
[Correio Braziliense] Morei em São Paulo dos sete anos até pouco depois de terminar a faculdade. Minha família migrou do interior e se ajeitou na franja pobre da cidade, o extremo leste, onde se instalaram os bairros operários de então. Quando, afrontando a sina da maioria dos jovens ali criados, passei no vestibular da USP — que ficava no oposto da cidade —, comecei a conhecer melhor a cara feia da metrópole para os pobres. Meu pai e eu nos levantávamos antes das 4h da manhã e seguíamos em silêncio, quase correndo, como centenas de outras pessoas que ocupavam a escuridão das ruas em direção ao ponto inicial do ônibus. Lá, filas monumentais eram engolidas pelos ônibus velhos, malcheirosos, de vidros quebrados, que saíam tão cheios que sequer paravam nos demais pontos.
Uma procissão de ônibus vindos de vários bairros desembocava na Avenida Celso Garcia, chegando ao Largo da Concórdia, onde a multidão se redistribuía. Parte corria para outros pontos de ônibus e parte seguia para a estação ferroviária. Meu pai tomava o trem até a fábrica e eu mais um ônibus para chegar ao câmpus às 8h ou um pouco depois. Quatro horas dentro de uma única cidade, para chegar ao trabalho ou à escola. Na volta, mais umas três horas. O dia praticamente se esgotava naquela agonia que nem mais era sentida como transtorno. O costume tornava a injustiça e o desconforto contingências normais da vida, como se fosse nosso destino. Parecia ser um preço razoável a pagar pelo fato de se ter um emprego ou ter um filho na faculdade. (mais…)