– “ trabalhadoras brasileiras no navio só servem pra sexo, são putas, e os trabalhadores homens não servem para trabalhar… são vagabundos…brasileiro reclama demais…”
– “ brasileira gosta de vida boa e se quiserem podem ter vida boa se ficarem com eles (os chefes)…”
Prezadas autoridades, imprensa, Igreja, sociedade civil, tripulantes e familiares,
Desculpem-me pela chocante ofensividade das frases acima. Elas foram extraídas dos termos de declaração de tripulantes do navio de cruzeiros MSC Magnífica, resgatados pelas autoridades brasileiras em primeiro de abril deste ano no porto de Salvador, por estarem trabalhando em condições degradantes e análogas a de escravo. Tais frases foram atribuídas aos chefes desses trabalhadores. Trata-se de uma pequena amostra que revela a duríssima realidade do submundo dos navios que estamos denunciando há anos. Tal realidade não se limita à MSC, pois ela pode ser encontrada facilmente também nas outras armadoras que operam no Brasil (Costa Crociere, Pullmantur, etc).
Assédio moral e sexual, racismo, homofobia, xenofobia, péssimas condições de alojamento e assistência médica, fraudes trabalhistas, trabalho até a exaustão e outros crimes repugnantes revelam condições severas, aviltantes e humilhantes à dignidade humana de centenas de jovens brasileiros e não brasileiros, principalmente asiáticos, que são o grande contingente de trabalhadores dentro do navio. O grande agravante é que os monstruosos tratamentos das chefias do navio são realizados em regime de confinamento, ou seja, esses jovens, entre um porto e outro, não tem para onde correr e nem quem recorrer, ficando portanto, numa condição de total vulnerabilidade.
Desaparecimentos “inexplicáveis”, como o caso de Laís Santiago do navio Costa Magica, agressões físicas por parte da segurança do navio contra tripulantes brasileiros, cárcere privado como ocorreu em navio da Pullmantur, intenso consumo de álcool e tráfico e droga, que é generalizado, são outros ingredientes do submundo ao qual estamos denunciando. Condições degradantes que, inexoravelmente, acabam afetando também os passageiros.
No próximo dia 23 deste mês de outubro, a partir das 9:00h, ocorrerá na 37° Vara do Trabalho de Salvador, audiência da Ação Civil Coletiva, cujo autor é o MPT em função da recusa da MSC (Ré) em pagar as verbas rescisórias e outras exigências trabalhistas básicas para os 11 tripulantes resgatados. Esperamos que a MSC Crociere seja punida exemplarmente e que os trabalhadores resgatados sejam devidamente indenizados por tudo aquilo que os submeteram a tanta exploração, humilhação e sofrimento.
Conforme os documentos “Relatório de Ação Fiscal – Embarcações Estrangeiras de Turismo” e “Relatório de Ação Fiscal MSC Crociere S.A” elaborados por diversos departamento de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), depois de exaustivas denúncias dos trabalhadores e da nossa associação de vítimas (OVC –Organização de Vítimas de Cruzeiros), houve operações de fiscalização entre março e abril deste ano (2014) em navios das armadoras que operam no Brasil: MSC, Costa, Pullmantur, Ibero e Royal. Além dos auditores-fiscais do MTE, participaram das operações procuradores do MPT, Anvisa, Marinha, MPF, Advocacia-Geral da União, Defensoria Pública da União, Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência e a Polícia Federal.
Os relatórios dessas operações (incluindo a ação de resgate no MSC Magnífica) somam quase 1.500 páginas com relatos detalhados dos grandes absurdos do submundo existente dentro desses navios. Tivemos acesso ao material somente no final de setembro quando estivemos em Brasília reunidos com autoridades e revelam todo o tipo de irregularidades trabalhistas , fraude contratual, descumprimento das convenções internacionais marítimas e tratamentos que violam os direitos humanos mais básicos, colocando em grande risco a saúde física e mental dos tripulantes, podendo levar até a morte destes, como foi o caso da tripulante Fabiana Pasquarelli em 2012 no MSC Armonia. Não é à toa que todos os navios fiscalizados receberam dezenas de autos de infração por diversas irregularidades trabalhistas. Ao todo, foram mais de 40 autos lavrados.
As ações das autoridades só vêm a confirmar as diversas denúncias que estamos fazendo há mais de 4 anos, desde que minha filha Camillafoi assassinada em 2010 no navio MSC Musica, onde iniciamos a construção de nossa associação (OVC), conjuntamente com outros familiares de vítimas, e finalmente registrada neste ano de 2014.
No entanto, ainda não entendemos por que em abril as autoridades brasileiras liberaram o navio Magnifica sem o resgate de todos os tripulantes brasileiros. Nos parecia óbvio que haveriam represálias, como de fato ocorreu com a prisão dos jovens tripulantes Giselle e Gabriel na Espanha a mando do comando do navio, conforme estamos denunciando deste meados de abril às autoridades brasileiras. Também não nos conformamos com o fato de todos os oficiais e chefes denunciados por monstruosidades e crimes federais tão graves, sob comando do capitão Giuseppe Maresca, terem saído em total liberdade de ação para continuar agredindo a dignidade de mais e mais jovens. Por isso, tememos pela vida de outros tripulantes brasileiros que continuam no navio, sobretudo daqueles que formalizaram denúncias às autoridades e depois desistiram de sair da embarcação.
No final do mês passado, setembro, a associação e outros familiares, estiveram reunidos com diversas autoridades em Brasília para formalizar e protocolar nossas denúncias e reivindicações e também pedir ajuda emergencial aos jovens Giselle e Gabriel, presos na Espanha, incluindo o pedido de extradição dos mesmos. Ainda estamos aguardando por providências.
Já não temos dúvidas de que estamos diante uma atividade corporativa internacional, de alta lucratividade, às custas de Tráfico de Pessoas para fins de exploração laboral. Além das evidências irrefutáveis de trabalho análogo a de escravo, as condições degradantes de trabalho e a forma enganosa e fraudulenta como milhares de jovens brasileiros e de outras nações pobres são atraídos e recrutados para uma atividade de extrema exploração, conforme o Protocolo de Palermo (2000), tudo isso caracteriza tráfico humano para fins de exploração de trabalho.
Como se inicia a temporada de cruzeiros 2014/2015, entendemos que faz-se necessário, com total urgência,ações enérgicas e preventivas de fiscalização junto às agenciadoras e armadoras, bem como medidas de proteção aos jovens tripulantes. Junto com isso, não menos importante, há as questões de legislação como, por exemplo, a imediata alteração da Resolução Normativa 71 CNIg, obrigando a contração pela CLT de todos os tripulantes brasileiros, bem como a ratificação imediata, por parte do governo brasileiro, da convenção internacional da OIT MLC 2006 (Maritime Labour Convention).
Fico a disposição para quaisquer esclarecimentos e, desde já, agradeço.
Rosângela Bandeira
Presidente da Organização de Vítimas de Cruzeiros
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Ruben Siqueira.
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Não, Aline. Nós nos limitamos, neste caso, a publicar uma denúncia que recebemos. Lamento.
Estou para embarcar pela MSC a trabalho… Você tem dicas para me dar para eu não me dar mal?