Território: quem são os donos do pedaço?

Território: quem são os donos do pedaço?
Por Flávia Gouveia

Saiba de que maneira o meio em que vivemos sofre os impactos da ocupação do homem


Os problemas de ocupação territorial que existem no Brasil confundem-se com sua própria formação histórica. Desde o descobrimento até os dias de hoje, passando pelos períodos de colônia, império e república, a desigualdade entre grupos sociais e a pouca preocupação com o meio ambiente caracterizam o modelo geral de ocupação do país. Felizmente, há exemplos de boas práticas, mas são iniciativas ainda modestas. De modo geral, o cenário ainda é problemático. O intrigante assunto é debatido nos círculos acadêmicos, políticos e sociais e estudado em áreas como o Direito, Geografia, História, Sociologia e Antropologia. Mas de que maneira o meio em que vivemos sofre os impactos da ocupação do homem?

Tanto as monoculturas que marcaram a exploração rural do país para fins comerciais quanto as indústrias de transformação tiveram impactos sobre a biodiversidade e as populações no campo e nas cidades. “A concentração de renda e de riqueza atua como motor das assimetrias, e o reflexo hoje são os movimentos sociais organizados, como o movimento dos trabalhadores sem-terra, o MST.”, diz a professora do Departamento de Planejamento Territorial e Geoprocessamento da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, Bernadete Castro Oliveira.

A professora da Unesp aponta a elite patrimonialista brasileira, caracterizada pela imobilização de sua riqueza em terras, como um grupo social que permeou todos os períodos da nossa história, fortalecendo-se ao longo do tempo. Segundo Oliveira, “a concentração fundiária aumentou sobretudo a partir de 1850, ano em que foi instituída a Lei de Terras, no contexto da Revolução Industrial”. A Lei de Terras regula a estrutura fundiária e foi instituída numa fase posterior à doação de capitanias hereditárias pelo rei português. Com a Lei, a ocupação de terras só poderia se dar mediante compra ou autorização do rei.

“Depois da libertação dos escravos, em 1888, e da proclamação da República, em 1889, consolidou-se o projeto das classes dominantes para garantir a posse da terra e a manutenção da hierarquia social vigente.”, diz Oliveira. Assim, a República legitimou a propriedade de terras e a concentração fundiária, numa economia centrada na produção de mercadorias, e que sempre deixou de lado seu caráter social. A professora explica também que a criação dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) na República não impediu que os mandos viessem, de fato, dos poderes locais.

Índios e negros: sem território e sem identidade

Os povos mais atingidos pela ocupação do território brasileiro foram os indígenas e os negros escravizados vindos da África. As populações indígenas, inicialmente utilizadas para o trabalho nas atividades empreendidas pelos colonizadores e, com esse propósito, objeto da catequização, foram perdendo e transformando seus costumes e sua cultura. Com o tempo, dizimaram-se tribos inteiras e hoje se pode afirmar, mesmo com as imprecisões das estatísticas existentes, que o número de indígenas no território brasileiro reduziu-se sobremaneira. De acordo com levantamentos da Funai e do IBGE, no ano 2000, os índios brasileiros representavam entre 0,2 e 0,4% da população do país, respectivamente.

Essa subjugação do índio aconteceu muitas vezes de forma violenta e com prejuízos diretos sobre seu território e sua identidade. De acordo com o Instituto Socioambiental, os processos de colonização e de constituição do Brasil foram extremamente violentos, e as consequências para os índios foram as piores possíveis: “extinção de povos inteiros, diminuição demográfica brutal, tomada de terras, comprometimento dos meios tradicionais de sobrevivência física e cultural, desrespeito e desvalorização de identidades étnicas particulares frente aos valores da nova sociedade nacional”.

Atualmente, dos poucos indígenas brasileiros remanescentes, raros são os que não tiveram suas vidas transformadas pelo contato com o homem branco: roupas, sapatos, televisores, computadores e aparelhos celulares já fazem parte da vida dos habitantes de várias tribos. Podem-se observar também índios “aculturados” vivendo em cidades e outros locais fora das aldeias. São os chamados índio-descendendes e índios urbanos, que o Censo Demográfico 2010 deverá identificar pela primeira vez, graças a sua nova metodologia.

Tania Pacheco, historiadora e coordenadora do Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil (resultado de um projeto desenvolvido conjuntamente pela Fiocruz e pela ONG Fase, com o apoio do Departamento de Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde), informa que, dos 297 casos de injustiça ambiental levantados pelo mapa, 18% relacionam-se aos povos indígenas. “Destacam-se também os prejuízos sofridos pelos quilombolas – descendentes de escravos negros que moram em comunidades rurais, os quilombos -, com 12% dos casos registrados no mapa. Mas é importante notar que, nos demais grupos prejudicados, a presença de mestiços de índios com negros é marcante.”, diz Tania.

Os negros, que vieram povoar o Brasil como mão-de-obra escrava, inseriam-se na vida do país como mercadorias e não como parte integrante da população. Eram vistos por muitos, como registra a literatura, como uma raça inferior de constituição própria para o trabalho físico pesado, em justificativa para a escravidão. Segundo Tania, “o problema do racismo contra os negros ainda é muito presente, mas felizmente tem crescido a organização dos grupos desfavorecidos para lutar por seus direitos”. À diferença dos índios, a população negra no Brasil representa quase 50% do total, e, apesar dos avanços na legislação e de mudanças positivas em algumas realidades, o caminho a percorrer para a redução de desigualdades e preconceitos ainda está distante do fim. Em julho deste ano foi sancionado pelo presidente Lula o Estatuto da Igualdade Racial, mas em uma versão muito polêmica, criticada por não contemplar os principais pontos de reivindicação do movimento negro.

Agricultura, indústria e devastação ambiental

Os impactos das atividades econômicas desenvolvidas no Brasil ao longo da história atingiram não somente as populações nativas e representantes da força de trabalho (escravos e, posteriormente, trabalhadores assalariados e autônomos), mas também o meio ambiente onde foram praticadas. A extração da madeira pau-brasil, cujo produto inclusive deu nome ao país, baseava-se no extrativismo sem replantio.

Mais tarde, a monocultura – da cana-de-açúcar, do café e outras – e a pecuária exigiram a transformação do cenário rural para atender aos interesses econômicos voltados ao mercado externo. A devastação das florestas avançou de forma acelerada nesse período e não parou mais. A Mata Atlântica, por exemplo, uma das florestas mais ricas em biodiversidade do planeta, teve sua área reduzida a cerca de apenas 7% da cobertura original, segundo a ONG SOS Mata Atlântica (para detalhes sobre a Mata Atlântica, ver infográfico).

De acordo com os resultados do Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, cujas fontes de informação são as próprias populações atingidas, 34% dos conflitos identificados têm como principais responsáveis as autoridades e políticas governamentais, bem como a legislação ambiental. Segundo Tania Pacheco, as atividades econômicas mais prejudiciais ao meio ambiente são o agronegócio, a pecuária e as atividades eletro-intensivas, isto é, que consomem energia elétrica em grande quantidade, como as indústrias de cimento, metalurgia, siderurgia, química, papel e celulose, entre outras.

As iniciativas no sentido de amenizar os efeitos devastadores sobre o meio ambiente e sobre o comportamento climático – como o reflorestamento, a reciclagem e o manejo florestal – existem, mas, como afirma a professora Bernadete, da Unesp, são ainda incipientes e muitas vezes usadas como estratégias de marketing para as empresas. “É preciso uma mobilização maior das universidades, dos formuladores de políticas ambientais, iniciativas de reforma agrícola e urbana, de modo a considerar a natureza como um bem comum, não como uma mercadoria.”, diz. Tania lembra que haverá um plebiscito no mês de setembro para a introdução de um item na Constituição que limite o tamanho das propriedades e seu uso por estrangeiros.

Cidades e cidadãos

Muitas das grandes cidades brasileiras foram antes entrepostos comerciais, ligando áreas agrícolas, ou bases militares para garantir a posse da colônia. A chegada dos portugueses pelo litoral originou ali os primeiros povoados e vilas do Brasil, com uma organização diferente da que predominava nas comunidades de nativos. Caminhos abertos pelos bandeirantes, à medida que a atividade mineradora ganhava importância, levaram à fundação de cidades no sertão brasileiro, promovendo a interiorização da ocupação do território. A presença de religiosos nos grupos fundadores das cidades é evidenciada nas igrejas encontradas mesmo em pequenos vilarejos.

Industrialização e avanços tecnológicos impulsionaram o crescimento e o desenvolvimento das cidades, e os movimentos migratórios lhes deram novas características. Todavia, a falta de coordenação e organização desses processos, aliada a problemas de distribuição de renda e desigualdade social, resultaram em cidades com espaços mal ocupados, com prejuízo aos cidadãos. “Várias das grandes cidades brasileiras registram indicadores negativos, sobretudo a partir dos anos 1970, envolvendo poluição, trânsito, favelas, infraestrutura deficiente, saneamento básico insuficiente e outros fatores redutores de uma vida com qualidade”, diz a professora do Departamento de Geografia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Maria Tereza Paes, que também coordena o grupo de pesquisa em Geografia, Turismo e Patrimônio Cultural.

A geógrafa aponta uma diferença marcante entre as grandes cidades brasileiras e as europeias: “apesar de termos nas nossas grandes cidades uma oferta fantástica de opções de lazer, comparável a Paris e a Londres, há que se considerar a questão do acesso ao lazer e ressaltar que no Brasil não há valorização do cotidiano, da família e dos espaços públicos. Hoje ouvimos muitos paulistanos dizendo ‘não dá mais pra morar aqui'”. No que se refere ao direito à cidadania, o filtro, explica Maria Tereza, é o poder. “Na França, por exemplo, o Estado forte garante oferta de educação, saúde e moradia de qualidade aos cidadãos”.

Diante desse quadro, poderíamos nos perguntar se as cidades planejadas seriam uma boa solução, mas a professora alerta para o fato de que é preciso pensar em qual planejamento será seguido. Ela explica que, nas cidades planejadas no século XX, não havia uma grande preocupação com a sustentabilidade. “Brasília, a capital federal, seguiu uma arquitetura modernista que se sobrepõe aos conteúdos sociais, limitando a sociabilidade. Os acessos são predominantemente por automóveis e as praças são mais estéticas do que praças públicas de utilização”, finaliza.

http://www.univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/preunivesp/337/territ-rio-quem-s-o-os-donos-do-peda-o-.html

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