Nós, docentes e discentes do Curso de Bacharelado e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, articulados nos campos da Antropologia Social e Cultural e da Arqueologia, do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas, reunidos entre os dias 29 de setembro e 02 de outubro de 2014, nas dependências da instituição, para discutirmos a proposta divulgada pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) relativa à IN (Instrução Normativa) nº. 01/2014, em consonância com manifestações do Ministério Público Federal e de arqueólogos/as e profissionais de áreas afins em várias unidades da Federação, e considerando:
1. Que o Estado Brasileiro tem adotado o paradigma do desenvolvimento a qualquer custo, verificado na implantação de empreendimentos dos mais diversos que afetam o patrimônio cultural material e imaterial, inclusive o arqueológico, e a coletividades humanas, sendo que estas últimas têm seus direitos violados, como ocorre, por exemplo, com povos originários e comunidades tradicionais diante da não realização de consultas prévias, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho;
2. Que o patrimônio arqueológico, a que as gerações atuais e futuras têm direito, está protegido pela legislação brasileira, conforme consta na Carta Constitucional de 1988 (Artigos 20, 23, 24, 30, 215, 216), Lei Federal nº. 3.924/1961, Lei Federal nº. 7.542/1986, Lei Federal nº. 9.605/1998 (Capítulo 5, Seção 4), Resolução CONAMA nº. 001/1986 (Artigo 6, Alínea C), Portaria IPHAN nº. 230/2003, e, ainda, em Convenções Internacionais das quais o Brasil é signatário, como a Carta de Nova Delhi (1956), Recomendações de Paris (1962, 1968), Carta de Veneza (1964), Carta de Lausanne (1990), Carta para a Proteção e a Gestão do Patrimônio Arqueológico (1990), Carta de Sofia (1996) e Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático (2001), todas aprovadas pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), órgão que faz parte da ONU (Organização das Nações Unidas), dentre outras;
3. Que o Brasil possui uma extensão territorial de 8.515.767,049 Km², contando apenas com 20.487 sítios arqueológicos registrados no CNSA (Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos), cujo total não corresponde sequer a 1% dos sítios arqueológicos que existem no país, haja vista que o início do processo de ocupação humana do território compreendido pelo Brasil remonta a mais de 12.000 anos. Significa dizer que o cadastrado disponível no CNSA/IPHAN é precário, obsoleto e não condiz com a totalidade dos sítios arqueológicos no país. Apenas para exemplificar, desse total 3.263 sítios estão cadastrados para o Rio Grande do Sul, unidade da Federação que compreende 281.730,223 Km², isto é, menos que 4% do território nacional, e embora possua o maior número de sítios arqueológicos cadastrados no órgão, o mesmo não corresponde à totalidade do patrimônio arqueológico conhecido no estado;
4. Que o Decreto nº. 6.844/2009 estabelece que o IPHAN tem por finalidade “proteger, fiscalizar, promover, estudar e pesquisar o patrimônio cultural brasileiro”;
E considerando ainda as seguintes implicações da IN 01/2014 sobre a defesa, valorização, promoção, difusão e acesso às fontes do patrimônio cultural brasileiro, bem como na preservação e defesa do meio ambiente cultural:
5. Que está cristalino o caráter autoritário e impositivo do Estado Brasileiro na elaboração da IN, ignorando os princípios constitucionais de complementaridade nos papéis dos agentes culturais e a democratização dos processos decisórios com participação e controle social (Art. 216A, § 1º, Incisos VI e X da CF/1988). Esta situação é observada na ausência de uma ampla consulta, por exemplo, às instituições de ensino superior e à comunidade científica, explicitando a violência do Estado contra o patrimônio cultural e a população brasileira;
6. Que há incoerência na proposta em relação às convenções internacionais sobre o patrimônio cultural, cujo princípio norteador é a universalidade, finitude, sensibilidade física e singularidade do patrimônio humano;
7. Que existe o sacrifício de parte do patrimônio arqueológico, escolha subjacente aos procedimentos definidos para os empreendimentos caracterizados como de Nível I da IN, sem a presença de bens acautelados previamente conhecidos. Tal noção ceifa o acesso às fontes da cultura nacional ainda não conhecidas, ferindo o disposto na Constituição Federal, já que este acesso necessariamente passa pela averiguação, in loco, pelo/a técnico/a habilitado/a da existência de bens de natureza material e imaterial (Art. 215, 216, I a V e §3, CF/1988). Destaca-se, ainda, o fator de multiplicação do referido sacrifício de patrimônio arqueológico, expresso na possibilidade do empreendedor optar por compartimentar o empreendimento para o licenciamento ambiental, enquadrando-o no Nível I, possibilidade explícita no comentário ao Art. 16, §4º, da IN;
8. Que a determinação da IN quanto à necessidade apenas de acompanhamento arqueológico nos empreendimentos classificados como de nível II entra em confronto direto com o Art. 3º, combinado ao Art. 2º, alíneas “a”, “b” e “c”, ambos da Lei 3.924/1961. A devida pesquisa arqueológica, conforme preceitua o Art. 3º, da referida lei, não pode efetivamente ser realizada com o simples acompanhamento de arqueólogo/a em campo, especialmente em situações que impliquem revolvimento do solo, pela possibilidade de destruição, dano e mutilação de patrimônio arqueológico a ser acautelado, tornando o bem insuscetível de aproveitamento para os fins a que se destina, o que importa não apenas em violação da norma infraconstitucional suprarreferida, mas também em afronta aos princípios estabelecidos na Lei 12.343/2010 referencia ao Plano Nacional de Cultura, em seu Art. 1º, incisos I ao XII;
9. Que os procedimentos previstos para os empreendimentos classificados pela IN nos níveis I e II violam o princípio da precaução previsto no art. 225, IV, da CF/1988, o qual determina que incumbe ao poder público exigir a realização de estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade capaz de causar degradação ambiental, bem como as que utilizem recursos ambientais, entendendo-se que no conceito de meio ambiente está inserido o meio ambiente cultural, integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico;
10. Que os procedimentos acima mencionados ferem a determinação constitucional de que o poder público tem o dever de proteger o patrimônio cultural brasileiro (Art. 216, § 1º, da CF/1988), e que através deles o IPHAN abdica de uma atribuição que se constitui como um poder-dever de agir para proteção do patrimônio arqueológico, sendo que sua responsabilidade legal de fiscalização, registro, proteção e valorização irrestrita do patrimônio arqueológico, são determinadas também pela Lei nº. 3.924/1961 e pelo Decreto nº. 6.844/2009;
11. Que os procedimentos de vistoria elencados para os empreendimentos classificados como de Nível IV da IN garantem a realização de resgates feitos às pressas durante a execução das obras. Tal medida atesta a conivência do IPHAN e, portanto, do governo federal, com as recorrentes pressões que os empreendedores exercem sobre os/as arqueólogos/as em campo e o desrespeito ao livre exercício da profissão, aos métodos e ritmos próprios da prática arqueológica. O IPHAN, na qualidade de órgão do Estado responsável pela preservação do patrimônio cultural, deve apoiar e não agir contra estes/as profissionais que se destacam como os principais agentes de promoção do patrimônio arqueológico nacional;
12. Que a IN em geral restringe a proteção ao patrimônio arqueológico, a responsabilidade do empreendedor sobre a destruição de bens acautelados e a própria atuação do IPHAN no âmbito do licenciamento ambiental, destoando do estabelecido na Portaria Interministerial nº.419/2014. Este documento, que é superior à proposta de IN, estabelece a responsabilidade do empreendedor em informar sobre possíveis interferências em bens culturais acautelados na área de influência direta da atividade ou empreendimento. Igualmente aponta ser atribuição do IPHAN avaliar a existência de bens acautelados na área de influência direta da atividade ou empreendimento (Art. 3º, § 2º, inciso III e Art. 6º, inciso III da Portaria Interministerial nº. 419/2014). Desse modo, questionamos a legalidade de diversos artigos e incisos da IN que excluem a necessidade de realização de estudos arqueológicos prévios à exploração econômica ou a define apenas para a área diretamente afetada pelos empreendimentos (Art. 15, Art. 16, §1º, inciso V, Art. 17, §2º, inciso II, Art.18, §1º, inciso II; Art. 20, incisos IV e IX; Art. 21, inciso II; Art. 23, incisos II a IV).
Face ao exposto, repudiamos o retrocesso manifesto na proposta de IN nº. 01/2014 do IPHAN, haja vista que ela é antidemocrática, inconstitucional, reifica a violência do Estado sobre o patrimônio cultural e a população brasileira, especialmente coletividades em situação de vulnerabilidade social. A proposta de IN desconsidera ainda avanços e conquistas referentes à política nacional e convenções patrimoniais internacionais dos últimos 60 anos e sua aplicação caracterizará redução de garantia de manutenção do patrimônio cultural brasileiro.
Pelotas, 03 de outubro de 2014.
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Esta Moção de Repúdio foi lida e aprovada em 03 de outubro de 2014, em reuniões ordinárias do Departamento de Antropologia e Arqueologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.
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Petição contra a IN 01/2014 – Assine AQUI.