Escrevo da aldeia Cachoeirinha, em Miranda (MS), onde acabo de presenciar uma operação arriscada. Vi como desmontaram o gatilho de uma arma infernal que já causou mortes e emudeceu vozes, criando um silêncio de cemitério. O gatilho assassino foi desarmado por dois Terena – a professora Maria de Lourdes Elias Sobrinho, ex-empregada doméstica, filha de um índio plantador de milho, arroz, feijão e banana – e seu colega, o professor Celinho Belizário, ex-cortador de cana.
Nessa sexta-feira, 13 de agosto, cada um deles defendeu sua dissertação de mestrado na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) de Campo Grande (MS), que abriu seu Programa de Pós-Graduação em Educação para formar pesquisadores indígenas, com apoio da Fundação Ford.
No entanto, a defesa aconteceu – o que é inédito no Brasil – não no campus universitário, mas dentro da própria aldeia. Fomos nós, os professores da banca de avaliação, que nos deslocamos até lá, num movimento que não se limitou a uma simples troca de espaço, mas implicou mudança de perspectiva: a universidade desceu de suas tamancas e com isso ampliou seu universo de conhecimentos.
Maria de Lourdes fez a apresentação oral, toda ela em língua terena, para compartilhar sua pesquisa com os índios ali presentes. Na medida em que falava, o data-show ia projetando o texto da tradução ao português, permitindo que a banca e o público não-indígena acompanhassem sua fala. O trabalho escrito também é, em grande medida, bilíngue em terena e português. Essa foi, talvez, a primeira vez no Brasil que um índio não precisou renunciar à sua língua para ter um diploma reconhecendo aquilo que sabe.
O boi baba
A pesquisa de Maria de Lourdes procura identificar, justamente, os mecanismos engatilhados contra a língua terena, buscando um escudo para protegê-la. Através desse caso particular, é possível entender o extermínio, em cinco séculos, de mais de mil línguas indígenas, que deixaram de ser faladas no Brasil. Cerca de 180 delas continuam ainda resistindo, como a língua terena. De que forma foi possível silenciar tantas vozes que enriqueciam o patrimônio cultural da humanidade, sepultando com elas cantos, narrativas, poesia, músicas e saberes?
As tentativas de sufocar a língua terena – um crime de glotocídio – foram testemunhadas pela própria Maria de Lourdes, em sua infância. “Da primeira até a quarta série do Ensino Fundamental, cursei na Aldeia Cachoeirinha de 1968 a 1972, minha professora era purutuye (branca). Quando cheguei à sala de aula, meu primeiro impacto foi com a questão da língua, isto é, eu, falante da língua terena e a professora da língua portuguesa. Quando ela começou a explicar a matéria, parecia que eu estava em outro mundo, pois não entendia nada do que ela estava falando”.
Lourdes se lembra de sua primeira cartilha – O caminho suave – onde lia que “o boi baba”, em voz alta, mas não entendia bulhufas. “Em 1976, na cidade de Miranda, fui para uma escola pública cursar a 5ª série à noite. Numa das aulas, a professora pediu para eu ler um texto de história. Li. Depois ela me pediu para explicar aos colegas o que tinha lido. Sem dizer nada, comecei a chorar, pois não sabia o que o texto dizia, eu não falava a língua portuguesa”.
Lourdes chegou a estudar num convento de freiras, em 1975. Lá, “era tudo estranho, a começar pela língua. Não entendia o que as freiras falavam comigo. Lembro quando uma freira me pediu água. Fiquei parada na cozinha sem saber o que ela tinha pedido. Eu não perguntava o que ela queria, pois não sabia nem como perguntar. A minha comunicação com elas era bom dia, boa tarde e boa noite. Essas foram as primeiras palavras que me ensinaram”.
Quando saiu do convento, Lourdes foi trabalhar como empregada doméstica. “Trabalhava de dia, e à noite estudava o segundo grau numa escola pública, mas tinha vergonha de falar a língua terena no meio dos brancos, isto porque não queria que eles percebessem que eu era índia, pois quando percebiam me isolavam do grupo”. Com a língua, ela silenciou também brincadeiras infantis, danças, benzimentos, cantos, pajelança e até a culinária terena, especialmente o lapâpe – uma massa de mandioca aberta como uma pizza e preparada na frigideira quente.
Lourdes foi atingida no próprio corpo pelos disparos de uma arma letal, que assassina almas e emudece vozes. Dessa forma, descobriu o mecanismo de extermínio, que começa com a discriminação da língua indígena considerada pelo senso comum preconceituoso como “inferior” ou “pobre”. Depois vem a proibição de falar essa língua, o que significa enxotar da escola os conhecimentos tradicionais que ela veicula. Em seguida, a obrigação de aprender a ler em português, uma língua desconhecida. Por último, o falante se automutila, na medida em que é obrigado a esconder sua identidade.
Rito de passagem
Quando Lourdes se formou no Curso Normal Superior Indígena e foi lecionar na primeira série do ensino fundamental, na Aldeia Cachoeirinha, constatou que apesar das garantias constitucionais e do direito dos índios de serem alfabetizados em suas línguas maternas, a escola continuava fazendo com as crianças aquilo que havia feito com ela. As crianças não aprendiam a ler em terena, apresentando alto índice de repetência e evasão escolar.
Foi aí que Lourdes decidiu romper esse círculo vicioso, organizando a resistência ao desmontar os mecanismos que acabariam com sua língua materna. Como coordenadora pedagógica da escola, ela elaborou e implantou em 2007 o projeto de alfabetização e produziu a cartilha “Ler e Escrever na Língua Terena”. O português passou a ser ensinado como segunda língua.
A pesquisa de Lourdes no mestrado teve como objetivo analisar essa experiência. Ela realizou testes de leitura e compreensão de texto com crianças terena alfabetizadas na língua indígena e com outros alfabetizados em português. Os resultados foram surpreendentes: no primeiro caso, as crianças que liam e escreviam em Terena, se expressavam com mais fluência inclusive em português e interpretavam textos com mais facilidade nas duas línguas.
As duas pesquisas – a de Lourdes e a de seu colega Celinho, que analisou o projeto político pedagógico da escola – se apropriaram das teorias e dos conceitos dos autores nacionais e estrangeiros indicados por seus respectivos orientadores: a doutora Adir Casaro e o doutor Antônio Brand da UCDB. No início não foi fácil: “O Homi Bhabha não queria conversar comigo” – disse Lourdes, com humor, referindo-se ao teórico indo-britânico, que analisou o confronto de sistemas culturais e cuja noção de entre-lugar como local da cultura acabou se tornando familiar a ela.
Alguns autores brasileiros como Aryon Rodrigues, Ruth Monserrat e Roberto Cardoso de Oliveira, serviram aos dois pesquisadores que, além disso, realizaram observações na aldeia e na escola. Entrevistaram velhos, professores, alunos, pais de alunos, registraram as falas nas reuniões de trabalho, consultaram os textos de autores indígenas de outras línguas como Higino Tuyuka, Chiquinha Pareci e Darlene Taukane, cruzaram as fontes orais com as fontes escritas. Enfim, produziram uma pesquisa de qualidade, como assinalou a doutora Marta Azevedo, da Unicamp, membro da banca.
“Os Terena estão buscando novas formas de sobreviver em meio a essa cruzada de flechas e às novas e gigantescas colunas de fogo que se alastram em direção a nós, vindas do entorno regional” – escreveu Celinho, que definiu sua pesquisa como “a semente de um sonho”, porque “outros pesquisadores indígenas continuarão essa reflexão”.
Na ocasião, duas cerimônias foram realizadas pela comunidade terena para celebrar o nascimento dos novos mestres. Lourdes entrou no recinto, acompanhada dos membros da banca, passando no meio de duas fileiras formadas por meninas que dançaram o Xiputrena, animadas por um tocador de pife (oxoti étakati) e um tocador de tambor (ixúkoti pepêke). Já Celinho foi recebido com o Kohitoxi Kipâhi ou dança do bate-pau, numa fileira meninos com os corpos pintados de vermelho e na outra, de azul. Tinha algo de belo e de sagrado na reverência daquelas crianças aos novos suportes do saber.
Há alguns anos, o último falante de uma língua indígena foi considerado doido, porque conversava em língua xetá com sua imagem projetada no espelho, como uma forma dramática de manter sua identidade e sua memória. As pesquisas dos dois novos mestres fazem parte de uma estratégia, uma esperança para que nenhum terena jamais precise conversar com o espelho. Que Orekajuvakai nos ouça!
*José Ribamar Bessa Freire (terceiro da esquerda para a direita, na foto acima), natural de Manaus,assina no “Diário do Amazonas” coluna semanal tida como uma das mais lidas da região norte. Reside no Rio de Janeiro há mais de 20 anos e é professor da UERJ, onde coordena o programa “Pró-Índio”. Mantém o blog “Taqui pra ti” e é colaborador do blog “Quem tem medo do Lula?”.
P.S.- Link para dois artigos sobre o tema:
1) Morte e vida das línguas: http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=26
2) Tikuein, o homem que falava com o espelho: http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=21
http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=876