o mundo indígena, com o funcionamento do Ayllu, o sistema de organização tradicional, a comunidade, mas não entendida como um conjunto de indivíduos, mas sim como um todo complementar entre as pessoas, os animais, o ar ou a Mãe Terra. Assim, ao sairmos da concepção humanista e individualista, não é possível conceber o termo “recurso”, e, portanto, tudo é complementar, todo o ayllu contribui e recebe, de forma comunitária.

E se isso pode ser aplicado à microeconomia, mediante o ayni – que nada mais é do que essa reciprocidade, em que se dá sem esperar nada em troca, e também se recebe –, temos que ver como repensamos o Viver Bem em nível macroeconômico, onde o Estado tem que se converter em um ente redistribuidor da terra e da riqueza, e preservador dos recursos naturais. E o mesmo vale para as relações internacionais, em que temos intenção de levar isso a cabo, a complementaridade e a reciprocidade, na ALBA .

IHU On-Line – Você diz que “nos educaram e nos ensinaram a viver melhor, mas não a Bem-Viver”. Nesse sentido, Bem-Viver é o caminho para a Yvy marã ei (terra sem males), sonhada pelos Guarani?

Katu Arkonada – Para aqueles que cresceram e foram educados na Europa do capital, na modernidade ocidental, Viver Bem significa viver melhor, ter mais. No entanto, em toda sua polissemia, seja a concepção aimará, quéchua ou guarani de ivi maraei, que a nova Constituição Política do Estado boliviano também inclui, o Viver Bem se converte em uma esperança para a crise de vida que sofremos, em um novo paradigma para o qual é preciso caminhar.

Parece-me muito interessante que haja diversas aproximações ao termo e que continuemos tentando aterrissá-lo nas questões práticas, além dos discursos mais retóricos. Nesse sentido, se a partir da teoria, do confronto de ideias e de termos – inclusive, às vezes, gerando contradições – conseguimos avançar e nos aproximar um pouquinho mais desse novo paradigma, creio que debates como este ganham sentido.

Precisamos ouvir aqueles que estão caminhando há milhares de anos, aqueles que não veem o tempo como algo linear, mas como algo circular, em que o presente é contínuo, e o passado e o futuro são um só. Só assim, saindo da lógica ocidental, eurocêntrica, cristã e moderna, repensando a nós mesmos e aquilo que nos rodeia, poderemos começar uma verdadeira descolonização e uma aproximação ao Viver Bem.

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