Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção – publicado no Brasil pela editora Cosac Naify, em 2012 – é um excelente trabalho de pesquisa que traz as várias faces de uma música aclamada e ao mesmo tempo rejeitada por abordar de forma tão vivaz uma das práticas de segreração mais cruéis cometidas contra negros nos Estados Unidos.
Por Renata Mielli, especial para o Vermelho
Muitas vezes parece que a sociedade sofre de uma “cegueira coletiva” quando se depara com as atrocidades que a humanidade pode cometer contra si própria. Para despertar as pessoas de situações de indiferença – que são tão criminosas quanto os crimes que insistem em ignorar – é preciso um choque, algo que tire a multidão de sua zona de conforto, do seu “círculo de proteção”.
Na voz de uma das maiores divas do jazz, Billie Holiday, um poema de três estrofes escrito em 1936 por Abel Meeropol – um professor universitário de Nova Iorque – se transformou numa das maiores bofetadas de toda a história contra a violência racial que vitimava negros através de linchamentos sangrentos no sul dos Estados Unidos.
Essa música tornou-se tão importante que mereceu uma biografia. O livro do jornalista David Margolick, Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção, conta a história da música que retrata os corpos de negros assassinados e pendurandos em árvores, pela metáfora do “fruto estranho”. Muitos consideram Strange Fruit “como o primeiro protesto relevante em letra e música, o primeiro clamor não emudecido contra o racismo”, na avaliação de Leonard Feather, crítico de Jazz.
Uma música que de tão perturbadora vivia em uma espécie de “quarentena artística”, como diz o autor. Não era seguro cantá-la em qualquer lugar, e mesmo nos lugares onde se poderia testar a força da canção, ela era recebida muitas vezes com reprovação. “Havia um contraste entre a canção trágica de protesto, cantada com profundo sentimento por uma negra que sentia o horror de um linchamento, e os clientes que saíam para se divertir, beber e dar umas risadas”, disse Alden Todd, um dos entrevistados de Margolick. Apesar de não ter sido censurada, e execução de Strange Fruit em rádios era quase “proibida”, pelo mal estar que causava nos ouvintes.
Abel Meeropol era judeu, ativista político e membro clandestino do Partido Comunista. Strange Fruit nasceu como um poema de indignação: ao ver um retrato de um linchamento numa revista, Meeropol escreveu a poesia. Sua primeira aparição pública foi na edição de janeiro de 1937 do jornal sindical The New York Teacher, sob o título de Bitter Fruit. Foi o próprio Meeropol quem depois musicou o poema, que era cantado em rodas de esquerda.
Billie se encontrou com a canção no início de 1939, numa boate frequentada por setores progressistas e engajados da área cultural, política e social de Nova Iorque, o Café Society, onde negros e brancos confraternizavam sem enfrentarem problemas. A primeira gravação da música aconteceu em 20 de abril do mesmo ano, pela Commodore Records, uma pequena gravadora famosa por seu repertório de artistas progressistas.
“São quase todos pretos”
A organização Equal Justice Initiative divulgou em abril de 2015 um relatório sobre a história dos linchamentos nos Estados Unidos. O trabalho é resultado de cinco anos de pesquisa e mais de 160 visitas a sites em todo o Sul dos Estados Unidos. Os autores do relatório compilaram um inventário de 3.959 vítimas de “linchamentos raciais terroristas” em 12 estados do Sul, entre 1877 e 1950.
Em seu livro, Margolick detalha como se dava a maior parte dos linchamentos: ocorria em cidades pequenas e pobres, e muitos tinham o apoio da comunidade. Eram quase espetáculos de entretenimento, que reuniam a população para assistir ao rito bárbaro de matar negros brutalmente e em seguida pendurar os corpos mortos em árvores, para exibir o feito. Os motivos que levavam aos linchamentos eram os mais variados – desde roubos e estupros, ou o delito de se dirigir a uma pessoa branca de forma desrespeitosa, ou até mesmo para punir um negro que ascendia socialmente. “Era apenas hora de lembrar aos negros ‘metidos’ que deles deviam saber qual era o seu lugar”.
Então, imagine por um minuto o que representava, em 1939, chegar numa boate e ouvir uma música que denunciava os corpos dos negros assassinados e pendurados em árvores no Sul. Billie Holiday estava esfregando a realidade na cara do público, pior, de um público na sua maioria formado de brancos.
Strange Fruit era a última música do repertório de Billie Holiday. Ela a cantava numa atmosfera quase sepulcral: palco escuro, apenas um feixe de luz a iluminar o seu rosto, adornado com uma gardênia atrás da orelha. Ao final, invariavelmente se seguia um silêncio terrível, que depois de alguns minutos era interrompido por aplausos. Era o público sendo arrancado da sua zona de conforto. Jack Schiffman descreveu como se sentiu quando Billie se apresentou no Apollo Theater, no Harlem, em 1943. “E quando ela arrancava as últimas palavras de sua boca, não havia uma única alma, negra ou branca, que não se sentisse meio estrangulada. Seguia-se um momento de silêncio pesado, opressivo, e então uma espécie de som sussurrante que eu nunca tinha ouvido antes. Era o som de quase mil pessoas suspirando”.
O livro mostra como a repercussão da música na imprensa norte-americana foi estrondosa. A revista Variety disse que Strange Fruit “tem uma atração difícil de explicar, embora seja basicamente uma canção deprimente. Não há meio-termo na canção de miss Holiday: os clientes ou gostam muito dela ou não gostam nada”. O colunista do New York Post, Samuel Grafton disse que Strange Fruit “bate forte”, e mais adiante a classifica como “uma obra de arte fantástica, perfeita, que inverte a relação comum entre um artista negro e sua plateia branca: ‘eu estava divertindo vocês’, ela parece dizer, ‘agora me escutem’. As educadas convenções entre as raças desaparecem” e, então finaliza: “Se a raiva dos explorados um dia se elevar o suficiente no Sul, ela já terá a sua Marselhesa”. Por conta de Strange Fruit, Billie Holliday foi a primeira pessoa negra a ter uma fotografia publicada em uma revista como a Time ou a Life.
O livro de David Margolick mostra como rapidamente Strange Fruit tomou conta de Billie Holiday, a tal ponto de música e cantora terem se tornado insaparáveis, até 1959, quando Billie morreu.
Outros artistas arriscaram gravar Strange Fruit. Nina Simone foi uma delas, mas a cantava raramente porque considera a canção “muito difícil”. Mais recentemente, já na década de 80, a banda de rock Siouxsie and the Banshess gravou uma versão de Strange Fruit, denunciando a situação dos negros em países africanos.
Apesar de toda a influência e impacto que Strange Fruit teve, Margolick chama a atenção para o triste fato de a música e o seu papel histórico serem “surpreendentemente desconhecidos hoje”. E é o próprio tema da canção que explica essa situação na sua avaliação. Para Margolick, Strange Fruit “é uma anomalia, tanto dentro como fora da obra de Holiday”.
Quase 80 anos depois, a sensação ao se ouvir a interpretação de Billie Holiday para Strange Fruit ainda é a mesma relatada no livro pela atriz Billie Henderson “de repente senti uma pontado no plexo e mal pude respirar. Foi um sentimento tão profundo. Eu entendi. Eu entendi. Dava para sentir o cheiro da carne queimada. Ela era impiedosa”.
A música
Strange fruit
Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant South,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.
Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.
A tradução
Fruta Estranha
Árvores do sul dão uma fruta estranha,
Sangue nas folhas e sangue nas raízes,
Corpos negros balançando na brisa do sul,
Frutas estranhas penduradas nos álamos.
Cena pastoril do heróico sul,
Os olhos inchados e a boca torcida,
Perfume de magnólias, doce e fresco,
E de repente o cheiro de carne queimada.
Aqui está a fruta para os corvos puxarem,
Para a chuva recolher, para o vento sugar,
Para o sol apodrecer, para a árvore pingar,
Aqui está a estranha e amarga colheita
Nossa! Que triste.