Lei contra o terror e estado de exceção na democracia brasileira

A adoção de uma lei que pode representar o controle da ação política nos coloca diante de um grave momento para a construção de uma sociedade democrática

Edson Teles – Carta Maior / IHU On-Line

Nas últimas semanas tem circulado no Congresso Nacional o Projeto de Lei da Câmara (PLC 101/15) que visa regulamentar o crime de terrorismo disposto no artigo 5o da Constituição Federal. Ao buscar definir o conceito de organização / ação terrorista, o PLC 101/15, proposto pela Presidência da República, criou uma espécie de ornitorrinco. Expressão criada pelo sociólogo Francisco de Oliveira, o “ornitorrinco” refere-se a um animal híbrido, improvável na escala evolucionista e que, no caso deste Projeto, se apresenta sob a marca liberal e de assimilação das mudanças políticas globais.

Há na ação política, notadamente dos movimentos populares, um aspecto de ruptura com o caráter classista e de controle existente no Estado de Direito. Não se trata de negar a importância ou o valor emancipacionista dos direitos conquistados em democracia. Porém, primeiramente, de observar que há uma herança autoritária dentro do Estado de Direito, cuja fonte principal é o legado da ditadura militar instaurada em 1964, mas que vai além e pode ser identificada na estrutura oligárquica, mercantil e antidemocrática da ordem política brasileira.

Em segundo lugar, devemos destacar que a ação destes movimentos, na medida em que um dos alvos é a estrutura antidemocrática existente dentro da ordem institucional, tem um óbvio caráter de ruptura inscrito nos objetivos de sua luta política. Por último, há uma série de direitos conquistados desde a Constituição de 1988 que não são cumpridos, ou por falta de regulamentação, ou pela ação conservadora dos diversos governos do período. Um dos modos de ativar tais direitos, notadamente os sociais, é por meio da pressão em relação às autoridades públicas.

Lembremos do exemplo, aliás nada terrorista, dos movimentos estudantis que nos últimos anos têm ocupado reitorias e instalações universitárias como modo de colocar em questão as várias relações de poder dentro da universidade pública. Se lermos a definição de “violência” como a ação de pressão dos movimentos de ocupação ou de grevistas que utilizam em recurso último os piquetes, e aplicarmos a ideia de “invasão” na lógica das ocupações, teremos a possibilidade de criminalização da ação política dos movimentos estudantis. Ainda que possam ser lidas como ações violentas ou radicalizadas, as ocupações de reitorias estão longe de se configurar como ato de terrorismo. O mesmo poderia ser utilizado para os movimentos de luta por moradia que têm realizado uma série de ocupações de espaços, “bem público ou privado” como diz o PLC 101.

O projeto de lei apresenta uma “exclusão de crime” ao estabelecer que “o disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei”.

Esta possibilidade de “exclusão” nos remete diretamente à crítica contemporânea do acionamento constante de pequenos estados de exceção dentro da ordem democrática.

O estado de direito tem a característica de, cada vez mais e quanto mais for possível, regulamentar ou transformar em lei as práticas sociais. Para tanto, observa-se as regularidades da vida em sociedade, transforma-as em conhecimento científico (vejam que a comissão de reforma é formada apenas por profissionais do direito) e, finalmente, em lei. Entretanto, há na sociedade algo que não pode ser capturado pela normalização devido às suas características de imprevisibilidade, de pluralidade e de origem nas opiniões dissonantes: a ação política.

Por ser imprevisível, a política é incluída no ordenamento por meio da autorização ao poder soberano de decidir sobre o excepcional, aquilo que se exclui do ordenamento. Isto quer dizer que diante do excepcional – leia-se especialmente a ação política – o soberano não precisa cumprir os procedimentos legais exigidos pelo ordenamento, suspendendo-o em nome da necessidade de proteção da dignidade humana, da sociedade e das instituições do Estado. Como vimos, o improvável pode ser uma greve radicalizada, a ocupação de uma reitoria pelo movimento estudantil, ou ainda mais inesperado, manifestações como as de junho de 2013.

Na exclusão de crime de terrorismo encontra-se a estrutura de um pequeno, mas altamente perigoso, estado de exceção. Como vimos, diante do que não foi incluído na lei, temos a decisão transferida para o soberano. Na dúvida sobre a classificação das ações dos movimentos sociais como crime de terrorismo, como no exemplo o caso dos estudantes em ocupações, a decisão sobre se a “conduta individual ou coletiva” foi movida por “propósitos sociais ou reivindicatórios” será de exclusiva competência de um delegado, do Mistério Público e, por fim, de um juiz.

Será uma decisão subjetiva, visto que a lei permite a interpretação entre o que é normal ou anormal, entre a definição de crime ou de movimento reivindicatório. O liame de indeterminação entre a ofensa à ordem e a ação política legítima, entre o fora e o dentro da lei, pode nos lançar em medidas judiciais de bloqueio ou aniquilamento das ações democráticas de transformação das instituições e da realidade atual.

Diante de uma ordem pouco democrática, política e economicamente, de um sistema jurídico arcaico, não reformado no retorno à democracia, com um STF que se assemelha a uma corte monarquista, a adoção de uma lei que pode representar o controle da ação política não estatal, nos coloca diante de um grave momento para a construção de um estado e uma sociedade democráticos.

Seria prudente a paralisação imediata do encaminhamento do PLC 101/15, sua recondução a uma processo de debates e com garantia de ampla participação social e divulgação, sob o risco de se criar um ornitorrinco autoritário com verniz liberal e democrático, faceta que tem marcado a história da república brasileira.

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