Defensoria Pública de SP pede em ação civil pública fornecimento de água a comunidade pesqueira de Iguape, Vale do Ribeira

Estico o braço para o chuveiro, ponho a mão na torneira, mexo-a lentamente fazendo-a girar para a esquerda. Acabo de acordar, ainda sinto os olhos cheios de sono, mas estou perfeitamente consciente de que o gesto que faço para inaugurar meu dia é um ato decisivo e solene, que me põe em contato ao mesmo tempo com a cultura e a natureza, com milênios de civilização humana e com o trabalho das eras geológicas que moldaram o planeta. O que peço à ducha é, antes de mais nada, me confirmar como senhor da água, como pertencendo àquela parte da humanidade que herdou dos esforços de gerações a prerrogativa de chamar a si a água com a simples rotação de uma torneira, como detentor do privilégio de viver num século e num lugar em que se pode gozar a qualquer momento da mais generosa profusão de águas límpidas. E sei que para que esse milagre se repita diariamente uma série de condições complexas deve estar reunida, razão pela qual a abertura de uma torneira não pode ser um gesto distraído e automático, mas um gesto que exige concentração, participação interior. (Italo Calvino, O chamado da água)*

DPESP

A Defensoria Pública de SP ingressou com uma ação civil pública para que seja implementado abastecimento de água a uma comunidade pesqueira carente de Iguape, cidade a 200 km da Capital no Vale do Ribeira, no litoral sul do Estado. Ajuizada neste mês pelo Defensor Público Andrew Toshio Hayama, que atua em Registro, a ação tramita na 2ª Vara do Foro de Iguape.

A ação pede que o Município e a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) identifiquem todos os moradores e construções existentes na comunidade dos Lagartos, localizada no bairro Barra do Ribeira, e elaborem um plano de ampliação da rede de fornecimento de água que contemple todos os moradores. Apesar da falta de água no Estado, o Defensor Andrew Toshio ressalta que o problema na comunidade não tem relação com a crise hídrica, pois chove muito na região, à qual confluem as águas dos rios Ribeira de Iguape, Suamirim e do Oceano Atlântico.

Comunidade

A comunidade existe há pelo menos 15 anos e é composta por cerca de 10 famílias, além de moradias em construção ou desocupadas. A área originalmente contava apenas com moradores tradicionais caiçaras, mas, com a urbanização e o interesse turístico na região, houve um aumento populacional.

As casas contam há mais de 10 anos com rede de energia elétrica, mas não há fornecimento de água potável. As famílias usam água de poço – que aumenta os gastos com energia elétrica, é insalubre e serve apenas para higiene pessoal e limpeza doméstica – e são obrigadas a buscar o recurso potável a cerca de 300 metros da comunidade.

Ainda de acordo com a ação, os moradores acionaram as autoridades e órgãos competentes, mas o problema não foi solucionado, situação conhecida desde 2008 também pela Câmara Municipal. Em novembro de 2012, as famílias relataram a situação em reunião na Defensoria Pública em Registro.

Ação civil pública

A Defensoria Pública enviou ofícios pedindo providências ao Município, à Câmara Municipal, à Secretaria Estadual do Meio Ambiente e à Sabesp. A Secretaria respondeu que saneamento básico é atividade de utilidade pública, e que a implantação seria possível do ponto de vista ambiental, se autorizada pelo órgão competente. Mas a Sabesp disse que o local seria Área de Preservação Permanente (APP) e, portanto, a insegurança fundiária impediria a instalação do serviço.

Com a manutenção do problema, a Defensoria ajuizou a ação, embasada pelo parecer técnico elaborado por um arquiteto indicado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo, conveniado à Defensoria. O documento considera viável a regularização fundiária, mesmo que a área seja APP, pois é ocupada há anos por casas e serviços públicos, possui vias de trânsito abertas e consolidadas, não sendo necessário derrubar vegetação para levar fornecimento de água. O laudo também considera que o Novo Código Florestal admite regularização fundiária de interesse social de área urbana consolidada em APP.

O Defensor Público Andrew Toshio argumentou que o acesso a saneamento básico é dever compartilhado entre todos os entes da federação, conforme a Constituição, e que o acesso a água potável é um serviço essencial, vinculado diretamente ao direito fundamental à saúde, à vida e à dignidade. Ele apontou também um documento oficial produzido em 2013 pelo Ministério das Cidades que indica a viabilidade de regularização fundiária em áreas urbanas onde incide APP.

* O trecho de Ítalo Calvino introduz um dos ‘capítulos’ da ACP, que por sua vez é aberta com um poema de Manoel de Barros. Como sempre, Andrew Toshio consegue transformar uma peça de direito em algo prazeroso de se ler, juntando literatura, cultura e leis. Quanto a este último item, inclusive, a ACP é primorosa, indo buscar também no PNUD argumentos para discutir  o ‘capítulo’ 2, que tem por título “Crise de Água ou Crise de Justiça?”. Leitura, pelo menos, para quem se importa com a Justiça, e que disponibilizo AQUI. (Tania Pacheco). 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.