No ano de 1985 foi lançado nas telas de cinema o filme Retroceder nunca, reder-se jamais (No Retreat, No Surrender). O protagonista do filme era o jovem Jason Stillwell (interpretado pelo ator Jean-Claude Van Damme); sem querer discutir a qualidade do filme, foi um dos meus primeiros contatos com o cinema, com pouco mais de 08 anos de idade.
O Filme, como outros do gênero, tem sua confusa relação entre a realidade e a ficção: o jovem Jason “todavia na boa; sossegado e bem ou até agora nascente” – tradução livre do sobrenome – aprende artes marciais com a finalidade de desarticular uma máfia que obrigava pessoas a participarem de crimes, torturas, chacinas, tráfico de armas, enfim, uma luta solitária contra a opressão.
O espírito de Bruce Lee conduz o jovem Todavia via na boa em seu treinamento no Dojo, utilizando metaforicamente as artes marciais nos ensinamentos do Taoísmo e Budismo, a vitória do que era até então sossegado e bem é óbvia no final do filme, mesmo esparramando e esparramado de sangue e suor para todos os lados da tela.
Em 1985 ocorria a vitória de Tancredo Neves para Presidente do Brasil – primeiro civil eleito indiretamente durante o período da ditadura militar, com o objetivo de conduzir nosso país no processo final de “abertura lenta e gradual”. A morte de Tancredo Neves, e conseqüentemente a posse de José Sarney, viriam a acontecer alguns meses depois. Nesse período a classe média colocou o botom de Fiscal da Sunab e foi lutar pela sua nova identidade cidadã, ou seja, consumidor/usuário.
Ao mesmo tempo que a classe média corria em sua perseguição rumo à Meca, aos bens materiais, viagens para Miami, passear em shopping center, aguardar ansiosamente a vinda do Mc´Donalds nas capitais e usufruir a “liberdade” nunca tão suprimida, muita negociação e tensão acontecia na política brasileira em Brasília e nos Estados.
Em 1987 a Assembléia Constituinte foi concretizada com deputados/as federais e senadores eleitos no ano de 1986, que acumulariam duas funções em seus mandatos, a primeira organizar e aprovar uma constituição nova – nossa primeira certidão de nascimento como consideram Dalmo Dallari e Fábio Comparato – e edificar/consolidar suas funções de parlamentares sem intervenção direta do Executivo, ou seja, constituintes e congressistas ao mesmo tempo.
O campo majoritário da política naquele momento estava posicionado em um chamado “bloco do centrão”, que aglutinava conservadores, políticos amasiados aos desejos do executivo, novos populistas, alguns da tradição varguista do PTB e raras exceções progressistas do PMDB, o que fica nítido que ainda não saímos dessa mesma lógica depois de 23 anos, o fio da meada ainda é o centrão, para que possa existir a tal de governabilidade.
De toda sorte, existia a representatividade de partidos políticos de esquerda – era mais fácil definir quem era ou não naquele período – ao mesmo tempo houve uma significativa movimentação de comunidades eclesiais de base, militantes sociais, sindicatos, movimento negro, intelectuais engajados, estudantes aguerridos, associações rurais, urbanas e grupos culturais, movimentos sociais, militantes das áreas de saúde, criança e adolescente e outras formas de expressão da chamada sociedade civil organizada.
Todas essas organizações sociais, inspiradas pela possibilidade em dar início a democracia quase radical, apesar da aposta na regulação legal, acreditavam obviamente na consolidação da perspectiva representativa e participativa, além da criação de estruturas de Conselhos, ouvidorias e corregedorias, pleiteavam os processos de Conferências Temáticas e crivos mais visíveis para concessão pública dos meios de comunicação, leia-se comunicação enquanto ato banal (…) que condensa a história de uma cultura e de uma sociedade (Dominique Wolton).
O Brasil estava diante de sínteses novas, regras oxigenadas, revisando suas próprias incoerências históricas. A Constituição pela primeira vez considera a fundamental importância dos/as índios/as e dos/as afro-brasileiros/as para formação da cultura, Estado e sociedade. Nessa grande carta, aparecem as comunidades quilombolas, com seu direito ao acesso ao território garantidos na ADCT 68, a igualdade entre homens e mulheres é formalmente declarada, apesar de materialmente continuar em processo de construção, nos apresentávamos ao mundo enquanto Estado defensor da autonomia dos povos, respeitador dos direitos humanos e laico, mesmo com um preâmbulo que invoca Deus, quero crer que seja no sentido de nos proteger de nós mesmos e garantir entrada no paraíso.
O jogo democrático republicano estava sendo constituído, em uma nação que naquele momento não era apenas um apanhado de gente com memória fraca e uma verdade absoluta. Nos posicionamos enquanto sociedade plural, e nesse momento nos (re)encontramos com Canudos, Zumbi dos Palmares, os Cabanos, os Confederados, a Coluna Prestes e outros momentos históricos sufocados pela narrativa única, de tão recente era impossível não lembrar dos “desaparecidos”, mortos, torturados e violados em todas as suas dimensões de direitos pelo regime militar.
A participação ativa desta parte da sociedade não aparentava muita preocupação com os fiscais do Sarney, nem com a derrota da Copa de 1986 nas quartas de final para França – nada mais justo e simbólico do que perder naquele momento para o país da Igualdade, Liberdade e Fraternidade -; estávamos formando o nosso Jason Stillwell, jovem, rápido, disciplinado, lutando contra a máfia e com o espírito tranquilo e infalível como Bruce Lee, impávido como Muhammad Ali e apaixonadamente como Peri.
Atos públicos, abaixo-assinados, cartas, manifestos, moções, projetos de lei e outros documentos foram encaminhados para os/as constituintes. Estimativa geral aponta que cerca de 30.000 documentos foram encaminhados ao Congresso em 18 meses; muitos foram debatidos, fortalecidos, retirados de pauta, aprovados na Constituição Federal da República de 1988, temáticas e questões importantes no campo dos direitos humanos foram consagrados, temas polêmicos como a questão da reforma agrária foram relegados para posterior regulamentação, apesar do avanço significativo do dispositivo que consagra a função social da propriedade – já prevista desde o Estatuto da Terra de 1964 com base nas lutas e organizações camponesas.
Naquele momento, uma nova ordem política democrática emergia e as fragilidades ficavam mais visíveis, como podemos constatar até os dias atuais no funcionamento e concepção das instituições públicas brasileiras; compatibilizar experiências estrangeiras com nossos desejos internos inspiravam debates acalorados, até os dias de hoje – somos latinos-africanos ou europeus desterrados? Era necessária a posição: retroceder nunca e tortura nunca mais.
Era preciso caminhar em vários sentidos e dimensões, dominar as articulações políticas de bastidores, observar a movimentação do Judiciário, aglutinar forças estratégicas, romper com a prática autoritária, envolver a população em um processo pedagógico freiriano; ao mesmo tempo deveríamos compreender a técnica de elaboração das leis, a linguagem do poder e nos comunicar em diversos dialetos políticos; deveríamos conceber previsões orçamentárias, rubricas, criar instituições, desmoronar outras, conjugar concepções político-ideológicas, vigiar a interferência do FMI, o fantasma da dívida externa, apoiar Cuba, usar tênis all star e lidar com novas/velhas identidades, talvez nada de novo no front line dos/as defensores/as de direitos humanos.
Tudo se apertava e apartava com o pragmatismo e aceleração do tempo de todos, com desencontros e dúvidas, insultos e contra-informação. O ponto central era a garantia e busca desenfreada para que a certidão de nascimento do Brasil não fosse uma mera figura decorativa ou ficasse congelada no Congresso, pois isso, aconteceu com os preços para impedir a inflação, o dragão indomável.
No ano de 1987 Milton Santos lança a primeira edição do livro O Espaço do Cidadão, guia da minha percepção jurídica e acalento para o atual momento: “Promulgada a lei, o discurso da cidadania todavia continua, no objetivo de alargar as conquistas. A lei não esgota o direito. A lei é apenas o direito positivo, fruto de um equílibrio de interesses e de poder. Daí ser legítima a procura de um novo equilíbrio, isto é, de um novo direito. A luta pela cidadania não se esgota na confecção de uma lei ou da Constituição porque a lei é apenas uma concreção, um momento finito de um debate filosófico sempre inacabado. Assim como o indivíduo deve estar sempre vigiando a si mesmo para não se enredar pela alienação circundante, assim como o cidadão, a partir das conquistas obtidas, tem de permanecer alerta para garantir sua ampla cidadania.”
Sequer vou falar do processo eleitoral de 1989 e os desdobramentos posteriores até o Governo Lula II. Ao saber da nova promulgação e redação do PNDH 3 durante esta semana em 2010, resolvi retornar aos idos do período da Constituição para compreender melhor que estávamos diante da mesma fotografia, agora em uma máquina digital, mais nítida e com recursos para ampliação, coloração e efeitos.Não dominamos nada, apenas melhoramos a técnica fotográfica ou apenas trocamos de aparelho tecnológico?
Aprendemos muito nos últimos anos e semanas – não é por acaso que o STF não modificou a Lei de Anistia e pode retroceder na questão dos direitos quilombolas a qualquer momento – pois cedem aos interesses daqueles que não querem participar do jogo, da democracia pensada e em construção desde 1988. Esses que manipulam o uso do poder ainda jogam da mesma forma que coronéis e truculentos militares se organizaram para dominar setores do Estado. Utilizam bravatas, guerra de bastidores políticos, manipulam e são dirigentes da mesma mídia que não sabe a diferença entre informar e comunicar (ou sabe muito bem).
Sigo com Milton Santos – nome de craque de bola em mais um ano de Copa sem craques na seleção da CBF/Nestlé/Nike. Para esse negro brasileiro, o homem moderno é talvez mais desamparado que os seus antepassados, pelo fato de viver em uma sociedade informacional que, entretanto, lhe recusa o direito a informar.
No entanto, permanecem as organizações sociais de defesa e promoção dos direitos humanos. Aperfeiçoamos as idéias e ideais, voltaremos às Conferências, ocuparemos os Conselhos, iremos às ruas, criaremos nossas mídias, fortaleceremos nossa real comunicação, não hesitaremos em denunciar seja aqui, na ONU ou na OEA, nem deixaremos de formar novos “Jasons”. Compreendemos a ampliação em movimento de novas/velhas batalhas que foram/são/serão enfrentadas com sangue e suor pelo sempre jovem Jason nascente, dizendo a todos nós e diante de tantos nós, após mais um golpe: render-se jamais.
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