A cigana Daiane Rocha sonha tanto com os gols da seleção no jogo contra Camarões quanto com a repetição de um gesto. Daiane espera que os moradores ao redor do acampamento, na cidade-satélite de Santa Maria, no Distrito Federal, olhem para ela e torçam com ela, reconhecendo-a como brasileira. A primeira vez que isso aconteceu foi na abertura da Copa do Mundo, quando o Brasil venceu a Croácia. Os 65 ciganos comemoraram cada um dos três gols e dançaram na vitória. Do outro lado da rua, os moradores, que até então os haviam rechaçado, torceram com eles, riram com eles, levantaram os braços em sinal de vitória. Ao sentir-se reconhecida como igual, Daiane chorou. Era um milagre do futebol.
Para alcançar o tamanho do gesto é preciso compreender a profundidade da rejeição. Quando montaram acampamento, seis meses atrás, as barracas eram apedrejadas à noite. A comunidade não os queria ali. “A gente botava as crianças no meio, pra proteger. Nos chamavam de bandido, minha barraca rasgou com uma pedra”, conta Daiane, 25. “No primeiro dia chegamos cansados, com fome e com sede. Eu e minhas irmãs fomos de casa em casa pedir um balde de água, de uma ponta a outra da rua, e ninguém deu. Então, quando me olharam e fizeram aquele gesto de levantar os braços, torcendo, chorei. Era como se eles dissessem que eu era igual, que eu também era brasileira. Aquele movimento de torcer foi como uma ponte.”
Brasileiros há mais gerações do que conseguem lembrar, os ciganos vivem uma realidade única: lutam para resistir como cultura, mas precisam esconder a cultura para sobreviver no cotidiano. A marca visível de sua diferença, num país tão mestiço quanto o Brasil, não se dá na cor da pele, mas no que colocam sobre ela. “Ser cigano é andar de chapéu, ter bigode e uma boca com dentes de ouro”, diz Wanderley da Rocha, 48 anos, um dos líderes. E, esclarecendo a grafia: “Wanderley com y, olha que invocado!”. Depois, clarifica o bigode: “Se eu tirasse o bigode, não podia falar com você. Ia sair correndo, me enfiava no mato, por estar nu”. O sorriso dourado é garantido por oito dentes de ouro. Para quem é nômade, toda a riqueza é carregada na boca, junto com a fala.
Os homens vivem de negociar. No caso de Wanderley e de sua comunidade, cavalos e carros. Negócios entre pobres. “Um cavalo de carroça, profissional”, custa R$ 2.000. Os carros enfileirados são modelos antigos, dos anos 90, vendidos a preços que variam entre R$ 2.500 e R$ 4.000. Por fazer negócios dentro do acampamento, eles podem exibir o seu colorido. As mulheres, não.
Elas saem logo cedo, pela manhã, para vender panos de prato nas ruas e nas feiras. Antes, se fantasiam. Para elas, fantasiar-se é um contrário. Tiram as longas saias coloridas, os cintos vistosos, os brincos enormes. Botam jeans e camiseta, ou um short, viram qualquer uma. É um paradoxo: para tornar-se visíveis precisam tornar-se invisíveis. “Se não nos fantasiamos, não vendemos nada”, explica Daiane. “Se souberem que sou cigana, não vendo um pano de prato e ainda me humilham”, diz Rosalina, 28 anos. “Eu tinha duas coroas de prata na boca, que eu gostava muito, mas elas me denunciavam e tive que tirar. Tenho de me disfarçar e, mesmo assim, não sei como, me descobrem. Me obrigam a abrir a bolsa pra provar que não roubei nada.” Shirlene, 22 anos, faz um curso de enfermagem, mas escondeu das colegas que é cigana. “Só vou contar na formatura. Aí vou botar as minhas roupas e apresentar a família.”
Daiane, contrariando o senso comum, foi levada do acampamento, aos 12 anos, por uma não cigana, que namorava o tio. A mulher a colocou para pedir na rua, depois de 20 dias ela fugiu. Dormiu em estação de trem, foi acolhida por uma igreja evangélica. Quando fazia um ano e meio que trabalhava num salão de beleza do Recife, começou a chorar. “Eu sou cigana”, confessou, toda salgada. Fizeram para ela uma página no Facebook, para ajudá-la a encontrar o pai. Um dia alguém disse: “Não sei se é seu pai, mas tem dente de ouro na boca”. Era. Daiane desmaiou. As clientes juntaram o dinheiro da passagem, e ela voltou, 12 anos depois. Poderia ser uma novela de Dias Gomes.
Os ciganos vivem sob suspeição. Em especial grupos pobres, como o de Wanderley. A brutalidade, marcada no DNA da História, tem provocado um curioso fenômeno. Nômades, da etnia calon, a comunidade de Wanderley reivindica a fixação. O movimento, que era lugar, virou um não-lugar. “Cansamos de viajar e não conseguir montar as barracas, porque não deixam. É muito difícil ser expulso de um canto a outro, já sofremos demais.”
O grupo reivindica junto ao governo do Distrito Federal um pedaço de terra em outra cidade-satélite, a de Sobradinho. Mas não usam o termo “terra”. Wanderley sempre diz “endereço”. Sem “endereço”, segundo ele, “um brasileiro não tem credibilidade”. É possível ser nômade sem movimento? Wanderley interpreta: “Cigano é aquele que segue, morador é o que mora. Nós seremos ciganos que moram”.
Muitos não tinham carteira de identidade. A última a fazer a sua foi Sara, 19 anos. Fez para se igualar. Ela sofre com cálculos renais e tinha dificuldade para receber atendimento no SUS. “Várias vezes eu ficava no corredor, me contorcendo de dor, mas não me atendiam por eu não ter documentos”, conta. Sara não existia, sequer a tinham registrado, porque a vida do seu povo seguia outra lógica do que é existir. Quando fez a carteira de identidade, a família preocupou-se. Sara teve uma reação emocional, não conseguia comer, emagreceu. Segundo ela, três quilos foi o que perdeu ao ganhar um lugar no cadastro. É sua primeira Copa como brasileira oficial.
É uma nova brasilidade cigana em formação. Contraditória, com pitadas de realismo mágico. Mais brasileiros não poderiam ser. A maioria do grupo é evangélica pentecostal, alguns recebem Bolsa Família. Wanderley ainda exige que as filhas se casem sem namorar, e provem a virgindade na marca do lençol. Ele fala a língua dos calon entre os seus e o português com todos os outros. Como um cigano de Brasília, domina ainda a língua oficial, repleta de termos como “cidadão de direitos”. Movimenta-se com desenvoltura por um mapa de siglas de Estado. Em seu celular, tem um selfie com a ministra Luiza Bairros. Wanderley e o irmão formam uma dupla sertaneja, “Cigano e Ciganito”. Foi Ciganito quem comprou a TV para assistir à Copa do Mundo no acampamento.
hoje venho em palavras me expressar e dizer o quanto admiro o povo cigano tenho verdadeiro fascinio pelo seus costumes e sua maneira de ver a vida um povo alegre e contagiante que um dia terei um grande prazer em conhecer naõ sou cigana de sangue mas em alguma vida só posso ter sido amo tudo que envolve o mundo cigano e achei uma historia linda de superaçaõ parabéns
Parabéns a todos pela coragem! aqui em nossos ranchos nao é diferente, a realidade cigana que permeiam os Estados Brasileiros, é muito semelhante.
Tbm sofro muito pré-conceito racial por ser cigana e ainda mais por estar me formando advogada. Mas o caminho é esse. Cabeça erguida sempre.
Na constituição Federal, somos todos iguais perante a lei. Espero que um dia tbm sejamos iguais perante a sociedade.
Abraço a todos,fiquem com Deus.
Sei como é calin, essa História do baldo pra pedir água de porta em porta, e também do não manifesto, para ganhar o pão, o mantimento nas feiras pra vender panos de pratos e tapetes, sem que soubessem que somos ciganos, mas tudo isso começa a mudar. Tudo de bom pra nos calons.
PARABENS DAYANE, PARABENS CALON VANDERLEY
PARABENS DAYANE PARABENS A ANEC. ESTAMOS MUITO ORGULHOSOS DE VOCEIS