Por Leo Lince, no Correio da Cidadania
O poder corrosivo do dinheiro na definição dos rumos da política é um problema tão antigo quanto a Sé de Braga. Não se trata, por suposto, de invenção recente. Além de antiga, essa é uma questão crucial para a sobrevivência da democracia política. Os grandes partidos da ordem dominante, que hoje chafurdam neste velho lamaçal, só merecem a execração pública porque pegaram o bonde andando e sentaram na janelinha.
José de Alencar, não o fabricante de camisetas e cachaça que foi vice do Lula, mas o autor de “O Guarani”, um dos grandes da nossa literatura romântica, tratou com absoluta propriedade do tema ainda nos primórdios do ordenamento da nossa representação política. Foi também parlamentar e escreveu coisas que até hoje conservam plena atualidade. Exemplo: “o peso do dinheiro no resultado da representação é uma extorsão da soberania popular”. E mais: “quem faz do voto uma mercadoria é o candidato (que compra) e não o eleitor (que vende), a corrupção é a arma do letrado e não do analfabeto”. Diagnósticos certeiros sobre problemas que se avolumaram ao longo do tempo.
As campanhas eleitorais no Brasil estão entre as mais caras do mundo. Cada eleição é mais cara do que a anterior. A trajetória do custo altíssimo, depois de passear por empreiteiros, banqueiros, “petequeiros” e tesoureiros, termina sempre no mesmo lugar: o erário público. Basta seguir o curso do dinheiro para saber quem paga a conta no final. O doador só é generoso porque mama o dobro do que deu nas tetas do Tesouro. Nenhum financiamento público exclusivo custaria mais caro.
Além de caras, as campanhas se organizam de sorte a tornar impossível a fiscalização. Há milhares de candidaturas individuais que arrecadam e gastam sem qualquer limite razoável. São os candidatos que definem o quanto vão gastar. Um caos que ninguém controla. A Justiça Eleitoral só acompanha, e mal fiscaliza, os gastos declarados do “caixa um”. O “caixa um e meio”, a chamada doação oculta que se avoluma a cada pleito, torna ainda mais opaco o processo e mais difícil a fiscalização. Do “caixa dois”, então, nem se fala: só quando estoura escândalo dos grossos é que se vê o tamanho do prejuízo.
Os dados, precários, pois se limitam aos gastos declarados, sobre os financiadores de campanha revelam que no Brasil, mais do que em qualquer outro país do mundo, há um peso desmedido das fontes empresariais. A contribuição cidadã, vinda de pessoas físicas, é diminuta, apenas residual. Mal comparando, pois as realidades são bem distintas: nos EUA, pleito de 1984, 10% dos eleitores registrados contribuíram. No Brasil, pleito 1994, menos de 0,1%. Em número de pessoas: 10 milhões contra 75 mil. Na realidade, um seleto grupo de grandes corporações empresariais domina o mercado de financiamento de campanha eleitoral e, a partir deste fato indiscutível, bloqueiam a transformação de maiorias sociais em maioria política.
O formato atual de financiamento perpetua o status quo, estreita os vínculos entre o conservadorismo político e as grandes corporações que dominam a economia. Ao mesmo tempo, cria obstáculos intransponíveis para que novos valores e interesses sociais conquistem espaços nas instituições representativas. Hoje, no Brasil, governar é intermediar negócios. E o artigo primeiro da Constituição, em deslocamento trágico, pode ser lido de outra maneira: “todo poder emana dos financiadores de campanha e em seu nome está sendo exercido”. Vale a pena transcrever alguns depoimentos altamente reveladores de tão dolorosa realidade.
José Roberto Arruda, filmado recebendo maços de dinheiro por ocasião do “mensalão” do DEM, depois de renunciar ao governo do Distrito Federal foi entrevistado pela edição on line da revista Veja. Diante da pergunta direta – o senhor é corrupto? – deu a seguinte resposta: “infelizmente, joguei o jogo da política brasileira. As empresas e os lobistas ajudam nas campanhas para terem retorno, por meio de facilidades na obtenção de contratos com o governo ou outros negócios vantajosos. Ninguém se elege pela força de suas ideias, mas pelo tamanho do bolso. É preciso de muito dinheiro para aparecer bem no programa de TV. E as campanhas se reduziram a isso”.
Entrevistado pela Folha de São Paulo (10/11/2010), o neopetista André Vargas, aquele dos punhos cerrados contra o ministro Joaquim Barbosa e agora preso pela Lava-Jato, então reeleito na maior bancada federal do partido que recebera o maior volume de recursos das grandes corporações, declarou com conhecimento de causa: “depois de uma eleição como esta, ou aprovamos o financiamento público ou permitimos que o deputado se vista como piloto de F-1, cheio de patrocínio pelo corpo”.
O jornalista Marcelo Coelho, em artigo na Folha de São Paulo (12/12/2013), lista informações sobre gastos eleitorais: “dos 6 bilhões arrecadados nas eleições de 2010, 97% vieram de contribuições feitas por pessoas jurídicas. Tirania do poder econômico, ultraje à igualdade política, plutocratização do sistema político, rabo preso dos representantes”. No dia seguinte, no mesmo jornal, artigo assinado por Fernando Rodrigues acrescenta outros dados: “Dilma elegeu-se em 2010 com doações de meras 1.842 fontes diferentes. Arrecadou 137,6 milhões. Foram 1.513 pessoas físicas, que doaram só 2% do total. E 329 empresas que entregaram para a petista 134,8 milhões, 98%!”.
Oslain Santana, delegado da Polícia Federal especializado em crimes corporativos, em entrevista de página inteira em O Globo (20/20/2013), declarou: “quando você investiga um caso de corrupção, desvio de dinheiro público, vai ver lá na frente que tinha um viés para financiar campanha política. Então, se resolvessem fazer uma reforma política, diminuiria muito o crime de corrupção”.
Depois de enfatizar que fala como “técnico”, insiste: “esse sistema tem que mudar. Só o financiamento de pessoa jurídica, sem limites de gasto, não tem como fiscalizar isto. A justiça eleitoral não tem estrutura. A polícia não tem estrutura. Esse sistema que tem hoje é para facilitar o caixa dois de campanha.Uma proposta que achei bastante coerente foi colocar um limite para doação, só de pessoa física e parte do financiamento por recursos públicos. Sairia muito mais barato para a União o gasto com o financiamento, que o desvio de recursos públicos com as fraudes”.
Testemunhos semelhantes, aos milhares, poderiam ser listados. Qualquer cidadão que acompanhe os acontecimentos da nossa política sabe que o financiamento empresarial de campanha é um fator incontrolável de corrupção. O direito de votar, assegurado de maneira igualitária ao cidadão, só produzirá eficácia plena quando o “direito de ser votado” deixar de sofrer, como acontece agora, a interferência brutal do poder econômico.
Independente de outras deliberações importantes – voto facultativo ou obrigatório, sistema distrital ou proporcional, eleições entremeadas ou coincidentes -, essa é a questão crucial. Não foi por acaso que, na farsa em curso no Congresso Nacional, onde se articula o retrocesso de uma contrarreforma política, foi neste tema que os conservadores se viram obrigados a atropelar o regimento para refazer uma votação perdida. O financiamento empresarial de campanha é a mola mestra da corrupção sistêmica.
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Léo Lince é sociólogo.
Foto: Agência Brasil.