“O bloco de pedra ameaça triturar o presépio de barracos e biroscas. Se deslizar, estamos conversados. Toda gente lá em cima sabe disso e espera o milagre, ou, se não houver milagre, o aniquilamento instantâneo, enquanto a Geotécnica vai tecendo o aranhol de defesas. Quem vence a partida? A erosão caminha nos pés dos favelados e nas águas. Engenheiros calculam. Fotógrafos esperam a catástrofe. Deus medita qual o melhor desfecho, senão essa eterna expectativa de desfecho.” (Carlos Drummond de Andrade, Favelário Nacional)
O dilúvio que nos atingiu no início de abril nos faz refletir. Terá sido levada pela água ou pela terra toda a iniquidade ou, estranhamente, ela parece se reforçar na cidade que ainda nem terminou de contar seus mortos?
Há mais de 25 anos, ainda relembrando as fortes chuvas, Carlos Drummond de Andrade fez poesia do debate sobre o que fazer com as favelas do Rio de Janeiro: “Urbaniza-se? Remove-se?”, indagava o poeta.
O mesmo debate retorna com força tal que permitiu o revigoramento do tema da remoção, fantasma renascido de períodos sombrios de nossa história. Dessa forma, aqui vai uma simples opinião, em que me afasto tanto das posições extremas que vêem as favelas como um estorvo à cidade quanto daquelas que defendem o direito de se viver sob permanente risco.
Pode causar estranheza a um observador menos atento que, com a volta da democracia ao Brasil, a ideia da remoção de favelas seja defendida com tanta veemência hoje em dia. Foi justamente no período mais sombrio da ditadura militar que esta pode ser executada com tamanha força, a ponto de alterar a vida das mais de 175 mil pessoas que foram removidas (compulsoriamente, na maioria dos casos) e refizeram sua vida em um novo local determinado pelas ‘autoridades’ da época, sem que nenhuma consulta fosse feita a elas, baseada no estigma dos favelados como invasores, marginais, despreparados para a vida urbana…
Estigma que foi construído desde o surgimento da favela, ainda no fim do século XIX. ‘Os favelados são negros, são migrantes, são preguiçosos, são ignorantes, são perigosos…’ Generalizações que revelam a dificuldade de uma cidade que tenta se apresentar com os braços abertos. Que sofre para oferecer cidadania a todos os seus moradores. É mais fácil negá-los, culpá-los, os pobres, por sua situação; afastá-los para onde, supostamente, não poderiam incomodar.
Desse modo, instrumentalizam-se a violência, a Olimpíada ou as chuvas para defender a remoção. Constrói-se um pensamento hegemônico da inviabilidade das favelas e do risco destas para si e para terceiros (sobre as casas de classe média alta na Gávea, no Joá, na Estrada Fróes, em Niterói, que sofreram deslizamentos, nada ouvimos das autoridades). As remoções são, então, a única alternativa possível. Pessoas que estabeleceram seus laços naquela localidade, que têm seus empregos perto, avistam no horizonte nuvens ainda mais ameaçadoras do que as que atingiram o Rio nos dias 5 e 6 de abril de 2010.
A urbanização de favelas é tratada como permissividade por parte do Estado, ao invés de direito dos moradores e dever das prefeituras previsto na Constituição. O duplipensar transforma o que era um avanço na democracia em retrocesso. Para quem? Quais interesses atuam nisso?
É preciso se perguntar por que das cerca de 11 mil famílias moradoras de favelas que iriam ser ‘realocadas’, conforme anunciado pela Prefeitura do Rio nos primeiros dias do ano, 2.500 moram na área da Barra da Tijuca, principalmente nas Várzeas, local que têm recebido inúmeros empreendimentos imobiliários que, diga-se de passagem, são grandes anunciantes nos jornais que têm pregado a remoção como proposta. Há algo além de coincidência nesses fatos?
No outro extremo, por generosos sentimentos ou talvez imaturidade política, defender a permanência da favela in totum, é não apenas querer condenar parte da população ao risco, mas desconhecer o que ocorre dentro das favelas e na vida das pessoas que nelas moram. Uma das principais razões da existência das favelas é a mobilidade social que ela permite ao oferecer uma alternativa de moradia ‘barata’ num mercado imobiliário caro e inviável para a maior parte da população como tem sido o carioca, que permite o acúmulo de capital a ser investido na compra de uma moradia própria.
Não é difícil vermos em alguma cobertura de confronto entre policiais e bandidos numa favela, aqueles que, diferente dos repórteres e policiais que se abrigam, andam calmamente pelas ruas em meio ao intenso tiroteio. Aquele que nunca viu respeitado seu direito de cidadão, que só contou até hoje consigo mesmo e com a sorte, desenvolve um fatalismo que não podemos corroborar. E, da mesma forma, não vê legitimidade em qualquer autoridade que lhe alertar sobre o risco que corre. Na década de 1960, os moradores da extinta Praia do Pinto, no Leblon, ouviram que o terreno da favela era ‘inurbanizável’, daí a remoção da favela, que acabou dando lugar a vários prédios. E não há muito tempo, o secretário de Segurança do Rio hierarquizava em entrevista os efeitos de um tiro em Copacabana e numa favela.
Fica a pergunta: é possível numa sociedade que se quer moderna, receptiva, vitrine e símbolo de uma maneira mais solidária de se viver, mais calorosa, mais humana, tratar com tamanho desrespeito parte de sua população? A noção mais básica de cidadania pressupõe a vida em comum na cidade, herança dos gregos antigos, que com seus escravos, promoviam-na a todo homem livre. Nós, que vivemos após a Revolução Francesa, a Abolição dos escravos e a ‘Libertação’ das mulheres, devemos ser menos que isso? Queremos apenas ser um cartão-postal, com áreas muito bonitas e clean, mas um caldeirão prestes a explodir, como temos vivido?
O Rio de Janeiro se vê numa encruzilhada sobre que tipo de cidade quer ser. Os desafios que se colocam à nossa frente não são as favelas. É como podemos usar todos os eventos que atrairão investimentos para nos tornarmos uma cidade melhor em todos os sentidos, e não apenas num cartão-postal. E isso passa em oferecer alternativas dignas de moradia a todos os seus cidadãos. E se concentrar milhares de pessoas num espaço limitado não pode nem deve ser a única alternativa, os custos sociais das remoções impostas e para locais distantes até hoje reverberam na cidade, que não se tornou nem um pouco menos violenta por isso.
É preciso pensar num sistema de transporte que diminua efetivamente as distâncias na cidade. Qualquer governante que queira de fato enfrentar o problema habitacional no Rio deve romper com as máfias que dominam o caótico e ineficiente sistema de transportes públicos da cidade. Neste caso, sim, não há como fazer diferente.
É pensar num planejamento urbano que destine moradias baratas tanto nas margens da avenida Brasil quanto nos terrenos de propriedade da prefeitura e do estado que ficam na Barra da Tijuca, por que não?
Esse é o desafio. Podemos agora projetar o Rio que queremos para nosso futuro, filhos e netos. Caloroso, afável e de braços abertos como lembrávamos ou ouvíamos dizer; ou triste, rancoroso e de punho cerrado, como temos vivido, e que os únicos (ah, eles existem…) que lucram com isso querem aprofundar…
*Mestre e doutorando em História pela UFF e pesquisador do tema favela.
Fonte: http://www.ibase.br/modules.php?name=Conteudo&pid=2859