Por Gabriel Brito e Valéria Nader, no Correio da Cidadania
Num ano tão marcado por derrotas das pautas progressistas, com fortíssimo avanço conservador em todas as frentes, uma notícia foi contra a maré: a eleição da Chapa 20, organizada pela esquerda anticapitalista, para a reitoria da UFRJ, que a partir de julho será exercida por Roberto Leher, professor da Faculdade de Serviço Social.
“É importante assinalar que a vitória foi impulsionada por inédita mobilização estudantil, que imprimiu um ambiente crítico, luminoso e criativo ao processo eleitoral. O protagonismo docente, vibrante, e dos técnico-administrativos, igualmente luminoso e vibrante, substantivou o debate sobre autonomia, a produção do conhecimento novo, as relações de poder capazes de engendrar outra perspectiva de democracia. Debatemos muito a função social da universidade pública no capitalismo dependente e o sentido da produção do conhecimento”, disse, em entrevista ao Correio da Cidadania.
Sobre a conjuntura da Educação, é bem crítico em relação à atual orientação do governo, de seguir as cartilhas dos empresários do setor, perfeitamente representada no documento Pátria Educadora, divulgado pelo governo no início do ano. “Renato Janine (novo ministro da pasta) conhece determinadas particularidades da vida universitária, o que é bom, pois o diálogo pode ser mais qualificado. Entretanto, ainda não ficou claro qual será a sua autonomia no MEC e, mais amplamente, nas políticas governamentais. O documento Pátria Educadora expressou uma fragilidade do MEC”, analisou.
Leher também analisou o atual quadro de greves dos professores, que já ocorreram em diversos estados. “São lutas com forte participação de jovens e isso tem acentuado características importantes, como a crítica ao sindicalismo mais acomodado, ou burocratizado. Reivindicam participação mais direta da base, o que os torna movimentos mais impetuosos. No entanto, o grosso da pauta da educação não pode estar dirigida aos municípios e estados, ainda cruciais, mas sem poder de alterar a ordem de grandeza das verbas públicas para 10% do PIB, exclusivamente para a educação pública. Essa agenda geral é decisiva”, falou.
A entrevista completa com Roberto Leher pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Você acaba de ser eleito reitor da UFRJ. Qual é a atual situação, em sua visão, das universidades federais do país, a UFRJ entre elas, e como imagina que vá ser o seu mandato? Quais os seus objetivos primordiais e, também, quais as chances de efetivação desses objetivos?
Roberto Leher: A eleição de nossa chapa marca uma mudança na agenda da UFRJ que, com nosso programa, ganha novos elementos e escopo. É importante assinalar que a vitória foi impulsionada por inédita mobilização estudantil, que imprimiu um ambiente crítico, luminoso e criativo ao processo eleitoral. O protagonismo docente, vibrante, e dos técnico-administrativos, igualmente luminoso e vibrante, substantivou o debate sobre autonomia, a produção do conhecimento novo, as relações de poder capazes de engendrar outra perspectiva de democracia. Debatemos muito a função social da universidade pública no capitalismo dependente e o sentido da produção do conhecimento, frente aos grandes problemas dos povos.
Desse modo, foi possível discutir as grandes questões da educação e as políticas para a Ciência e Tecnologia a partir dos problemas particulares da UFRJ. Há muitos anos, o debate sobre o porvir da instituição não era tão vigoroso e intenso. Claramente, a eleição da Chapa 20 foi um gesto em defesa da universidade autônoma, crítica e democrática. Foi um ato político-acadêmico generoso em prol do público.
Os desafios são imensos. Entre 2007 e 2014 a expansão da UFRJ foi enorme. Ampliou em 63% o número de estudantes de graduação, criou 100 novos cursos de graduação, ampliou em mais de 50% os seus cursos de doutorado, incorporou mais 2,5 mil mestrandos e doutorandos, somando, atualmente, 12 mil pós-graduandos.
No período em questão, foram criados com enorme esforço da comunidade universitária um novo campus, o de Macaé, e um polo universitário em Xerém, Duque de Caxias, base de um futuro novo campus. Certamente, a crise da Petrobras irá atingir os investimentos que a prefeitura realizava no novo campus, em virtude da queda abrupta dos royalties para o município de Macaé. A crise da Petrobras irá alcançar os recursos repassados para pesquisa, em especial na COPPE, geologia, química etc.
O problema não é apenas conjuntural. As verbas de investimento foram cortadas pela metade entre 2011 e 2014, as verbas de custeio foram erodidas pelos gastos com as famigeradas terceirizações e, desde o final de 2014, os contingenciamentos produziram um quadro devastador. Na UFRJ, o contingenciamento correspondeu a R$ 60 milhões em 2014, o que equivale a toda a verba para investimento! Neste ano, dos 120 milhões que deveríamos ter recebido para custeio até abril, foram liberados efetivamente apenas R$ 85 milhões e, até a data de hoje, desconhecemos o quanto foi retirado das universidades federais com o corte de R$ 9,5 bilhões do orçamento do Ministério da Educação (MEC).
A tarefa prioritária, obviamente, é lutar por outro parâmetro de financiamento, articulado com a ANDIFES (Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições de Ensino Superior), com setores parlamentares, com movimentos sociais e sindicais. É preciso revisar a matriz de financiamento (a chamada matriz Andifes) objetivando adequar o financiamento à expansão verificada nos últimos anos, contemplar as particularidades das instituições (hospitais, prédios tombados, campi, laboratórios etc.) e a exaustão da infraestrutura existente.
A luta terá de rever o parâmetro de financiamento da assistência estudantil, muito abaixo das demandas do presente, e um novo parâmetro para financiamento dos hospitais universitários, atualmente restritos aos recursos do programa de Reestruturação dos Hospitais das Universidades Federais (REHUF) e aos recursos do SUS. Isso significa enfrentar a lógica do chamado ajuste fiscal, que pode comprometer de modo duradouro o futuro da universidade pública brasileira.
Correio da Cidadania: Qual a sua opinião sobre a greve dos professores e trabalhadores das universidades federais, deflagrada há cerca de duas semanas? O que responderia, nesse sentido, a estudiosos e professores como Daniel Aarão Reis, um crítico de nossa realidade política, econômica, social e educacional, mas que declarou ser contrário às greves nas universidades pelo fato de os maiores prejudicados serem os alunos?
Roberto Leher: A greve eclode nesse contexto de dificuldades que as universidades vivem em todo o país. Não casualmente, o maior protagonismo é estudantil, pois são os estudantes que sofrem as maiores consequências do sub-financiamento das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). A situação da assistência estudantil é aviltante, indigna, revoltante. Como não compreender a justeza dessas reivindicações? Creio que Daniel poderia utilizar seus conhecimentos na área de história para melhor interpretar o significado das greves nas últimas décadas.
Se não houvesse greve em 1991, contra as medidas de Collor, a gratuidade teria caído, um problema de enorme proporção, num país cujo parâmetro de eficiência é o dos fundos de investimentos que controlam as organizações privadas de educação superior. Os concursos não seriam para o Regime Jurídico Único e os docentes e técnicos estariam sem carreira que reconhecesse princípios como o concurso público, a progressão por titulação, o regime de dedicação exclusiva que, afinal, possibilitou a expansão da pesquisa.
Como é possível um historiador ignorar esses fatos históricos? Como o autor explica que, no curso atual das greves, a maior pressão pela greve venha justamente dos estudantes, tidos como os mais prejudicados? Penso que o debate deve ser mais sereno e profundo, evitando o uso de argumentos que não contribuem para a melhoria das universidades. Desse modo, é legítimo que professores avaliem que a greve não é um instrumento de luta em dada conjuntura, mas é importante que o debate não ecoe apenas o senso comum conservador.
Correio da Cidadania: Como professor de uma das universidades federais de peso no país, a UFRJ, e mediante a atual conjuntura política e econômica, de graves conflitos e forte recessão, o que tem a dizer da educação em geral nos mandatos de Dilma Rousseff, especialmente no atual, que começou com cortes orçamentários, inclusive o redimensionamento do Financiamento Estudantil (o Fies)?
Roberto Leher: A demanda por educação superior é imensa no Brasil. A presidenta Dilma alterou as prioridades das políticas públicas, fortalecendo a formação do trabalho simples, por meio do PRONATEC e, no caso da educação superior, a formação massificada e superficial da juventude por meio do Fies. Em 2010, foram disponibilizados algo como 70 mil contratos; em 2014, o total já ultrapassou 750 mil contratos; e a previsão em 2015 era de 1,3 milhão de contratos do FIES.
Certamente, Dilma e o MEC seguiram tentando contemplar a agressividade dos fundos de investimentos que controlam as empresas educacionais. Sob o ponto de vista dos estudantes, em virtude do fato de que não existem vagas públicas para todos, a reivindicação da ampliação do programa é compreensível.
Do ponto de vista das empresas, a expansão exponencial do FIES criou as bases para o processo de monopolização do setor. O problema é que o custo para o Estado é altíssimo e, diante da política de ampliação do “superávit primário”, o programa tornou-se muito custoso, levando o governo a tentar freá-lo, criando regras mais precisas para que o estudante possa ter acesso ao mesmo. Na ótica dos fundos de investimento que controlam o setor privado, o ideal é que o programa tivesse uma expansão balizada pelo mercado.
O custo tornou-se muito alto para o Estado, em particular em um contexto em que a inadimplência dos tomadores de crédito (os estudantes) seguirá crescendo, em virtude do ambiente econômico do país. Em cinco anos, o montante aplicado no FIES passou de R$ 1 bilhão para R$ 13,5 bilhões. Em 2015, a expectativa das corporações era de que as verbas públicas alcançassem mais de R$ 15 bilhões. A conta não fecha! O ajuste para elevar o superávit primário demandado pelos rentistas levou o MEC a cortar verbas da educação pública, preservando, mais do que o desejável, os recursos do FIES.
Correio da Cidadania: O que é, efetivamente, o documento intitulado “Pátria Educadora”, um dos motes que o governo tentou utilizar positivamente em seu início de mandato?
Roberto Leher: O documento elaborado pela Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) busca harmonizar a política educacional com o que seriam as novas estratégias econômicas do país, após a crise do setor de commodities. A formulação geral é que quem melhor conhece as demandas educacionais são os empresários e, por isso, estes devem seguir dirigindo a educação pública.
O documento é ousado ao propor que o federalismo deve seguir o modelo do SUS, pois com isso explicita que o Estado deve indiferenciar as instituições públicas e privadas, em claro benefício para estas últimas. Este é o sentido do Art.5 do Plano Nacional de Educação. Nada de novo em termos de política. Nova é a explicitação de que o grosso da força de trabalho deve estar preparada para atuar nas “maquilas”, à semelhança do México.
O ministro da SAE, Mangabeira Unger, sustenta que o Brasil poderia ser uma plataforma de exportação cuja vantagem comparativa é o treinamento básico da força de trabalho e a brutal flexibilização da força de trabalho, por meio das terceirizações que convulsionam o mundo do trabalho.
Correio da Cidadania: A pasta da Educação foi a única que viu a queda de um ministro nesse mandato. Considera que o novo ministro, Renato Janine Ribeiro, possa encaminhar algo auspicioso na área educacional?
Roberto Leher: Renato Janine conhece determinadas particularidades da vida universitária, o que é bom, pois o diálogo pode ser mais qualificado com os reitores e demais dirigentes da educação. Entretanto, ainda não ficou claro qual será a sua autonomia no MEC e, mais amplamente, nas políticas governamentais. O documento da SAE expressou uma fragilidade do MEC. Mas a disposição do MEC de seguir uma política mais consequente ainda é incerta.
Sem uma visão estratégica mais ampla sobre a necessidade de o MEC apoiar as suas universidades de modo efetivo, redimensionando os recursos de custeio e capital, e de buscar formas para fortalecer o padrão unitário de qualidade na educação básica, ficaremos estagnados na agenda educacional destrutiva que está em curso no país. Entregar a educação aos setores dominantes e às corporações comprometerá toda uma geração de jovens, um desastre.
Correio da Cidadania: Para além das universidades federais, o país vem presenciando greves de professores nos níveis estadual e municipal, muitas delas bastante combativas, outras bem prolongadas, como são os casos de São Paulo e Paraná. E elas têm surgido a partir de novos elementos, sem anuência ou até existência do sindicato representativo. O que pensa desses novos formatos e do futuro do sindicalismo brasileiro tradicional?
Roberto Leher: Os trabalhadores da educação básica vêm protagonizando lutas muito relevantes desde 2011. Essas lutas acontecem em todo país, mas ainda carecem de espaços comuns de articulação, como poderia ser o Encontro Nacional de Educação, realizado em 2014 e, infelizmente, com novo evento nacional em 2016. Essas greves rompem com a agenda estritamente econômico-corporativa, abordando temas como avaliação, a dita meritocracia, os materiais pedagógicos impostos pelas corporações etc.
São lutas com forte participação de jovens trabalhadores e isso tem acentuado características importantes, como a crítica ao sindicalismo mais acomodado, ou mesmo burocratizado. Reivindicam participação mais direta da base, o que os torna movimentos mais impetuosos. No entanto, o grosso da pauta da educação brasileira não pode estar dirigida aos municípios e estados, ainda cruciais, mas sem poder de alterar a ordem de grandeza das verbas públicas para 10% do PIB, exclusivamente para a educação pública.
Essa agenda geral é decisiva. Ao mesmo tempo, é preciso ampliar os debates sobre o sentido da educação para o socialismo e no socialismo a que nos instou Florestan Fernandes. A educação pública não pode seguir tolhida pela agenda particularista do capital, dos governos e das igrejas.
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Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.