”Queremos que esses povos possam viver. Nada mais”, afirma Dom Erwin Kräutler

Os “Povos Indígenas na Amazônia: lutas e restrições de direitos” estiveram em debate nesta quinta-feira, no centro de São Leopoldo, em palestra com Dom Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu, do Pará. A palestra, parte do evento Amazônia em Debate, organizado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU e demais parceiros, ocorreu no Teatro Municipal de São Leopoldo – Centro Cultural José Pedro Boéssio.

Muito bem humorado apesar do cansaço da viagem desde o Norte do país e a abrupta mudança climática – do calor tropical da Amazônia para o frio polar do Sul –, Dom Erwin falou com paixão sobre sua vida em defesa dos índios. Ele chegou ao Xingu com 26 anos, proveniente da Áustria. Segundo ele, esse foi um passo decisivo em sua vida, como resposta ao seu desejo de ser missionário. “Aprendi o português brasileiro com muito empenho e carinho”, disse.

Sobrinho de Dom Eurico Kräutler, Dom Erwin teve seus primeiros contatos com o mundo indígena a partir das viagens de seu tio à Áustria, onde o pequeno Erwin acompanhava atento os relatos de Dom Eurico sobre a cultura indígena do Norte do Brasil. Embora seu tio não tenha tido nenhuma relação com sua indicação ao bispado, ocorrida em 1980, Dom Erwin é hoje brasileiro naturalizado, e afirma isso com orgulho. “Sou brasileiro nascido na Áustria”. E já vive aqui há 45 anos.

Ao chegar ao Xingu, em 1965, já procurou estabelecer seus primeiros contatos com os índios. Em sua primeira visita, ele foi acompanhado por um intérprete e se sentiu “frustradíssimo”, porque os índios não lhe deram atenção. Porém, quando voltou pela segunda vez, já sabia a língua da tribo e saudou os índios em sua própria língua. Ao que o cacique disse: “O grande cacique dos pajés cristãos (ou bispo, na língua dos índios) não é branco. Na verdade é nosso parente”.

Para Dom Erwin, “nas populações do Xingu, corre sangue dos ancestrais indígenas. Por que negar esses ancestrais, por que negar essas culturas? Por que não admitimos isso?”, questionou.

Segundo ele, existe uma “onda anti-indígena” até hoje, mesmo que camuflada. E isso é muito triste, afirmou. “Creio que não há no mundo inteiro algo semelhante ao encontro das raças e culturas como na Amazônia. Só no Xingu, existem todos os troncos linguísticos da América. E não se trata de gírias, dialetos. Eles têm suas próprias línguas, suas próprias gramáticas”, disse. Os índios, defendeu, ajudaram a compor a nossa própria cultura brasileira. “Os índios da Amazônia foram a vanguarda da nacionalidade brasileira”, defendeu.

Hoje, muitos povos indígenas ressurgiram, defendeu o bispo. “Hoje, esses povos recuperaram o orgulho de ser. Reconhecem-se como índios. Antigamente, viviam, por assim dizer, na clandestinidade. E não queriam ser índios, queriam ser brasileiros comuns. E por que não podem ser índios e índias brasileiros? Isso, hoje, graças a Deus, mudou”, afirmou.

Dom Erwin também lembrou a atuação do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, organização criada em 1972 como um dos braços de atuação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. “Ele já produziu seus mártires. O Cimi tem coletado esse sangue derramado em favor dos indígenas”, relembrando alguns dos mártires brasileiros e brasileiras em favor dos índios.

Virada de Copérnico

Retomando alguns pontos da história brasileira e de sua relação com os índios, Dom Erwin lembrou que as Constituições brasileiras a partir de 1934 defenderam um eixo resumido na expressão “incorporar os silvícolas à comunhão nacional”. Ou seja, os índios eram reconhecidos como silvícolas, aqueles que vivem na selva, “bichos-do-mato”, selvagens, o que, segundo Dom Erwin, “engendrou toda a história do apartheid brasileiro”. Por outro lado, essa incorporação era defendida como uma violência de adaptação ao mundo branco, em que se dava ao Estado o poder de legislar sobre a naturalidade e a cidadania desses índios. “Mas eles não são brasileiros?”, questionou o religioso. Em resumo, para Dom Erwin, esses textos legislativos “cavaram a cova dos indígenas”.

Porém, com a Constituição brasileira de 1988, deu-se uma “virada de Copérnico”, afirmou, com um texto que fala muito expressamente sobre os direitos e a dignidade dos povos indígenas. “A noite escura finalmente passa”, e o índio é considerado gente igual a todos, não um menor ou um incapaz. E os índios são contemplados com um capítulo próprio na Constituição, especialmente em seus artigos 231 e 232.

Para Dom Erwin, esse avanço da Constituição foi “uma grande vitória dos povos indígenas e dos seus aliados”, pois o direito desses povos passou a estar escrito na Carta Magna do Brasil. E nisso, sem dúvida, tiveram um papel especial a missão do Cimi e as Igrejas Evangélicas, defendeu.

A aprovação da redação do capítulo sobre os povos indígenas ocorreu no dia 1º de junho de 1980, quando houve 437 votos a favor, 8 abstenções, e 8 votos contrários no Senado. Porém, afirmou Dom Erwin, “a dívida histórica foi sanada no papel”. Ainda falta, portanto, sanar a dívida no “chão concreto”.

Desde 1993, afirmou Dom Erwin, o Cimi publica um relatório anual sobre as violências, em suas mais variadas formas, praticadas contra os povos indígenas. E essas violências, criticou, violam frontalmente a nossa Constituição, pois vão muito além do relatório, já que constam no documento apenas as mortes computadas pelos missionários in loco.

“Enquanto existir uma única morte violenta de uma índia ou de um índio, o Cimi não se calará, pois isso não deixa de ser uma chaga aberta que atravessa todo o país”. Dom Erwin deplorou que a maior parte dessas mortes estejam relacionadas às terras, “das quais os índios foram expulsos ou roubados”.

“Somos responsáveis uns pelos outros. Queremos lutar para que esses povos possam viver. Nada mais”, resumiu.

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