Aldrey Riechel
“O Marajó é o pingo do i na palavra Brasil. Está ali, sempre visível, mas ninguém percebe”. A analogia é de João Meirelles, presidente do Instituto Peabiru, que divulgou na semana passada a Rede Marajó. O objetivo da rede é agregar organizações em prol de melhorias para uma importante região brasileira que foi esquecida há anos e hoje sofre com problemas ambientais, sociais econômicos.
A região, maior do que sete estados Brasileiros, é o local por onde passam ¼ das águas doces de todos os rios da Terra; é uma área de alta biodiversidade, com a ocorrência de 10% das espécies de vertebrados do Brasil em 0,7% do território brasileiro ; entre as 78 espécies de vertebrados ameaçadas da Amazônia, 35% são encontradas no Marajó.
Por outro lado, existe uma desvalorização da cultura, mais de 90% de seus 425 mil habitantes é considerada pobre ou miserável, a insegurança fundiária é muito alta, quilombolas e populações ribeirinhas estão desprotegidos, mais de 85% dos eleitores tem baixa escolaridade ou são analfabetos, não há um único leito de UTI na região e a estrutura de saúde é calamitosa; a maioria das comunidades sofre as dificuldades do isolamento e a falta de acesso a serviços públicos; 75% não têm acesso a água limpa e 50% não têm energia elétrica, dentre vários outros problemas.
O objetivo da rede é atuar diante dessas problemáticas, elencando prioridades junto à população marajoara, para pressionar o governo na elaboração e implementação de políticas públicas. “A proposta é a criação de uma rede de organizações da sociedade civil, agregando entidades de âmbito local, regional, nacional, e mesmo internacional, dedicadas a questões ambientais, sociais e econômicas, e de pesquisa científica e tecnológica e extensão, para tratar de uma agenda de prioridades para o Marajó”, explica a carta de apresentação da rede.
Confira abaixo trechos da entrevista com João Meirelles:
Amazônia.org.br – Como nasceu a iniciativa de criar a Rede Marajó?
João Meirelles – Essa iniciativa faz parte de um programa de longo prazo chamado São Marajó. Nós [o Instituto Peabirú] fomos convidados pelo fundo Vale a trabalhar a questão das áreas protegidas do Marajó e do Arquipélago, e pensamos que uma das principais questões é que essa atuação deveria ser feita não por uma entidade, mas por um conjunto de organizações, então, daí que surge a rede. Isso porque o Marajó é uma região que ficou para trás no processo de desenvolvimento e reúne uma série de déficits sociais e ambientais que a gente precisaria olhar com mais atenção.
Há uma iniciativa federal, que é o Plano Marajó criado em 2005, e depois se transformou no Território da Cidadania, mas ele vem cumprindo uma agenda mais social, e na questão ambiental ainda tem uma série de deficiências. Umas das propostas que a sociedade civil já tinha, e que a SEMA [Secretária Estadual de Meio Ambiente] aqui do Pará encabeçou foi a de criar uma reserva da biosfera. Então entramos apoiando essa proposta, para que ela possa dar resultados.
Amazônia.org.br – O foco da rede serão as ações ambientais?
Meirelles – A gente tem uma carta de princípios, mas isso ainda tem que ser validado pelos colegas das outras organizações. E não é só uma questão ambiental, tem a questão dos quilombolas, tem a questão de pesquisas cientificas, que é uma área que tem vários brancos no conhecimento cientifico. É uma região maior do que sete Estados do Brasil [AL, RJ, ES, PB, AL, SE, RN], mas não tem uma única unidade de conservação e proteção integral. É uma região onde tem um patrimônio arqueológico inestimável e não existe um único sítio arqueológico protegido.
Esses conjuntos de fatores, que somam as questões de cultura e linguajar, justificam a gente pensar isso não apenas ambientalmente. O próprio conceito de biosfera, o programa da Unesco chama “Homem e Biosfera”.
Amazônia.org.br – E entre as propostas está valorizar a cultura da região. O que seria uma cultura típica desse arquipélago?
Meirelles – O isolamento característico dessas regiões insulares e pobres, de difícil acesso, leva o desenvolvimento de uma cultura própria. Além do fato de a televisão não ter chegado, e existir uma cultura oral muito forte.
Esse isolamento, de anos e anos, leva a características especificas, na culinária, na alimentação no jeito de conviver com os recursos naturais, no linguajar, nas festividades… tudo isso criou uma identidade própria. Só que essa identidade está subvalorizada. Porque as pessoas saem de lá em busca de novas oportunidades. Não há uma valorização de que isso é bom e que é uma coisa que se tem que preservar. Você tem que considerar que 85% das pessoas são analfabetas. Enquanto o Brasil está em boom econômico, lá está em colapso absoluto há 10 anos. É uma região que ficou pra trás. Um dos objetivos principais, o eixo principal, é tratar a auto-estima que passa pela cultura.
Amazônia.org.br – Por que essa região foi “esquecida”?
Meirelles – No período da borracha ela teve uma valorização durante 20, 30 anos, e teve sua importância, até houve desenvolvimento. Depois ela teve uma importância como fornecedora de carne, para a pecuária, para Belém, para Macapá, enfim, para as capitais, até a década de 60. Com a chegada da pecuária da Amazônia, a região vai ficando pra trás, porque são métodos antigos, um tipo de pastoreio que hoje deixou de ter importância, e o rebanho diminuiu pela metade. A região perdeu uma das suas principais fontes econômicas, que era o gado e o búfalo, associado.
A outra fonte econômica era a madeira, a região era uma das grandes processadoras de madeira da Amazônia. Com o aperto da fiscalização e a formalização das atividades, Breves, uma das cidades processadoras, entrou em colapso também. Esse conjunto de dois grandes colapsos levou uma região que já não tinha muito emprego, e onde não havia muitas oportunidades, a entrar em declínio.
Amazônia.org.br – E quais são as oportunidade da região?
Meirelles – Temos algumas alternativas, e o açaí é um delas. Mas é preciso encontrar uma maneira para que essas comunidades, que estão lá isoladas, consigam se beneficiar efetivamente desse boom que o açaí passa.
Mas tem a própria madeira, que pode ser manejada adequadamente, tem a pesca, recursos naturais que inclusive garantiram a presença dessas populações e vem garantindo uma razoável qualidade de vida. Em certos sentidos até melhor que muitas periferias urbanas. Não tem outras questões atendidas, mas esta questão de acesso a alimentos, qualidade de vida, são aspectos importantes.
É um trabalho da territorialidade: identificar o que a gente chama de produtos identitários, produtos que têm uma identidade cultural. Quando você valoriza o queijo do Marajó, isso passa por uma carga cultural muito forte, que é o que justifica esse produto ter um valor maior. É esse tipo de processo que estamos imaginando. Valorizar o açaí do Marajó, o queijo do Marajó, o peixe e tudo, obviamente, em bases sustentáveis.
Amazônia.org.br – Talvez seja um pouco cedo pra perguntar, mas vocês já tem em mente como essa rede vai agir?
Meirelles – O principal papel é identificar prioridades, pressionar as políticas públicas, mas é o que eu chamo de uma pressão do bem. É uma “pressão” para cobrar eficiência, agilidade, e priorização. Então com certeza uma prioridade é essa: criar a unidade de conservação e dar atenção para que as pesquisas científicas das áreas sociais, culturais, ambientais vêm chamando a atenção. Tem já no Marajó uma quantidade bem razoável de estudos da academia, mas a ação do poder público não corresponde a isso.
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