Na entrevista a seguir, concedida, por email, Rejane analisa tanto o projeto quanto as diversas medidas disciplinadoras no meio da educação. Ela também reflete sobre a atuação da biopolítica e do biopoder nesta área. “As políticas educacionais, por exemplo, podem ser analisadas como ações voltadas para a população, que se utilizam de racionalidades, estratégias e técnicas como instrumentos para dirigir as condutas individuais e coletivas”, disse.
Rejane Ramos Klein é graduada em pedagogia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, onde também fez o mestrado e o doutorado em Educação. Atualmente, é professora na Escola Municipal de Ensino Fundamental Dr. Antônio Bemfica Filho, em São Leopoldo (RS), e na especialização da Unisinos. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como você analisa o projeto que prevê que não haja reprovação nos três primeiros anos escolares?
Rejane Ramos Klein – Essa é uma iniciativa do Conselho Nacional de Educação (CNE), a qual partiu da divulgação dos dados do censo escolar de 2008, quando 74 mil crianças de seis anos foram reprovadas. No entanto, essa resolução ainda precisa ser homologada pelo ministro Fernando Haddad para entrar em vigor a partir de 2011.
Essa resolução é um dos efeitos de todo um movimento que vem se desenhando, não só no Brasil, mas, principalmente, em países considerados periféricos, onde o número de alunos reprovados é altíssimo. Em minha tese de doutorado em educação, intitulada “A reprovação escolar como ameaça nas tramas da modernização pedagógica”, discuto, entre outras questões envolvidas, o fato da reprovação estar se tornando hoje uma ameaça escolar e social, ou seja, algo a ser evitado.
O problema não está em querer a redução dos índices de reprovação, mas sim o de considerar tais índices como únicos indicadores de qualidade da educação e querer reduzi-los a qualquer custo. Uma medida como essa, colocada pelo ministério da educação, pode gerar essa esperada redução, mas não garante que todos os alunos possam chegar alfabetizados ao final de três anos de estudos. Tais medidas burocráticas e/ou administrativas, muitas vezes de ordem econômica e política, preocupadas com os números, nos chegam com argumentos pedagógicos, tais como o de valorização do princípio de continuidade do ensino aos alunos. No entanto, esse argumento fragiliza-se quando tal medida é tomada isoladamente sem discussão de outras questões pedagógicas que envolvem o currículo e a avaliação da aprendizagem.
IHU On-Line – Podemos dizer que essa medida do MEC é uma espécie de mecanismo de disciplinamento?
Rejane Ramos Klein – Um mecanismo disciplinar envolve o corpo dos alunos e os saberes dispostos no currículo escolar. Uma medida como essa tem a pretensão de disciplinar aqueles alunos que reprovam, colocando-os de maneira adequada, todos com as mesmas idades, na mesma série de ensino, passando pelos mesmos propósitos de ensino, evitando, assim, uma possível evasão escolar. Ao mesmo tempo, coloca os alunos sob uma maior vigilância quando os aprova para a série seguinte, muitas vezes, sem as condições, da ordem do conhecimento, necessárias ou exigidas, encaminhando-os para setores, dentro e fora da escola, que possam vir a auxiliá-los na superação de suas dificuldades.
Um mecanismo de seguridade
Além disso, disciplina os professores e a estrutura da escola, os quais devem adequar-se, a fim de cumprirem tal medida, incentivando maior flexibilidade curricular, diferentes e múltiplas formas de avaliação da aprendizagem dos alunos, diferenciando a todos para mantê-los incluídos no sistema escolar, abrindo-se, dessa forma, para as novas configurações políticas que se desenham. No entanto, o que discuti, na tese referida na questão anterior, é que, além desse mecanismo de disciplinamento, há outro mecanismo convivendo em nossas sociedades contemporâneas, que é o mecanismo de seguridade, tal como o nomeou Michel Foucault, em seus cursos de 1977-1978, no Collège de France, os quais se encontram publicados no livro “Segurança, Território, População”.
Tal mecanismo pressupõe não a anulação por completo dos fenômenos, mas antes a sua prevenção, ou seja, poderíamos dizer, nesse caso, a prevenção de um risco social que a reprovação representa. Além do corpo e saberes dos alunos/professores, tal mecanismo de seguridade preocupa-se com a população. Nesse sentido, dá tanta importância aos números, às estatísticas, às probabilidades, as quais vêm tendo o objetivo de governar, ou seja, promover a gestão da população de uma melhor maneira possível, de um modo mais eficaz e econômico.
IHU On-Line – Como a reprovação pode ser encarada como uma maneira de governar?
Rejane Ramos Klein – A reprovação escolar poderia ser entendida como uma estratégia que conta com um conjunto de táticas didáticas que, ao operarem sobre os indivíduos, objetivam reverter a situação de não aprendizagem de alguns, mas que coloca todos sob a ameaça da repetência, mesmo aqueles considerados aprendentes. Nesse sentido, a reprovação governa a todos. Tal governo não se refere apenas a uma instância governamental, mas a uma ação de governar, a qual inclui as instituições e também as relações entre as pessoas, bem como as relações de poder.
Considerando não só essa dimensão individual e escolar da reprovação, pode-se dizer que hoje ela transcende o âmbito pedagógico, passando a ser uma preocupação de ordem econômica, política e social. Há um excessivo controle e regulação dos índices de reprovação, tanto do país quanto dos estados e municípios, indicando a “qualidade” do ensino, os investimentos educacionais e os resultados a serem alcançados. Para tal controle e regulação, é possível cruzar dados nesses rankings que são feitos não só dentro do país, mas são utilizados de forma a comparar diferentes países.
Os Sistemas de Avaliação da Educação Básica (SAEB) ou os Sistemas Regionais (SAERS) possibilitam não só um maior controle do Estado sobre o currículo e as formas de regulação do sistema escolar, mas também um acompanhamento sistemático da aplicação dos recursos investidos. Portanto, evitar a reprovação significa controlar a evasão escolar, pois a lógica contemporânea de gestão da população é a de manter todos incluídos. A escola, nesse sentido, torna-se fundamental para evitar problemas sociais que tais alunos evadidos poderiam produzir à sociedade.
IHU On-Line – O censo escolar 2008 aponta que 74 mil crianças de seis anos foram reprovadas naquele ano. O que isso significa?
Rejane Ramos Klein – Trata-se de um dado importante a ser considerado em um contexto que vem sendo pautado por mudanças significativas no ensino fundamental, como é o caso da proposta do ensino fundamental com duração de nove anos. Desde o ano de 2006, foi sancionada a Lei nº 11.274, que dispõe sobre a duração de nove anos para o Ensino Fundamental, com matrícula obrigatória de todas as crianças a partir dos seis anos de idade, além de estabelecer prazo até 2010 para os municípios e estados implementarem a obrigatoriedade em suas redes de ensino.
Com isso, previa-se uma proposta diferenciada de alfabetização, oportunizando a todos os alunos não apenas uma transposição dos conteúdos da primeira série do ensino fundamental de oito anos, mas uma nova estrutura curricular de organização do ensino. Tal estrutura deveria repensar essa fase escolar obrigatória na vida das crianças, considerando a ludicidade, linguagem corporal, mobiliários e brinquedos, bem como um ambiente alfabetizador adequado para essa idade infantil.
Tempo na escola
No entanto, essa iniciativa de aumento do tempo da escolarização no ensino fundamental pode ser entendida também como uma estratégia preventiva do risco social para o governamento de crianças e adolescentes e, por extensão, da população de forma geral. Portanto, esse dado de reprovação nos mostra, entre outras coisas, que aquilo que se previa nessa proposta de ensino fundamental de nove anos, ou seja, essas modificações na estrutura do ensino para evitar a reprovação do aluno com seis anos, não ocorreu.
Ao passar da educação infantil para a primeira série do ensino fundamental, os alunos com essa idade são vistos a partir da noção vigente da alfabetização que pauta-se na codificação e decodificação do código linguístico e, junto com isso, passa-se a exigir posturas, atitudes e comportamentos adequados a essa série de ensino.
IHU On-Line – No Brasil, porque os estados do norte ainda são os que têm maiores índices de reprovação e evasão escolar?
Rejane Ramos Klein – O fato dos estados do norte concentrarem maiores índices de reprovação e evasão escolar não se dá por uma única causa. É impossível encontrar culpados quando se trata de reprovação escolar, e muito menos é o que se pretende com essa forma de análise que procurei demonstrar nas questões anteriores. Considerar os índices de reprovação como únicos indicadores de qualidade da educação faz parte de uma lógica que tem utilizado a estatística como uma maneira de governar a população. Por isso, minha análise é mais ampla, a qual deve estabelecer relações com a ordem econômica, política e cultural desse estado, bem como do país.
Em todo o país, os índices de reprovação e evasão têm sido divulgados de forma alarmante para justificar as mudanças que estão sendo postas em nível nacional, como, por exemplo, esta da não reprovação nas primeiras séries do ensino fundamental como resolução para um problema de ordem muito mais profunda do que simplesmente uma aprovação em massa. Os estados do norte, e também do nordeste e centro-oeste, são narrados como aqueles em que mais a pobreza se apresenta como um problema de ordem social. Atribuir os elevados índices da reprovação à pobreza da população faz parte dessa estratégia que tende a resolver os problemas sociais por vias educacionais.
IHU On-Line – Como atuam a biopolítica e o biopoder nas esferas da educação?
Rejane Ramos Klein – Gadelha (2009), em seu livro intitulado “Biopolítica, governamentalidade e educação”, oferece-nos, de maneira introdutória, uma gênese precisa da noção de biopolítica na obra de Foucault. Nesse livro, o autor coloca que a pedagogia, a educação e a escola foram e ainda são frequentemente acionadas como elementos auxiliares, complementares e, às vezes, até mesmo essenciais para a viabilização de iniciativas, programas e/ou campanhas que envolvam o esclarecimento, a prevenção e outros cuidados com a saúde e políticas voltadas à segurança pública. Como uma política de regulamentação da vida e, ao mesmo tempo, como uma prática de regulação da população, a biopolítica dirige-se ao corpo-espécie da população.
Ela se diferencia dos mecanismos disciplinares que incidem sobre o corpo individual dos sujeitos. Trata-se de mecanismos de previsão, de estimativas estatísticas, de medidas globais. As políticas educacionais, por exemplo, podem ser analisadas como ações voltadas para a população, que se utilizam de racionalidades, estratégias e técnicas como instrumentos para dirigir as condutas individuais e coletivas.
IHU On-Line – O discurso sobre a falta de qualificação do professor está presente de que forma dentro dessa ideia de biopolítica na educação?
Rejane Ramos Klein – A falta de qualificação dos professores tem sido um discurso muito recorrente no âmbito educacional como justificativa para os elevados índices de reprovação escolar. Com tal justificativa, deixam de se considerar, por exemplo, a má distribuição dos recursos para a educação, a falta de uma política mais ampla de formação para os professores, o não envolvimento numa proposta de formação nas universidades que possuem licenciaturas. Além disso, tem ainda o problema da falta de incentivos salariais aos professores, garantidos através de um plano de carreira que possa abrir suas perspectivas em relação à continuidade de sua formação.
Apontar os professores como culpados pela baixa qualidade da educação faz parte dessa necessidade da criação de mecanismos biopolíticos em educação para regular e controlar o fazer pedagógico, mas nunca solucionar os problemas educacionais.
Assim, os sistemas de avaliação de larga escala (SAEB, SAERS), a proposta de formação à distância aos professores pela Universidade Aberta do Brasil (UAB) e, mais atualmente em discussão, o Exame Nacional do Ingresso na Carreira Docente, que almeja testar conhecimentos, competências e habilidades dos docentes, são algumas medidas biopolíticas que visam a regular e controlar o trabalho dos professores.
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