Rodrigo Bertolotto, do UOL, em Pesqueira (PE)
Dois radinhos de pilha Made In China formam o elo dos xucurus da aldeia Mãe Maria com seu parente na seleção, o meia Paulinho. Cerca de 50 índios se aglomeram para escutar os aparelhos. “É nosso irmão, é o xucuru da seleção”, define o cacique Siba da reserva localizada em Pesqueira, no agreste pernambucano. Por lá não há água encanada nem energia elétrica nem sinal de celular.
Já no bairro Zé Rocha, na zona urbana do município, o feirante José Paulo Bezerra Maciel acompanha na TV e no sofá os lances da seleção e do camisa 8, que é quase homônimo dele, só acrescentando o “Júnior” no final. “Ele estando bem, eu estou bem. É meu filho de qualquer jeito jogando bem ou mal”, fala em tom emotivo o pai que a vida acabou por distanciar do filho famoso.
Os traços de José Paulo não enganam. “Meus pais eram xucurus. E meus avós maternos se conheceram no mato”, conta o pai do jogador. “Eu me orgulho dessa origem. Não sei se o Paulinho se orgulha”, completa.
José Paulo saiu de Pesqueira com oito anos para morar com parentes na Vila Maria, em São Paulo. Lá trabalhou fazendo sandálias. E lá conheceu a mãe de Paulinho, uma vizinha de bairro que também era nordestina – de Delmiro Gouveia, Alagoas. Ficaram casados por 12 anos, tiveram dois filhos (Erik e Paulinho), mas logo após o nascimento do jogador se separaram.
José Paulo virou um pai de final de semana. Aparecia por uma hora, batia uma bola, conversava e ia embora. Em 2002, José Paulo voltou para Pesqueira para cuidar da mãe doente e se distanciou ainda mais: virou um pai de telefonemas ocasionais a partir que Paulinho tinha 13 anos de idade.
As brigas separam casais e também separam etnias. Os xucurus de Pesqueira viveram um grande conflito interno em 2003, com atentado contra o cacique, saques e a consequente expulsão de parte dos índios. Os cerca de 300 índios expulsos foram encaminhados para uma fazenda comprada pelo governo, mas o local improvisado tem estrutura quase nula.
O rio Ipanema corta a reserva Mãe Maria e corre para o sul para atravessar outra área indígena que também possui um jogador famoso como descendente. É a tribo fulniô do município de Águas Belas, de onde vieram os antepassados do mito Garrincha. Lá o fato curioso e revelador é que vários índios têm a mesma anatomia do “anjo de pernas tortas” que foi bicampeão mundial em 1958 e 1962.
Os xucurus e os fulniôs são povos que migraram da zona costeira do Nordeste para o agreste e sertão pressionados pela ocupação branca e a ameaça de escravidão desde o Brasil Colonial. A pressão por terras continuou e gerou uma diáspora indígena por todo o país. Os bisavôs de Garrincha foram para Pau Grande (RJ), e os parentes de Paulinho foi parar na zona leste paulistana.
Em um país que se ufana da mistura de três raças, identificar os jogadores de origem branca ou negra é fácil. Mas rastrear as raízes indígenas de um atleta é um trabalho de detetive. Muitos futebolistas foram batizados profissionalmente como “Índio” – 20 foram registrados com essa denominação pela CBF em 10 anos. Porém, nem sempre por ter saído de uma aldeia: o ex-lateral-direito do Corinthians era um xucuru-cariri de Alagoas, mas o zagueiro colorado com mesmo nome ganhou o apelido só por seus cabelos compridos no início de carreira.
A herança autóctone de Garrincha só foi descoberta na apuração de sua biografia “Estrela Solitária”, de Ruy Castro (1995). Já a de Paulinho foi rastreada por esta reportagem a partir de duas pistas.
O primeiro indício foi a aparência do meia. Com cabelo liso, olhos puxados, maçãs do rosto salientes e um nariz forte, as feições valeram o apelido de “Boliviano” em sua época de Corinthians.
A segunda evidência foi a aparição do pai de Paulinho em um jogo de 2012 em que o Corinthians enfrentou o Náutico no estádio dos Aflitos, em Recife. O semblante indígena do pai e a informação que ele era de Pesqueira, município em que os índios representam 15% da população e contam com três vereadores de sua etnia, fecharam a investigação.
Outros integrantes da seleção, como Neymar, Hulk, Thiago Silva e Daniel Alves, parecem ter uma porção indígena em sua genética, mas a de Paulinho é diretíssima, afinal, seu pai é puro sangue xucuru. “Meus parentes falavam o idioma deles, mas eu não aprendi e sai muito cedo de casa”, relata José Paulo.
O Brasil tem 240 povos indígenas, com 180 línguas diferentes, somando quase 900 mil pessoas, sendo que a metade delas vive nas áreas amazônicas. Mas há muitos nativos no semiárido nordestino. O cálculo é que vivam mais de 9.500 xucurus nos 27,5 mil hectares da maior reserva do Nordeste, com 24 aldeias na serra do Ororubó.
O cacique Marquinho Xucuru, líder máximo desse território, esteve presente nos protestos em Brasília no final de maio quando a Taça Fifa visitou a capital. Houve confronto com a polícia, e a exibição do troféu foi interrompida. Por essa postura contrária ao Mundial de futebol, Marquinho se recusou receber a equipe do UOL na reserva para falar de Copa do Mundo e do jogador descendente.
Já a reserva Mãe Maria promoveu até uma dança do “toré” durante o empate do Brasil e México para invocar os espíritos para ajudar a seleção brasileira e Paulinho. “Que nosso pai Tupã e nossa mãe Tamaim guiem o Paulinho nesta Copa até o caminho da vitória”, pediu o vereador Biá (PSC) e irmão do cacique local. A seleção brasileira está precisando de reforço de todo tipo, até a ajuda espiritual dos xucurus.
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Enviada para Combate Racismo Ambiental por Lara Schneider.