Onde a falta d’água encontra a luta de classes

Na favela do Itam, próxima à mega-fábrica da Brasil Kirim, a única fonte de água da comuidade é um poço privado de uma chácara abandonada na região
Na favela do Itam, próxima à mega-fábrica da Brasil Kirim, a única fonte de água da comuidade é um poço privado de uma chácara abandonada na região

Em Itu, cidade paulista mais atingida pela crise, piscinas dos condomínios estão cheias. Mas obras que abasteceriam população foram adiadas — até a revolta começar…

Por Laura Capriglione, da Ponte | Imagens: Mídia Ninja

Em 2007, a prefeitura de Itu (102 km de São Paulo) deu cabo da autarquia pública que cuidava da água e do esgoto da cidade e privatizou o serviço, entregando-o a uma empresa chamada Águas de Itu. Dizia-se que, enfim, a cidade estaria livre de privações como as ocorridas em 1991, quando um vendaval destruiu barragens, interrompendo o abastecimento da cidade por três dias. Ou como em 1999–2000, quando uma estiagem severa, a pior que o município tinha enfrentado até ali, também deixou a população por dois dias sem água.

O edital de licitação que acabou privatizando a água e esgoto de Itu previa que o serviço deveria ser prestado “de modo a atender as necessidades de interesse público, correspondendo às exigências de qualidade, continuidade, regularidade, eficiência, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação, segurança e modicidade das tarifas”.

O papel aceita qualquer coisa. Mentiras, inclusive.

Pois a empresa Águas de Itu que venceu a licitação fracassou e vem fracassando em cada um dos quesitos do edital.

Classe média, pobres e doentes da cidade com 163.882 habitantes (estimativa IBGE para 2013) sofrem desde fevereiro com um racionamento cruel da água que, em alguns bairros, já contabiliza 55 dias de torneiras secas. Por toda a cidade veem-se faixas e cartazes afixados às fachadas: “Itu pede Socorro!”

O incrível é que foi apenas depois de um protesto ocorrido em 22 de setembro passado, quando se reuniram 2.000 pessoas em frente à Câmara Municipal, no centro da cidade, para pedir água, um direito humano essencial, que a Prefeitura e a empresa Águas de Itu resolveram se mexer.

Só para lembrar, o protesto incluiu centenas de donas-de-casa e senhoras católicas da cidade, que levaram ovos e tomates para arremessar contra os políticos e contra o prédio da Câmara. Os adolescentes que acompanhavam as senhoras encarregaram-se do lançamento de pedras.

A Tropa de Choque foi chamada para dispersar o protesto dos sem-água, e a manifestação acabou com bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo sobre mulheres, idosos e até crianças.

Poucos dias depois, o prefeito Antônio Luiz Carvalho Gomes, o “Tuíze” (PSD), assustado com a rebelião, anunciou que a Águas de Itu construiria uma adutora para trazer água do rio Mombaça, que fica a 22,5 quilômetros do centro da cidade. A obra, com prazo de quatro meses para ficar concluída, custará R$ 30 milhões. A previsão é que seja inaugurada em janeiro de 2015, podendo suprir 50% da demanda por água da região central da cidade, em que vivem 100 mil pessoas.

Deve resolver.

Outra providência só tomada depois dos protestos: na semana passada – e só na semana passada —, a empresa privada que administra água e esgoto iniciou a limpeza (desassoreamento) do fundo dos sete reservatórios de água que abastecem a cidade. Estão cheios de lixo e lama, resultado da erosão das margens. Com isso, aumentará em 30% a capacidade de armazenamento de água nas represas da cidade.

O coronel Marco Antônio Augusto, secretário municipal de Segurança, Trânsito e Transportes, atualmente incumbido também da missão de ser o porta-voz do Comitê de Gestão da Água, constituído emergencialmente para lidar com a crise, admite: “Nas análises que a gente faz agora, fazendo parte do comitê, a gente considera que deveria ter acontecido mais incrementos de investimentos.”

Desde janeiro, sabia-se que era alarmante, gravíssima, a situação climática. Mas tudo o que o prefeito fez foi decretar o fornecimento de água a cada 48 horas. Noite sim, noite não. Investimento novo, nenhum. Se tivesse sido iniciada em janeiro, teria ficado pronta em maio a obra para levar a água do rio Mombaça a Itu. A cidade e seus habitantes teriam sofrido menos.

Mas, quem se importa?

A reportagem perguntou ao coronel Marco Antonio Augusto se o investimento na adutora do rio Mombaça e na limpeza dos reservatórios podia ser considerado como o resultado concreto dos protestos de setembro:

“Foi sim. Foi logo após aquela manifestação que o governador [Geraldo Alckmin] entrou em contato com o prefeito. E vou dar uma informação importante. Nós percebemos que, na manifestação de 2.000 pessoas em frente à Câmara, havia muitas senhoras, que tinham um recado: ‘Vocês atingiram esta classe’. Eram senhoras acima de 50 anos. Havia muita garotada também, mas as senhoras nos chamaram a atenção.”

Como se vê, a má-vontade de São Pedro em fazer chover, o clima e El Niño são só parte da explicação para a crise hídrica de Itu. Mas tem mais: a apropriação privada e sem controle de um bem essencial à vida?—?e cada vez mais escasso: a água.

O exemplo da grande indústria cervejeira de Itu:

No portfólio de produtos da Brasil Kirin, que fabrica as cervejas Devassa, Schin, Nova Schin, Baden Baden, Cintra, Eisenbahn, Glacial, Kirin Ichiban, além de água, refrigerantes, sucos e energéticos, consta a informação, exibida com orgulho: a empresa teve um faturamento bruto em 2011 de R$ 6.886 bilhões, um crescimento de 13,23% em relação a 2010.

Em 2012, a receita bruta alcançou a marca dos R$ 7,4 bilhões, recorde na história da empresa, conseguido graças a um marketing agressivo, que tem como foco os jovens. Entre as ações publicitárias da empresa, destacaram-se as propagandas “Tenha sua Primeira Vez com uma Devassa”, ou “Na Primeira Vez, Todo Mundo Treme”, obviamente destinadas a promover a associação entre os jovens e os produtos da empresa, particularmente a cerveja Devassa.

Uma das principais plantas fabris da Brasil Kirin localiza-se exatamente na cidade de Itu. É ali que fica a sede da empresa, que tem outras 12 fábricas espalhadas pelo país, respondendo pela produção de 3,250 bilhões de litros de bebida por ano. Goró para mais do que muitas vidas.

Pois se você pensa que a matéria-prima mais importante para a fabricação de cerveja é o lúpulo ou a cevada, a verdade é que o ingrediente sem o qual não tem cerveja nenhuma chama-se água. É tão importante que o logotipo da Brasil Kirin não estampa nenhum ramo de cevada. Tem, isso sim, o ideograma japonês que representa a água.

É por essa razão que a fábrica da Brasil Kirin está assentada sobre uma área em Itu que está cheia de água. Tem um belo lago cercado de mata por todos os lados, tem fontes subterrâneas jorrando, tem reservatórios para a coleta de água de chuva.

Ali tem (muita) água.

Segundo o relatório de sustentabilidade de 2013 da Brasil Kirin, a empresa usa 3,54 litros de água para produzir um litro de bebida. Portanto, para produzir os 3,250 bilhões de litros de bebida por ano, são necessários 11,5 bilhões de litros de água. Só para ter uma idéia da enormidade disso, basta dizer que é água suficiente para encher 4.600 piscinas olímpicas.

A maior parte dessa água (64,25%), segundo o relatório da própria Brasil Kirin, é extraída diretamente dos lençóis freáticos, por intermédio de poços artesianos.

Vidas secas

Quem diria que quase ao lado, a poucos quilômetros da fábrica de cervejas, o povo ituano seja obrigado a consumir tempo, saúde e esforço físico (demais) em uma busca desesperada por água potável. Sem nenhuma mísera gota na torneira para cozinhar, tomar banho, descarregar a privada, fazer faxina, lavar louça.

Cidade dos exageros, onde tudo é grande, Itu há anos ostenta na sua praça principal um semáforo e um orelhão gigantes. Agora, esse cenário foi aperfeiçoado. Espalharam-se pela cidade gigantescas caixas d´água de 20 mil litros, além de um contêiner com capacidade para 70 mil litros, e de reservatórios de plástico, que se parecem com sacos de leite gigantes, mas que são cheios de água.

Márcia Aparecida Molena Müller, de 37 anos, dona-de-casa, estava na fila da água montada em volta de um reservatório para 20.000 litros de água. Esperava sua vez de encher um galão de água para levar para casa. Quem fazia isso antes era o marido dela, que ia e voltava em sucessivas viagens, até abastecer a caixa d´água de 500 litros que eles têm em casa. “Agora, eu é que tenho de fazer isso porque ele estourou a cartilagem da mão direita, de tanto transportar água”, diz ela.

A rotina das filas de água só teve um alívio no fim da semana passada, quando a cidade viu despencar uma chuva redentora. Em dois dias (quinta e sexta), choveram 70 mm de água. Foi um imenso alívio –o povo colocando panelas, vasilhas, vasos, baldes, bacias, copos, jarras e até a boca aberta para recolher as gotas caindo do céu.

No Jardim Alberto Gomes, na rua Alexandre Tocheton, uma rua em que vivem 60 famílias, nove pessoas doentes de cama aguardam pacientemente pela caridade que lhes trará a água de que necessitam para matar a sede e resolver questões de higiene mais elementares.

A rua completou na última sexta-feira 23 dias sem água, mas há casas que já inteiraram um mês de torneiras secas. Isso, apesar de a Prefeitura garantir que atende prioritariamente os acamados durante as distribuições gratuitas de água por carros-pipa contratados.

Milena é uma autista com neurofibromatose de 7 anos. Está sem água. Maria de Lourdes tem 86 anos e está 30 dias sem água. Toma banho de gato. Vicencia de Oliveira tem 94 anos. Está há 23 dias sem água, assim como Catarina Guimaraes, de 85 anos.

A reportagem encontrou os acamados na seca, reclamando que dependem de doações de água para viver, já que, em vez da visita dos carros-pipa da Prefeitura, quem lhes tem aparecido são os traficantes de água, gente que enche grandes reservatórios de água colocados nas caçambas de caminhonetes ou nos porta-malas de carros de passeio ou kombis, e sai vendendo o produto pelas ruas. Mil litros, na semana passada, saíam por R$ 120. Mas os acamados não tem dinheiro para essas extravagâncias.

A Prefeitura diz que se trata de uma contravenção essa venda, já que os “traficantes” não têm autorização para o transporte de água e nem seguem protocolos de segurança e higiene.

“Estamos já com patrulhas da Guarda Municipal e até da PM para tentar pegar essas pessoas em flagrante”, disse o coronel Marco Antonio Augusto.

Parece coisa de sertão nordestino…

“Se achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam cheios, arrastando os pés. Fabiano comunicou isto a Sinhá Vitória e indicou uma depressão do terreno. Era um bebedouro, não era? Sinhá Vitória estirou o beiço, indecisa, e Fabiano afirmou o que havia perguntado. Então ele não conhecia aquelas paragens? Estava a falar variedades? Se a mulher tivesse concordado, Fabiano arrefeceria, pois lhe faltava convicção; como Sinhá Vitória tinha dúvidas, Fabiano exaltava-se, procurava incutir-lhe coragem. Inventava o bebedouro, descrevia-o, mentia sem saber que estava mentindo.”

Graciliano Ramos, Vidas Secas

 

Mas a orgulhosa Itu, fundada em 1610 por bandeirantes e que foi, no século 19, o berço da Proclamação da República, não está no semi-árido.

Itu é verde. Se tem a Brasil Kirin com seus reservatórios cheios e produzindo, tem também os condomínios horizontais fechados, paraíso para paulistanos endinheirados que têm ali suas casas de campo atrás de amplos muros cercados de seguranças por todos os lados.

Casas com piscinas, e estão cheias!

Conhecida como a “cidade dos condomínios”, Itu virou a meca desse tipo de imóvel de “alto padrão”. Diz o site da imobiliária Empreendimentos Costa: “Além do campo do bem-estar familiar e pessoal, a região [… está nas proximidades] de Campinas e de São Paulo, de uma logística de primeiro mundo pertinho do Aeroporto de Viracopos e de grandes vias, como a Castelo Branco.”

No site, apresentam-se os condomínios ituanos Jardim Theodora, Plaza Athenée, Terras de São José, Campos de Santo Antonio, Portal de Itu 1 e 2, Portal de Vila Rica, Vila Aldea D’España, Santa Mônica, Villagios D’Italia, Vila Real de Itu, Vila Positano, Vila Florença etc. etc., com casas na maior parte das vezes dotadas de piscinas, ainda que os condomínios tenham por norma ostentar conjunto aquático completo para o lazer de todos os condôminos.

Água para quem? No condomínio Portal de Itu, o técnico da piscina de 2.000.000 litros de água já está há 22 dias sem água em sua casa, próximo à Favela do Itam
Água para quem? No condomínio Portal de Itu, o técnico da piscina de 2.000.000 litros de água já está há 22 dias sem água em sua casa, próximo à Favela do Itam

Na sexta-feira, dia 6 de novembro, a reportagem começou o dia em visita ao Condomínio Portal de Itu, com sua linda piscina dotada de cascata, que estava cheia com exatos 2.000.000 de litros de água. Um funcionário da manutenção do Portal de Itu cuidava da piscina, removendo-lhe folhas e insetos mortos. No mesmo dia, o rapaz contabilizava 22 dias de torneiras secas em sua própria casa, perto da favela do Itaim. Para as necessidades básicas, ele recorria à caixa d’água do Sindicato dos Ceramistas da cidade, que reúne os trabalhadores em olarias.

Dentro do condomínio não há essas necessidades. Toda a água da piscina e sua cascata provém de um poço aberto dentro do condomínio.

O próximo passo foi uma visita ao Condomínio Campos de Santo Antonio (um dos mais caros), que fica a 7 km do centro de Itu. Dotado de piscinas para adultos e crianças, além de lagos para pesca, o condomínio tem casas de três dormitórios dotadas de piscina sendo vendidas por R$ 2.300.000. Trata-se de uma clientela privilegiada, certo? Pois a empresa que fornece água para Itu considerou necessário dar uma forcinha extra para os moradores do condomínio, e instalou uma caixa d’água dentro dos muros do empreendimento privado dos bacanas. Quem não tem autorização para entrar no condomínio, não pode usar a caixa d’água que deveria atender ao público em geral.

No Vila Real de Itu, empreendimento fundado em 1976 pelo megainvestidor Naji Nahas em uma área total de 484 hectares, o material publicitário destinado a captar compradores de imóveis que podem ser comercializados por até R$ 4.000.000 avisa: “Uma parte essencial da infraestrutura do Vila Real é praticamente invisível aos olhos na maioria dos proprietários. É o caso, por exemplo, do sistema próprio de abastecimento de água, autônomo e automatizado, implementado em 2004.”

Enquanto isso, a falta de água para a classe média e para os pobres ituanos, já ocasionou uma mudança nos costumes e na etiqueta da cidade. No centro, a maior parte dos restaurantes e bares fechou os banheiros. Estão interditados para a clientela, que não pode usá-los nem para lavar as mãos.

“Os fiscais da vigilância sanitária nem passam mais, para não ver isso”, garantiu um dono de bar que não quis se identificar. Essa falta seria passível de multa e poderia até levar ao fechamento do estabelecimento.

Usar o banheiro da casa de alguém, quando em visita, só em último caso. E mesmo assim, pedindo desculpas. Banhos de chuveiro agora são tomados com a pessoa em pé sobre uma bacia, como forma de recolher a água usada – servirá para lavar o quintal, por exemplo.

O surrealismo da seca “verde e cheia de água” de Itu tem mais um elemento de irracionalidade quando se considera que a cidade fica quase às margens do Rio Tietê, o grande rio de São Paulo. Pois o problema é que as águas fétidas do rio chegam ali depois de recolher o esgoto da capital, entre outras cidades.

Chegam completamente poluídas e espumando sabões e detergentes, enquanto passam por margens repletas de lixo por todos os lados.

Definitivamente, o problema não é a falta de água.

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