Organizações divulgam parecer rechaçando proposta [vergonhosa] do MJ de alterar demarcações de terras

Constituição Demarcação JáEm Centro de Trabalho Indigenista

As principais organizações indígenas e indigenistas do país tornaram público nesta terça-feira, 08, durante sessão da 9º reunião extraordinária da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), em Brasília (DF), um parecer jurídico a respeito de Minuta de Portaria para a “regulamentação” do Decreto nº1775/96, apresentada pelo Ministério da Justiça, José Eduardo Cardozo.

No final de novembro do ano passado, a minuta com as intenções do governo para o futuro do procedimento demarcatório foi encaminhada à Bancada Indígena da CNPI e revoltou as organizações e povos indígenas. “Contrariamente às alegações do governo, a dita portaria eterniza a não demarcação de terras indígenas, fragiliza a Funai, e desenha um quadro assustador de acirramento de conflitos”, disse em nota a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) à época.

Diante da minuta, 1.700 indígenas realizaram uma manifestação, no dia 4 de dezembro, que culminou com a ocupação da parte externa do Palácio do Planalto. No conflito com seguranças, quatro indígenas acabaram feridos. Com a pressão, o ministro da Justiça recuou e sinalizou o engavetamento da minuta. Na manhã desta terça, porém, durante a abertura da reunião da CNPI, Cardozo a impôs à pauta sem encaminhar nada quanto às decisões do último encontro do plenário da comissão. 

Além de divulgar uma carta (leia aqui) rechaçando a postura de Cardozo de transformar a pauta da CNPI em cabide de discussões de interesse exclusivo do governo, as organizações indígenas e indigenistas apresentaram, ainda na manhã desta terça, o parecer jurídico sobre a minuta do ministro da Justiça.

O parecer

O documento, com 16 páginas, tem início com a contextualização histórica da consolidação da legislação indigenista seguindo até a principal jurisprudência a respeito dos procedimentos de demarcação de terras indígenas. Traz à tona a como a proposta do Ministério da Justiça contraria decisões recentes, inclusive tomadas pela Corte Suprema do país, o STF, caso do julgamento da Petição 3388 sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, entre outros.

Em seguida, são comentados, à luz da legislação e da jurisprudência, os equívocos dos principais artigos apresentados na minuta, que passaria a permitir a interferência de grupos contrários à demarcação desde os primeiros momentos do procedimento de identificação e delimitação das terras indígenas, inviabilizando até mesmo o trabalho de campo dos profissionais e estudiosos.

Ao final do documento, as organizações indígenas e indigenistas que subscrevem o parecer sintetizam nove principais conclusões, sendo a última delas um recado claro para o governo federal:

“9. Uma eventual publicação da Portaria em questão reforçará compreensão, por parte dos povos indígenas, organizações de apoio aos povos e da sociedade em geral de que o Governo Dilma é claramente anti-indígena, aliado de primeira hora dos ruralistas, alinhado aos interesses do poder econômico nacional e transnacional, notoriamente do agronegócio, e obstinado por um modelo de desenvolvimento neocolonizador, usurpador de territórios, etnocida e ecocida.”

Ministro reage a parecer

As lideranças da bancada da CNPI entregaram o documento diretamente ao ministro da Justiça, juntamente com uma carta manifesto. Cardozo e seus assessores ficaram desconcertados e tentaram se justificar a todo custo. O ministro, porém, foi ao ataque e acusou os indígenas de se negarem ouvi-lo sobre a minuta. “Não podemos nunca nos furtar ao diálogo”, defendeu.

Sem ter lido o parecer, Cardozo pinçou de improviso alguns pontos isolados do documento e sustentou que já conseguia ver que os pontos de crítica que não teriam procedência. Desconsiderou que o parecer foi elaborado de forma minuciosa pelas organizações indígenas e indigenistas, depois de mais de quatro meses da divulgação da minuta.

“Por exemplo, no comentário ao Artigo 18, vocês estão criticando algo que já é prática da Funai. A presidente da Funai hoje já tem o poder de devolver os relatórios e prescrever diligências”. O que o ministro não diz, entretanto, é que se aprovada a minuta, o procedimento de demarcação de terras passaria a conter não apenas uma possibilidade de pedido reavaliação das conclusões do Grupo Técnico, de poder da Presidência da Funai, mas abre a possibilidade de que o processo volte a estaca zero três vezes: duas delas a critério da Funai e outra a critério do próprio Ministério da Justiça.

Sobre a crítica a respeito da abertura dos trabalhos de identificação de terras a diversos órgãos vinculados aos setores tradicionalmente anti-indígenas, ele tirou da manga de seu paletó uma resposta pronta: “A Lei de Acesso à Informação já garante que todos interessados possam participar do processo”. Entretanto, de acordo com a minuta do governo, não apenas esses setores não indígenas poderiam ter acesso aos processos, como poderiam indicar membros para o trabalho de campo, e, pior ainda, tais membros poderiam apresentar relatórios em separado, contrariando as conclusões do próprio coordenador do Grupo Técnico.

O desconforto do ministro Cardozo com a resposta das lideranças, porém, deve-se ao fato de que a posição do Ministério da Justiça a respeito das intenções da minuta não se sustenta diante da mínima análise jurídica, como demonstra claramente o parecer. Alegando construir um mecanismo que permitiria afastar a judicialização dos processos de demarcação de terras, o Ministério da Justiça, na verdade, propõe uma Portaria que dá instrumentos necessários para que os setores contrários às demarcações derrubem na Justiça as conclusões dos grupos técnicos, ao fomentar o dissenso no seio desses grupos.

PARECER SOBRE MINUTA DA PORTARIA DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA

I – PROPOSIÇÃO

A minuta de Portaria do Ministério da Justiça estabelece instruções para a execução do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas de que trata o Decreto nº 1.775/96.

Este parecer foi elaborado pelas organizações indígenas e indigenistas, subscritas ao final, e analisa os principais artigos da minuta. O texto completo da mesma encontra-se em anexo.

II – INTRODUÇÃO: OS DIREITOS DOS ÍNDIOS NOS TERMOS DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

No Brasil, direito dos povos indígenas foi tema de intensos debates de juristas portugueses e brasileiros desde os primeiros tempos da Colônia, formando posicionamento consolidado nos nossos tribunais e na doutrina. Deste modo, qualquer proposição legislativa relacionada aos povos indígenas deve considerar, no princípio, a construção histórica que resultou nos arts. 231 e 232 da Constituição de 1988, bem como na legislação internacional acolhida pelo Brasil, sob pena de retrocessos e prejuízos as populações tradicionais. Vejamos a posição dos principais juristas da atualidade.

José Afonso da Silva e o indigenato:

“O INDIGENATO. Os dispositivos constitucionais sobre a relação dos índios com suas terras e o reconhecimento de seus direitos originários sobre elas nada mais fizeram do que consagrar e consolidar o indigenato, velha e tradicional instituição jurídica lusobrasileira que dita suas raízes já nos primeiros tempos da Colônia, quando o Alvará de 1.º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 06 de junho de 1755, firmara o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas[1].”

O posicionamento consagrado, acima transcrito, foi seguido e externado de diversas formas por outros juristas renomados, como o ministro e ex-presidente do STF, Ayres Britto, ao falar da relação dos índios com suas terras. Vejamos:

“Para o índio, a terra não é um bem mercantil, passível de transação. Para os índios, a terra é um totem horizontal, é um espírito protetor, é um ente com o qual ele mantém uma relação umbilical[2].”

Do mesmo modo, o jurista Dalmo de Abreu Dallari, tornou-se referência importante nos tribunais e no meio acadêmico ao defender a nulidade dos títulos de particulares incidentes em terras indígenas:

“Ninguém pode tornar-se dono de uma terra ocupada por índios. Todas as terras ocupadas por indígenas pertencem à União, mas os índios tem direito à posse permanente dessas terras e a usar e consumir com exclusividade todas as riquezas que existem nelas. Quem tiver adquirido, a qualquer tempo, mediante compra, herança, doação ou algum outro título, uma terra ocupada por índios, na realidade não adquiriu coisa alguma, pois estas terras pertencem à União e não podem ser negociadas[3].”

Vejamos agora, as mais recentes decisões dos tribunais brasileiros sobre os processos de demarcação de terras indígenas:

a)      Apelação nº 5006496-22.2012.404.7006 – TRF4 – Kaingang –  Paraná

“O reconhecimento constitucional do direito dos povos indígenas e quilombolas às terras que tradicionalmente habitam, como parte de sua identidade e condição para a sobrevivência de sua cultura, foi assentado na Carta de 1988. No caso, estudo antropológico realizado na região deu conta de que depoimentos dos velhos kaingang, originários da terra indígena Boa Vista e de seus filhos que nasceram e ocuparam a área, de onde foram expulsos em 1962 e obrigados a viver em área vizinhas, para que esta terra fosse liberada para os não índios (evento 16 – PROADM4).” (Relator: Juiz Federal Sérgio Renato Tejada Garcia)

b)     ACO 312 – STF –  Índios Pataxó Hã Hã Hãe, estado da Bahia

“Nulidade de todos os títulos de propriedade cujas respectivas glebas estejam localizados dentro da área de reserva indígena denominada Caramuru-Catarina-Paraguaçu, conforme demarcação de 1938. Aquisição a NON DOMINO que acarreta a nulidade dos títulos de propriedade na referida área indígena, porquanto os bens transferidos são de propriedade da União (SUMULA 480 DO STF).” (Relator: Min. Eros Grau e Min. Cármen Lúcia)

c)      Apelação nº 2007.01.00.051031-1 – TRF1 – Xavante, Mato Grosso

“25. Pode-se até admitir a asserção de que não havia mais índios naquelas terras por ocasião da promulgação da Constituição Federal de 1988, mas não se pode negar a verdade de que isto se deu em razão da referida expulsão, urdida maliciosamente pelos dirigentes da Agropecuária Suiá-Missu, na década de sessenta. Talvez não houvesse índios naquelas terras no ano de 1988, mas decerto que ainda havia a memória de seus antepassados, traduzida no “sentido anímico e psíquico de continuidade etnográfica”, no dizer do Min. Carlos Britto, no julgamento do caso que ficou conhecido como “Raposa Serra do Sol” [PET n. 3.388/RR].” (Relator: Juiz Federal PEDRO FRANCISCO DA SILVA – convocado)

d)     Apelação nº 0003846-47.2002.4.01.3700 – TRF1 – Awá Guajá, Maranhão

“I. Na ‘Constituição do Índio’ conforme denominação atribuída a Uadi Lammêgo Bulos, merece destaque a proeminência com que o constituinte de 88 tratou as questões indígenas, alçando-as a patamares tão relevantes que tracejou sua disciplina em inúmeros dispositivos constitucionais, como se vê dos arts. 20, XI; 22, XIV; 49, XVI; 109, XI; 129, V e 176, § 1º e, especialmente, no arremate definido no capítulo VIII do título que trata da ordem social, constituído pelos arts. 231 e 232 da Carta Política de 88, que consagrou o direito originário dos índios sobre as terras que ocupam tradicionalmente.” (Relator: Desembargador Federal JIRAIR ARAM MEGUERIAN)

e) Petição 3.388/RR – STF – Terra Indígena Raposa Serra do Sol

“11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. (…) 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras utilizadas para suas atividades produtivas, mais as ‘imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar’ e ainda aquelas que se revelarem ‘necessárias à reprodução física e cultural’ de cada qual das comunidades étnico-indígenas, ‘segundo seus usos, costumes e tradições’ (usos, costumes e tradições deles, indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no imaginário coletivo aborígene, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas terras ‘são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis’ (§ 4º do art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA.”

“12. DIREITOS ORIGINÁRIOS. Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente reconhecidos, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de originários, a traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como nulos e extintos (§ 6º do art. 231 da CF).” (Relator: Min. Carlos Ayres Britto)

O direito dos povos indígenas também está consubstanciado na Convenção 169 da OIT, cujo texto foi aprovado no ano de 1989, logo após a Constituição brasileira. Após aprovado pelo Congresso Nacional, o texto foi promulgado pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

III – PORTARIA – CONCEPÇÃO JURÍDICA

No decorrer dos últimos anos foram publicadas diversas Portarias relacionadas às questões indígenas, sempre com argumentos de regulamentar direitos ou estabelecer instruções. Destas, a Portaria 303 da AGU foi a que ganhou maior notoriedade, justamente porque fazia uma interpretação extremamente equivocada sobre as condicionantes do julgamento da Petição 3388/RR, antes mesmo da sua conclusão. Com o julgamento dos Embargos de Declaração, em outubro de 2013, a Portaria 303 perdeu seu sentido de existir, já que os Ministros do STF definiram que a decisão não tem efeito vinculante.

Diante do surgimento de tantas portarias, incluindo a minuta que aqui se discute, faz-se necessário entender o que é uma Portaria. Em linguagem simples e objetiva Hely Lopes Meirelles, personagem renomado no Direito Brasileiro, afirma que as “portarias são atos administrativos internos, pelos quais o chefe do Executivo (ou do Legislativo e do Judiciário, em funções administrativas) ou os chefes de órgãos, repartições ou serviços, expedem determinações gerais ou especiais a seus subordinados, ou nomeiam servidores para funções e cargos secundários” (Direito administrativo brasileiro, São Paulo, Ed. Ver. Trib., 1966, pág 192).

Nas palavras do jurista Dalmo Dallari, “fica evidente que uma portaria não tem a força da lei nem da jurisprudência, não obrigando os que não forem subordinados da autoridade que faz sua edição[4]”. No entanto, a minuta do MJ disponibilizada, possibilita a intervenção de representantes de diferentes órgãos, legitimando interferências de quem não é seu subordinado e que, por óbvio, atuará em prol do órgão que o indicou.

De início, as novas regras já demonstram tendência de prejuízos ao direito originário dos índios, quando no art. 16, X, § 2º refere-se a proposta de delimitação da área indígena que deverá ser elaborada procurando minimizar eventuais conflitos ou impactos com áreas urbanas, tradicionais e agricultores familiares, interpretação política e constitucionalmente equivocada, inconcebível nos termos de uma Portaria.

Em Perícia Antropológica referente à ação de Demarcação que Leon Delix Milhomen e outros moviam contra a Fundação Nacional do Índio, Ladeira (1989, p.9) já arguia que:

(…) um processo de demarcação envolverá sempre um enfrentamento com a sociedade regional, qualquer que seja a proposta de área – já que a demarcação significa o impedimento de que a população regional possa ocupar e explorar aquela parcela do território indígena; ao mesmo tempo em que implica o reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, que aquela área são terras indígenas, isto é, indisponíveis para outra função que não o usufruto dos índios.

Em resumo, importa ressaltar que:

  1. O espírito do ato demarcatório seria o da proteção das terras indígenas, mas na prática, a definição da área a ser demarcada é sensível a pressões regionais;
  2. O ato demarcatório coloca os índios como pólos extremos e diferenciais de forma de ocupação e exploração de um território, acentuando dessa maneira as tensões já existentes;
  3. O processo de demarcação, ao tornar-se sensível aos interesses regionais, deixa de ser a expressão das exigências territoriais dos índios, inaugurando um processo em que várias propostas de área são apresentadas no sentido de tornar ‘viável’ a demarcação;
  4. Por tornar “viável a demarcação” devemos entender o processo de concessão feita pela FUNAI às exigências regionais e a aplicação de uma política de amedrontamento em relação aos índios;
  5. Ao exercitar-se nessa “política de mediação”, a FUNAI configura-se claramente como um órgão de intermediação entre interesses antagônicos e excludentes desfigurando-se, ao mesmo tempo, enquanto órgão protecionista dos interesses indígenas.

Em outras palavras, a FUNAI reduz os interesses dos índios a seus próprios interesses e possibilidades ao considerar apenas aqueles que exigem de sua parte o mínimo enfrentamento com a sociedade regional.

Se trocarmos “FUNAI” por “MJ” no texto acima citado, fica claro que a proposta do Ministro José Eduardo Cardozo, portanto, do Governo Dilma Rousseff, repete inúmeras tentativas estatais de atropelar os direitos indígenas ESTABELECIDOS, para atender interesses regionais.

 Neste aspecto, a Portaria é uma afronta à Constituição Federal.

IV – DISPOSITIVOS DA MINUTA DO MJ: AFRONTA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Passemos, então, a analisar, minuciosamente, os diversos dispositivos da minuta disponibilizada pelo Ministério da Justiça:

CAPÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Conforme se observa, a Portaria estabelece instruções para a execução do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas de que trata o Decreto 1.775/96, o qual já trata dos procedimentos administrativos e demarcação de terras indígenas de que trata a Lei 6001/1973 e o art. 231 da Constituição. No decreto, já está inserido a competência do órgão federal de assistência ao índio. Ou seja, a nova Portaria cria regras dentro de regras, evidentemente desnecessárias.

CAPÍTULO II

DA ANÁLISE PRÉVIA DE ADMISSIBILIDADE

Art. 3º. Os requerimentos para identificação e delimitação de terras indígenas deverão ser formalizados por escrito e conter o máximo de informações possíveis sobre a área reivindicada e o povo indígena envolvido, observados os seguintes requisitos mínimos para seu processamento:

I – autoria determinada;

II – parâmetros geográficos mínimos, que permitam a localização da área reivindicada; e

III – na hipótese de a comunidade indígena não ser a requerente, identificação dos seus representantes e prova da sua concordância.

Desde antes do decreto nº 22/1991 baixado pelo então Presidente Collor de Mello, que os tais “requerimentos” são traduzidos em processos internos pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Qualquer nova reivindicação, seja por estabelecimento de Grupo Técnico para reconhecimento de terra indígena ou por revisão de terra já delimitada, é documentada pela FUNAI com formalização de um processo interno. Atualmente, os requerimentos para identificação e delimitação de terras indígenas são realizados pelas comunidades e organizações indígenas consolidadas e com reconhecimento dos órgãos governamentais. Pode-se considerar aqui uma conquista da autonomia dos povos indígenas resultado da Constituição de 1988. Na minuta apresentada pelo MJ, aparece a possibilidade de qualquer interessado apresentar requerimento (art. 3º), o que, em primeiro lugar, desconsidera a organização social dos índios e seu protagonismo, conforme sua história, organização social e a compreensão das necessidades de cada grupo, bem como os processos internos já estabelecidos na Funai. Por outro lado, o dispositivo abre a possibilidade de quaisquer interessados, além das comunidades e/ou organizações indígenas (incluindo invasores, prefeituras, governos estaduais e outros interessados emimpedir o reconhecido de uma terra indígena) formalizarem pedidos de identificação e delimitação de terras indígenas apresentando parâmetros geográficos e informações falsas, ao passo de legitimar a ocupação da área indígena ocupada por eles ilegalmente.

Quanto à prova de concordância da comunidade indígena interessada, basta lembrar os falsos documentos juntados no processo judicial relacionados aos índios Xavante de Marãwatsédé, registrados em cartório, onde um grupo de índios, aliciados (mediante pagamento em dinheiro) por fazendeiros invasores e com a anuência de autoridades locais e estaduais, pedia a permuta daquela terra com o Parque Estadual do Araguaia. O subterfúgio levou à suspensão da decisão colegiada do TRF1 pelo desembargador relator e somente foi superada após intensa mobilização dos índios, da atuação da Funai, do MPF e advogados e na instância superior.

Art. 6º. Com base no parecer técnico, a Presidência da Funai decidirá:

II – pelo arquivamento do procedimento administrativo, quando não houver elementos suficientes que justifiquem a constituição do grupo técnico de que trata o § 1º, do art. 2º, do Decreto 1.775, de 1996, em despacho motivado e publicado.

O inciso II combinado com o artigo 3º estabelece um procedimento inteiramente novo, uma análise prévia à constituição do grupo técnico. Contudo, segundo o Decreto 1.775/96, somente aquele grupo técnico estabelecido pela Funai pode avaliar os “elementos”complementares necessários ao reconhecimento de uma terra indígena a partir de um estudo antropológico realizado por profissional desta disciplina de qualificação reconhecida. Logo, o inciso II acima transcrito, cria dispositivo inexistente no Decreto 1.775/96, com potencial de suspender o procedimento de demarcação previsto no mesmo Decreto antes mesmo do dito procedimento ser iniciado.

CAPITULO III

DA CONSTITUIÇÃO DO GRUPO TÉCNICO E DO ACOMPANHAMENTO DOS TRABALHOS

Neste capítulo constam (art. 8º ao 12), seguramente, elementos que devem ser observados com atenção, pois cheios de subterfúgios e aparências de legalidade, porém com potencial prejuízos aos povos indígenas, às questões culturais do país e a preservação do meio ambiente, bem como ao patrimônio da União, dos brasileiros.

Lembre-se, que os deputados ruralistas em seus esforços para aprovar a PEC 215/00, utilizam, constantemente, em seus discursos, mensagem simpática de que o Congresso precisa participar, discutir as demarcações de terras indígenas, que isso faz parte do processo democrático do país, ao passo que, na prática, objetivam evitar as demarcações das terras tradicionais ocupadas ou reivindicadas por povos indígenas e formalizar áreas indevidamente usurpadas destas populações.

No formato proposto pelo MJ, os processos de demarcação de novas terras indígenas passam a ter interferências de representantes contrários aos interesses indígenas e de diversos órgãos governamentais.

a) Dos membros do Grupo Técnico: o desmonte da Funai

Art. 9º O grupo técnico será composto por profissionais com habilitação e experiência comprovada, conforme disposto no § 1º, do Decreto 1.775, de 1996, observada, no mínimo, a seguinte composição:

IV – um profissional com formação superior ou técnica de nível médio na área agronômica ou fundiária, que, na ausência de servidores da Funai, poderá ser indicado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.

O Decreto 1.775/96 estabelece claramente que o grupo técnico será composto preferencialmente por técnicos do seu quadro. A “habilitação e experiência comprovada” ali (art. 1º) restringem-se ao antropólogo que realizará os estudos antropológicos de identificação a partir do qual (“será fundamentada”) a Funai realizará os estudos complementares de natureza “etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário necessários à delimitação”. Preferência, reza o Houaiss, é a “possibilidade legal de passar à frente dos outros; prioridade”. Além disso, dispõe o § 2º do Decreto 1.775: “O levantamento fundiário de que trata o parágrafo anterior, será realizado, quando necessário, conjuntamente com o órgão federal ou estadual específico, cujos técnicos serão designados no prazo de vinte dias contados da data do recebimento da solicitação do órgão federal de assistência ao índio.

A Funai dispõe de quadros com esta qualificação (agrimensores, engenheiros cartógrafos, técnicos agrícolas etc.) aos quais será dada a preferência na composição do grupo técnico e a solicitação de apoio ao Incra e/ou institutos estaduais de terras é somente caso necessária, essa necessidade determinada, deduz-se, exclusivamente pela Funai (que de fato em muitos casos já o faz, há anos).  A proposta do MJ nada acrescenta ao Decreto o que leva-nos a conjecturar de intenções não declaradas por detrás destas inovações inócuas. Dentre elas o de possibilitar a consumação de laudos ou contra laudos desfavoráveis aos interesses e direitos dos povos indígenas, e base para futuras ações judiciais, como veremos mais adiante.

b)     A interferência da AGU no Grupo Técnico:

Art. 9º, V – um procurador federal, indicado pela AGU preferencialmente entre os profissionais lotados na Procuradoria Federal Especializada junto à Funai.

Reza o Decreto 1.775/96 em seu § 4° “O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata este artigo.”

São estudos, lembramos, para delimitação/revisão de uma determinada terra indígena e o texto é explícito ao assinalar que tal recorrência a “comunidade científica ou de outros órgãos públicos” só se dará para “embasar” aqueles estudos e quando for o caso – ou seja, a determinação do caso será de iniciativa do órgão federal de assistência aos índios, a Funai, e não o Ministro da Justiça.

O Ministro e/ou seus assessores ao formularem esta proposta demonstram desconhecer os procedimentos internos da Funai, pois NENHUM processo de reconhecimento de terras indígenas segue seus trâmites SEM passar por pareceres da Procuradoria Federal Especializada.

Por outro lado, e aqui novamente a proposta do MJ deixa-nos alerta para intenções outras, a AGU tem assumido postura, abertamente, contra os direitos indígenas, tanto que é responsável pela portaria 303/2012. Vale lembrar que a Procuradoria Especializada tem sofrido com reestruturação da AGU, quando os profissionais foram retirados das sedes regionais da Funai e lotados em órgão centralizado, distante das comunidades indígenas. Temos ainda informações que o chefe da AGU tem agido administrativamente para impedir que seus subordinados lotados na PFE da Funai se manifestem em processos judiciais cuja demanda é a posse indígena, agindo pois com o intuito de impedir que a União (proprietária presente, passado ou futuro desta parcela do território nacional) se manifeste no processo – dando ao Judiciário ou aos advogados de pretensos proprietários, argumento formidável para a descaracterização da posse indígena. Aqui, abre-se espaço para interferências/pressões do Ministro da AGU, cargo atualmente ocupado por Luiz Ignácio Adams, que na reestruturação concentrou poderes.

c)      O novo formato do GT: o controle dos processos administrativos passa a ser dos ruralistas (CNA), mineradoras, empreiteiras e base aliada (PMDB, PP, etc.)

Art. 10. No prazo de cinco dias contados da data da publicação da constituição do grupo técnico de que trata o art. 8º, a Funai notificará:

I – a comunidade indígena envolvida;

II – os Estados e os Municípios em que se localize a área em estudo;

III – os seguintes órgãos federais:

a) Secretaria-Geral da Presidência da República;

b) Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República;

c) Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento;

d) Ministério das Cidades;

e) Ministério do Desenvolvimento Agrário;

f) Ministério do Meio Ambiente;

g) Ministério de Minas e Energia;

h) Ministério do Planejamento;

i) Ministério dos Transportes;

§ 1º Outros órgãos poderão ser notificados, conforme as peculiaridades da área objeto de estudo.

§ 2º As Comunidades indígenas envolvidas indicarão representantes para participarem do procedimento administrativo, segundo suas formas próprias de representação, para atendimento do disposto no § 3º, do art. 2º, do Decreto nº 1.775, de 1996, e nos artigos 6º e 7º do Decreto nº 5.051, de 2004.

§ 3º Os órgãos referidos no inciso III, do caput, sem prejuízo de sua manifestação, poderão consultar seus órgãos e entidades vinculadas que tenham pertinência temática com a matéria, bem como indicar representantes para acompanhar e participar das atividades de campo do grupo técnico.

Aqui novamente a proposta do MJ de regulamentação do Decreto 1.775/96 fere o próprio Decreto. Dispõe este diploma legal em seu   §4°: “O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata este artigo”. É o GT constituído pela Funai que, quando for o caso, solicitará a contribuição de membros de outros órgão – o que supõe que essa solicitação de contribuição deverá, a critério do coordenador do grupo técnico, ser relevante para embasar os estudos. Querer estabelecer por Portaria a quais órgãos públicos o coordenador do GT da Funai deverá obrigatoriamente solicitar colaboração fere frontalmente o disposto no Decreto 1.775.

Além deste aspecto ilegal e perigoso, o Ministro propõe ainda que os membros de órgãos do governo indiquem “representantes para acompanhar e participar das atividades de campo do grupo técnico”.  Tal proposta é uma verdadeira aberração e contraria diretamente o disposto no Parágrafo 1º do Decreto 1.775 e introduz, novamente, procedimentos não estabelecidos naquele diploma legal. Ou o Ministro imagina que os índios irão permitir que agentes de órgãos claramente dispostos a contrariar seus interesses adentrarão suas aldeias? Ou o Ministro recorrerá à Polícia Federal ou à Força Nacional de Segurança, para lhes dar apoio?

Novamente entendemos que o Ministro da Justiça visa outras intenções que não aquela de regular os procedimentos do Decreto 1.775, mas sim o de estrangular os procedimentos, inviabilizando-os para que, como nos anos de chumbo o faziam agentes de uma  FUNAI militarizada, protelava o reconhecimento dos direitos territoriais indígenas para que os invasores tivessem tempo suficiente para consolidar suas “propriedades”.

No que se refere às comunidades indígenas – inciso I e § 2º do artigo –um detalhe chama a atenção, que é a Convenção 169 da OIT, indicando uma possível vinculação com o propósito do governo brasileiro de regulamentação da Consulta. Conforme já se sabe, o governo brasileiro tem defendido posição de que as comunidades indígenas não tem direito de veto, ou de decisão. No contexto desta Portaria, as comunidades indígenas passam a ser consultadas, sem poder de decisão, referendando proposta de demarcação de um emaranhado de órgãos públicos enumerados ou não no art. 10.

O processo de demarcação sai da esfera técnica do que é uma terra indígena (art. 231, § 1º) e passa para a esfera política (com seus tentáculos e tomas-lá-da cá), numa situação muito semelhante ao almejado com a PEC 215/00, tornando impossível a demarcação de novas terras indígenas. Nos termos da proposta do Ministro da Justiça, o Executivo continua com sua função de demarcar uma terra indígena, mas sob o controle dos Ministros indicados pela “base aliada” ou seja, a bancada ruralista no Congresso. Não é a toa que os Ministros da Agricultura, Minas e Energia, Cidades, Transportes, poderosos em termos orçamentários, são indicados pela tal “base”, sem falar do Ministério do Meio Ambiente, conduzido por uma “técnica” que sabe muito bem ouvir aquela “base”.

Neste formato, os trabalhos de campo serão prejudicados, sofrerão interferências constantes, resultando em demora imotivada. Na prática, os trabalhos de campo tornam-se inviáveis e servirão de base para novos processos judiciais. Os trabalhos de campo dificilmente serão concluídos. E o pior, os processos que por ventura chegarem ao final, não atenderão aos limites das terras indígenas definidos na CF/88. Esperar que os índios  concordarão em referendar tais  procedimentos é desconhecer a natureza da luta destes povos.

Esse modelo repete aquele praticado pelo Governo Militar durante a ditadura, como se percebe pela sua evidente analogia com o espírito da manifestação do Coronel Nobre da Veiga, que esteve à frente da FUNAI entre 1979 e 1981, a respeito dos procedimentos então realizados:

“toda vez que é eleita uma área indígena, antes de ela ser decretada, de ser oficializada, procuramos encaminhar, como temos feito, aos Governos dos Estados, aos órgãos federais e estaduais que se interessam pela terra, tais como IBDF, CEMA, INCRA, o DNER, o DNPM, todos os institutos de terra do Estado, de maneira que não passamos à eleição da área sem que esses órgãos nos digam quais serão os problemas criados por essa eleição, para evitar os conflitos que hoje existem em quase todas as 250 reservas indígenas…” (Coronel Nobre da Veiga, Comissão da Câmara, 17/9/1980).

Art. 11. A notificação de que trata o art. 10 deverá conter:

I – informação quanto à constituição de grupo técnico especializado e a natureza dos estudos de identificação e delimitação de terras indígenas;

II – informações sobre a área objeto de estudo e o povo indígena envolvido; e

III – solicitação para que:

a) no prazo de quinze dias indique representante técnico para acompanhar o trabalho do grupo técnico;

b) no prazo previsto no § 5o, do art. 2o, do Decreto no 1.775, de 1996, forneça informações relevantes sobre a área e apresente quesitos sobre o processo de identificação e delimitação a serem respondidos pelo grupo técnico.

Parágrafo único. A ausência de manifestação ou indicação de representantes técnicos no prazo do inciso III, do caput, não obstará o prosseguimento dos trabalhos do grupo técnico.

Art. 12. Transcorrido o prazo de que trata o inciso III, do art. 11, a Funai publicará ato com a relação dos indicados para acompanhar os trabalhos do grupo técnico.

Parágrafo único. O grupo técnico iniciará seus trabalhos após a publicação da relação de que trata o caput.

O desconhecimento que o Ministério da Justiça detém sobre os procedimentos de identificação de uma terra tradicional indígena é pasmante e vergonhosa. Com certeza os técnicos e responsáveis por estes procedimentos na Funai devem ter passado, senão ao Ministro, mas aos seus assessores, como se realiza este processo de reconhecimento. Pois é disso que se trata: reconhecer, ou seja, identificar, por via de estudos antropológicos e etnohistóricos, a ocupação de um determinado trato de terras por um povo indígena para que o Estado reconheça aquele trato de terra como de ocupação tradicional indígena. É isso que diz o artigo 231 da Constituição. Nada mais. Identificar é reconhecer: uma terra é indígena independentemente deste reconhecimento; o procedimento é meramente formal, administrativo. Estes Estudos, coordenado e conduzido por antropólogo de qualificação reconhecida (art 2º do Decreto 1.775), é em geral feito solitariamente por ele. Este é o espírito do Decreto: o antropólogo deve ter toda a liberdade para realizar seu estudo, sem pressões ou constrangimentos de qualquer ordem. É com base neste estudo antropológico que a Funai constitui o GT para “estudos complementares” (parágrafo 1º do 1.775). Contrariando mais uma vez o Decreto, o Ministro da Justiça quer que esse antropólogo vá a campo com uma tropa de, do mínimo, 14 pessoas! Na proposta do Ministro, o GT de identificação e delimitação será formado pelos profissionais indicados pela Funai na Portaria que cria o GT (mínimo 03 pessoas) e pelos técnicos indicados pelos respectivos estados, municípios (pelo menos 02) e dos 09 ministérios notificados, mais seus órgãos e entidades vinculadas. O que pretende o Ministro da Justiça com tal absurdo? Avaliamos que é para simplesmente inviabilizar o processo, porque nem os povos indígenas se submeterão a tal constrangimento e muito menos o antropólogo, se de “qualificação reconhecida” for.

CAPÍTULO IV

DA IDENTIFICAÇÃO E DA DELIMITAÇÃO DA ÁREA

a)       O trabalho dos Antropólogos: desqualificação

Art. 14. O grupo técnico elaborará estudos complementares de natureza etno-histórica, jurídica, cartográfica, ambiental e fundiária da área em estudo, observado o disposto em portarias do Ministério da Justiça e da Presidência da Funai.

Parágrafo único. Em caso de divergência total ou parcial entre os membros do grupo técnico sobre a proposta de delimitação da área, a posição divergente será consignada em separado, em parecer fundamentado, que integrará o relatório circunstanciado de identificação e delimitação.

Neste Parágrafo Único se expõe com todas as letras as intenções perversas do Ministro da Justiça. Como ele espera haver consenso com polos tão díspares e que defendem interesses antagônicos neste Grupão da ditadura ressuscitado? Fica evidente que a decisão sobre os dissensos – óbvios – será arbitrada por ele. E havendo dissenso, o processo não avançará! Se atualmente o Ministério devolve processos para a Funai “efetuar novas diligências” ao menor reclamo de um deputado da “base aliada” imaginamos como será se tal Portaria vier a ser publicada. Além disso, com a redação acima transcrita, dentro do GT poderão ser construídas peças a ser usadas para posterior questionamento judicial da decisão tomada pelo GT e pela presidência da Funai.

Deste modo, a valoração de pareceres divergentes ou contra laudos, criados no interior dos GTs, somados aos questionamentos de representantes dos diversos órgãos públicos (art. 10) sem a devida qualificação para atuar nas questões indígenas, além de desconsiderar os trabalhos de quem coordena o GT, fragiliza os estudos e servirão de base para a interposição de novos processos judiciais. O trabalho do Antropólogo é desvalorizado.

Este modelo contraria os principais julgados dos tribunais que referendaram os trabalhos antropológicos. O Poder Judiciário tem reconhecido e acolhido os trabalhos antropológicos, produzidos com qualificação por profissionais geralmente indicados pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Vejamos:

a.1) Petição 3.388/RR – Terra Indígena Raposa Serra do Sol

“3. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO: (…) 3.2. Os dados e peças de caráter antropológico foram revelados e subscritos por profissionais de reconhecida qualificação científica e se dotaram de todos os elementos exigidos pela Constituição e pelo Direito infraconstitucional para a demarcação de terras indígenas, não sendo obrigatória a subscrição do laudo por todos os integrantes do grupo técnico (Decretos n. 22/91 e 1.775/96).”

a.2) Apelação Cível n. 2007.01.00.051031-1 – Xavante de Marãiwatsédé

“22. O Laudo Pericial Antropológico, fartamente instruído por documentos históricos, corrobora as assertivas contidas no Parecer da FUNAI, não deixando margem a nenhuma dúvida de que a comunidade indígena Xavante Marãiwatsédé foi despojada da posse de suas terras na década de sessenta, a partir do momento em que o Estado de Mato Grosso passou a emitir títulos de propriedade a não-índios, impulsionados pelo espírito expansionista de ‘colonização’ daquela região brasileira.”

b) Contradição com o direito originário e o falso conflito ou impactos com áreas urbanas, áreas ocupadas por comunidades tradicionais e por agricultores familiares

Art. 16. O grupo técnico elaborará relatório circunstanciado de identificação e delimitação da terra indígena contendo as seguintes informações:

I – estudo antropológico de identificação da área em estudo, conforme disposto no art. 13;

II – dados gerais sobre a comunidade indígena interessada, com a descrição e análise do histórico de ocupação da área;

III – identificação, localização e descrição detalhada das áreas de ocupação tradicional e das indispensáveis à habitação e a reprodução física e cultural da comunidade indígena;

IV – descrição e análise das atividades produtivas, incluindo a identificação, localização e dimensão das áreas ocupadas e os recursos naturais necessários para este fim;

V – levantamento fundiário, com o histórico, a natureza e o detalhamento da ocupação indígena e não-indígena;

VI – manifestações de que trata a alínea “b”, do inciso III, do art. 11;

VII – resposta aos quesitos formulados ao grupo técnico, nos termos da alínea “b”, do inciso III, do art. 11;

VIII – parecer em separado dos membros do grupo técnico na hipótese de divergência, nos termos do parágrafo único, do art. 14;

IX – análise das manifestações de que tratam os incisos VI e VIII, detalhando os motivos para seu acolhimento, total ou parcial, ou para sua rejeição;

X – conclusão e proposta de delimitação da terra indígena, contendo os limites da área a ser demarcada;

§ 1º O relatório circunstanciado de identificação e delimitação atenderá, ainda, integralmente aos requisitos e dispositivos da Portaria nº 14, de 09 de janeiro de 1996.

O art. 16, incisos e § 1º da minuta, modificam, ampliam e contradizem exigências estabelecidas pela Portaria/FUNAI nº 14, de 09 de janeiro de 1996 que estabelece regras sobre a elaboração do Relatório Circunstanciado de identificação e delimitação de terras indígenas, incluindo e oficializando potenciais posições divergentes ocorridas no interior do GT. Ao mesmo tempo, indica que deve-se continuar a seguí-las, resultando em contradição, que só tem como objetivo impossibilitar a finalização da elaboração dos Relatórios.

§ 2º – A proposta de delimitação de terra indígena deverá ser elaborada procurando minimizar eventuais conflitos ou impactos, especialmente em relação a áreas urbanas, áreas ocupadas por comunidades tradicionais e por agricultores familiares.

Como acima esclarecido, toda e qualquer identificação/demarcação de terras indígenas hoje acarreta necessariamente o conflito. É o preço que o Estado brasileiro tem que arcar por sua omissão, isto é, pelo não reconhecimento destas terras anteriormente e por haver deixado que um estado federado tratasse terras indígenas como se devolutas fossem. Terras Indígenas são indígenas sempre porque os direitos que detém são originários, isto é, são anteriores ao próprio Estado brasileiro diz a Constituição. O § 2º acima, ao estabelecer critério indutor de redução das terras tradicionais dos povos indígenas, fere frontalmente a Constituição.

A redução de territórios indígenas foi afastada no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, Petição 3.388/RR. Vejamos:

1.3. O MODELO PECULIARMENTE CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. O modelo de demarcação das terras indígenas é orientado pela ideia de continuidade. Demarcação por fronteiras vivas ou abertas em seu interior, para que se forme um perfil coletivo e se afirme a auto-suficiência econômica de toda uma comunidade usufrutuária. Modelo bem mais serviente da ideia cultural e econômica de abertura de horizontes do que de fechamento em “bolsões”, ilhas, “blocos” ou “clusters”, a evitar que se dizime o espírito pela eliminação progressiva dos elementos de uma dada cultura (etnocídio).

Porém, a Constituição de 1988 também assegurou, harmonicamente, os direitos das demais comunidades tradicionais e dos agricultores familiares.

No contexto, a percepção de que a Constituição traz conflitos entre direitos ou que os direitos dos índios impactam áreas urbanas, comunidades tradicionais ou de agricultores familiares não procede. Posição contrária não resiste a uma leitura dos fatos e do direito, além de eivada de preconceito, triste lembrança colonizadora.

As comunidades tradicionais conviveram e convivem pacificamente com as populações indígenas. Muitas desde os tempos da escravidão, pois foram os índios que lhes deram abrigo quando perseguidos pelos escravocratas, precursores dos ruralistas de hoje. O que se vê é a unidade entre comunidades tradicionais e indígenas, pois sofrem as mesmas pressões em seus territórios, por parte dos mesmos grupos invasores, que tem seus interesse atendidos pela Minuta do Ministro da Justiça.

Em relação aos agricultores familiares, não há impacto e sim uma significativa soma. A legislação vigente, em particular o próprio decreto 1775/96, garante o reassentamento dos agricultores familiares, os quais, ficam em melhores condições, pois os módulos rurais do Incra, geralmente, são maiores que as terras que dispõem, facilitando, inclusive, o acesso às linhas de créditos. Nos últimos dias representantes dos agricultores de Santa Catarina estiveram em Brasília, reunidos com o Ministro da Justiça, apoiando processos de demarcações e cobrando seus direitos. Na Bahia, grupos de agricultores ocupantes da Terra Indígena Tupinambá de Olivença também tem solicitado apoio para receber as indenizações e ser incluídos em projetos de reforma agrária.

Por fim, também não é verdade que as demarcações de terras indígenas impactam áreas urbanas. O que ocorre é a pressão imobiliária de hotéis, cartórios ou mesmo resortes para adentrar em terras indígenas (grileiros em geral). Eventuais conflitos com populações urbanas devem ser resolvidos caso a caso e não de forma genérica.

Para apontar os equívocos na Portaria que é apresentada, recorremos novamente ao entendimento do STF na Petição 3.388/RR:

“10. O FALSO ANTAGONISMO ENTRE A QUESTÃO INDÍGENA E O DESENVOLVIMENTO. Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que incumbe não é subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras, mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da Constituição Federal, assecuratório de um tipo de desenvolvimento nacional tão ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a incorporar a realidade indígena.”

O que a legislação brasileira propõe, suficientemente, é resguardar o direito de cada grupo ou pessoas e não restringir o direito de um grupo/pessoas e conceder a quem não dispõe do direito.

c)      Nova instância no procedimento administrativo e Câmara de Conciliação

Art. 17. O coordenador do grupo técnico apresentará o relatório circunstanciado à Funai, que encaminhará cópia aos representantes da comunidade indígena envolvida, dos órgãos públicos e dos entes federados que acompanham os trabalhos do grupo técnico.

O relatório circunstanciado será disponibilizado aos demais órgãos públicos, estados e municípios antes da sua publicação no DOU, resultando, por óbvio, pressão política de toda ordem.

§ 1º Os representantes da comunidade indígena envolvida, dos órgãos públicos e dos entes federados que acompanham os trabalhos do grupo técnico poderão manifestar-se no prazo de trinta dias do recebimento da cópia do relatório circunstanciado de identificação e delimitação, apresentando à Funai razões instruídas com todas as provas pertinentes.

Cria-se mais uma possibilidade de questionamento do Relatório Circunstanciado não previsto no Decreto 1775/96 e estabelece prazo de trinta dias para tanto.

§ 2o O órgão competente da Funai elaborará parecer técnico sobre o seu conteúdo do relatório circunstanciado de identificação e delimitação, bem como sobre as manifestações previstas no § 1o, encaminhando o procedimento à deliberação da Presidência da Funai.

§ 3o Constatados conflitos de interesses que possam prejudicar a regular tramitação do processo de demarcação ou a garantia dos direitos das comunidades indígenas envolvidas e dos demais interessados na área proposta para delimitação, a Presidência da Funai poderá encaminhar o processo administrativo ao Ministério da Justiça, solicitando a instauração de procedimento de mediação pela Câmara de Conciliação e Mediação de Conflitos, da Assessoria Especial para Questões Indígenas, do Gabinete do Ministro da Justiça.

Por meio deste dispositivo, cria-se uma nova instância, a Câmara de Conciliação e Mediação de Conflitos no âmbito do MJ, não prevista no Decreto 1775/96, para deliberação sobre o conteúdo do  Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação de terra indígena independente da presidência da Funai, além de retirar poderes do órgão indigenista.

§ 4o A Câmara de Conciliação e Mediação de Conflitos restituirá o processo administrativo à Funai, com parecer contendo o relatório e os resultados do procedimento de mediação, para decisão da Presidência da Funai.

A decisão da presidente da Funai sobre o relatório Circunstanciado fica subjugada (moral e tecnicamente) ao parecer da Câmara de Conciliação. A decisão da presidência da Funai, é transformada, com isso, em mero ato formal e poderá ser, inclusive, contraditória com eventual posição da Funai.

Esta nova fase vem acompanhada da criação de “Câmara de Conciliação e Mediação de Conflitos” no interior do Ministério da Justiça, que não traz elementos suficientes para um diagnóstico maior. Porém tudo indica que a proposta visa substituir e oficializar as atuais mesas de negociação, que ainda não apresentaram resultados práticos aos direitos dos índios, dos pequenos agricultores ou mesmo sobre possíveis direitos de quem dispõe de títulos concedidos indevidamente pelo poder público. A viabilização da proposta não encontra plausibilidade dentro de um emaranhado de questões desconexas e desnecessárias (contrárias a preceitos constitucionais) apresentado na proposta de Portaria. O que não se admite em uma Câmara de Conciliação e Mediação é propor conciliar interesses antagônicos quando desprovidos de base legal, como por exemplo a redução de terras indígenas.

Contudo, as organizações indígenas e indigenistas indicam a necessidade de atender as demandas dos pequenos agricultores com urgência, principalmente daqueles que se dispõem a sair das terras indígenas. Porém, os dispositivos jurídicos já existem e dependem, tão somente, de vontade política e não de uma nova Portaria. No procedimento do Decreto 1.775/96 a Funai já promove o levantamento destas questões, que dependem tão somente de encaminhamentos práticos.

Art. 18. A Presidência da Funai, observado o disposto no art. 17, decidirá:

I – pela aprovação do relatório;

II – pela rejeição do relatório; ou

III – pela determinação ao grupo técnico para que realize diligências complementares ou a revisão da proposta de delimitação, estabelecendo prazo para conclusão.

Parágrafo único. Nos casos de que tratam os incisos II e III do caput, a Presidência da Funai poderá determinar a constituição de novo grupo técnico para revisão do relatório circunstanciado, estabelecendo prazo para sua conclusão.

Mais uma vez abre possibilidade do procedimento voltar “à estaca zero” com a constituição de um novo GT.

d)     Das Audiências Públicas para discutir direitos de minorias

Art. 25. Para receber outras contribuições sobre as demarcações de terras indígenas e instruir o processo com outras informações, o Ministro da Justiça poderá promover audiência pública, nos termos do art. 32, da Lei no 9.784, de 29 de janeiro de 1999.

A Constituição de 1988, em seu art. 231, declara os direitos dos índios e também assegura que a União deve proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Em se tratando dos direitos de minorias, ao analisar Mandado de Segurança de autoria de um grupo de deputados questionando a tramitação da PEC 215 (MS 32262), o Ministro Roberto Barroso assim pronunciou:

“MANDADO DE SEGURANÇA. PROPOSTA DE EMENDA CONSTITUCIONAL. DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS 1. Mandado de segurança impetrado por parlamentares para o fim de obstar a tramitação de proposta de emenda à Constituição que exige aprovação do Congresso Nacional para a demarcação de terras indígenas. 2. Plausibilidade do argumento de que poderia ocorrer ofensa a cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV), diante da natureza do direito dos índios à demarcação segundo o critério da ocupação tradicional e do risco de seu potencial esvaziamento pela submissão à deliberação majoritária.”

A iniciativa pode causar mais prejuízos do que benefícios, vide a audiência pública promovida pela Comissão de Agricultura da Câmara, no interior do Rio Grande do Sul em 29 de novembro de 2013.

Art. 26. Observado o disposto nos arts. 22 a 25, o Ministro da Justiça decidirá sobre as questões suscitadas nas manifestações de que trata o art. 20, e:

I – declarará, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua demarcação;

II – prescreverá diligências que julgue necessárias; ou

III – rejeitará a proposta de identificação e delimitação da terra indígena, retornando os autos à Funai, mediante decisão fundamentada do não atendimento ao disposto no § 1o, do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes.

Parágrafo único. Nos casos de que tratam os incisos II e III do caput, o Ministro da Justiça poderá determinar à Presidência da Funai a reavaliação da proposta de identificação e delimitação da terra indígena, com base nas manifestações e pareceres que integram o processo, bem como a realização de novos estudos, inclusive com a constituição de novo grupo técnico.

Neste artigo, aparece mais uma possibilidade de constituição de novo GT – o terceiro – para estudo da mesma terra indígena.

CAPÍTULO V

DISPOSIÇÕES FINAIS

Art. 28. É assegurado aos membros da comunidade científica, às entidades civis e a quaisquer interessados, o acompanhamento do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, desde que não interfiram de modo a perturbar ou impedir o seu regular processamento.

Abre-se a oportunidade para “entidades civis e quaisquer interessado” acompanhar o trabalho do GT. Pode-se aferir que os sindicatos rurais, federações sindicais e a própria Confederação Nacional da Agricultura (CNA) poderão acompanhar o procedimento administrativo. Ou seja, os inimigos históricos dos índios, muitos dos quais seus agressores, passam a acompanhar e por óbvio interferir no processo administrativo, seja através de pressão política, imprensa, etc.

Art. 34. Considera-se de má-fé o ocupante não-indígena que houver se apossado da área, ainda que mediante contrato de compra e venda, após a ciência, por qualquer meio, do conteúdo do relatório circunstanciado de identificação e delimitação.

Limita o conceito de ocupação de má-fé e considera somente as ocupações posteriores ao relatório circunstanciado. É a tentativa de legitimar as invasões dos territórios indígenas e o pagamento pela terra a grileiros e fazendeiros que, comprovadamente expulsaram os povos para se apossarem de suas terras.

Art. 36. Revoga-se a Portaria do Ministro da Justiça no 2.498, de 31 de outubro de 2011.

Já existe uma portaria regulamentando a participação de “entes federados” no procedimento de demarcação.

V – O DESMONTE DA FUNAI

Após a Constituição de 1988, a Funai tem se firmado como o principal órgão do Estado brasileiro com condições de dar suporte técnico aos processos de demarcação de terras indígenas e promover a defesa destes povos tradicionais. Isso proporcionou um acúmulo de conhecimento técnico-jurídico e histórico, bem como da diversidade cultural dos povos existentes no Brasil que nenhum outro órgão público dispõe atualmente.

Recentemente, a Funai passou a ser alvo de crítica intensas, resultando em perda de autonomia, de orçamento, com redução de seu quadro profissional. Não é de se estranhar que os ataques contra a Funai partem justamente daqueles que atacam os direitos indígenas no Congresso Nacional ou dentro do governo brasileiro.

Por oportuno, deve-se reconhecer que o desprestígio da Funai, somado aos constantes cortes de orçamento e da falta de profissionais representam um retrocesso na política indigenista do Brasil.

A minuta de Portaria do MJ é um sinal de que o atual governo está disposto a ceder aos reclames dos ruralistas e de setores do próprio governo, em detrimento dos direitos indígenas.

Deste modo, o governos brasileiro, através do MJ, terá que fazer uma escolha: ou atende as reivindicações dos povos indígenas dando seguimento aos processos administrativos de demarcação das terras tradicionais, com a criação de novos GTs (condição posta na Constituição de 1988 e acolhida pelos tribunais); ou, atenda os reclames dos ruralistas invasores das terras indígenas com a publicação da Portaria que estabelece instruções para execução do procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas de que trata o Decreto nº 1.775/96.

VI – CONCLUSÃO

Os argumentos dos que defendem mudar a legislação em vigor ou estabelecer novas instruções para resolver as questões indígenas, comandados pelo atual ministro José Eduardo Cardozo, não resiste a uma análise jurídica apurada. O instrumento tem caráter mais político do que jurídico, em razão do atrelamento desse governo aos interesses econômicos. Considera-se, deste modo, que os elementos apresentados são suficientes para concluir que:

  1. O ordenamento jurídico brasileiro dispõe de normas suficientes para atender aos direitos dos povos indígenas (demarcação de suas terras); aos direitos dos pequenos agricultores (reassentamento e indenizações); às indenizações de detentores de títulos concedidos pelo poder público aos particulares; e, de todas as comunidades tradicionais. Este argumento foi defendido em audiência pública na Comissão de Legislação Participativa[5];
  2. A minuta de Portaria apresentado pelo MJ não tem força de Lei e contraria princípio constitucional da proibição do retrocesso e afronta os principais julgados dos tribunais;
  3. A minuta do MJ não responde aos desafios atuais envolvendo demarcações de terras indígenas, populações tradicionais e pequenos agricultores e pode potencializar os conflitos;
  4. A minuta de Portaria cria dificuldades insuperáveis, desnecessárias, promove contradições nos trabalhos dos GTs que embasarão novos processos judiciais;
  5. A minuta apresentada não responde sobre a situação dos processos administrativos em curso na FUNAI, no Ministério da Justiça e na Casa Civil;
  6. A proposição consolida o desmantelamento da FUNAI e relativiza os trabalhos antropológicos (reconhecidos nos julgados), consubstanciando os interesses dos mais diversos dentro do processo administrativo, em detrimento dos direitos indígenas;
  7. O antropólogo, coordenador do Grupo Técnico, perde o controle do relatório de identificação e delimitação, substituindo as questões técnicas por elementos políticos, muito semelhante ao propósito da PEC 215/00;
  8. Por fim, a proposição acolhe interesses dos ruralistas e tem semelhança objetiva com a PEC 215, PLP 227, Portaria 303/2012 da AGU, entre outros;
  9. Uma eventual publicação da Portaria em questão reforçará compreensão, por parte dos povos indígenas, organizações de apoio aos povos e da sociedade em geral de que o Governo Dilma é claramente anti-indígena, aliado de primeira hora dos ruralistas, alinhado aos interesses do poder econômico nacional e transnacional, notoriamente do agronegócio, e obstinado por um modelo de desenvolvimento neocolonizador, usurpador de territórios, etnocida e ecocida.

Por todo o exposto, as organizações que subscrevem exortam o governo brasileiro a desistir, definitivamente, da tentativa de publicação desta portaria e a se concentrar na retomada da demarcação das terras tradicionais conforme prescreve a Carta Magna brasileira e as normas infraconstitucionais vigentes no país. O caminho jurídico para a superação dos conflitos que a temática enseja já existe e está aberto. Basta o governo brasileiro respeitar e fazer cumprir.

Assinam este parecer as seguintes organizações indígenas e indigenistas:

  • Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB
  • Bancada Indígena da Comissão Nacional de Política Indigenista e da Mesa de Diálogo
  • Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB
  • Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo – APOINME
  • Grande Assembleia Guarani Kaiowá – Aty Guassu
  • Conselho Do Povo Terena
  • Articulação dos Povos Indígenas do Sul – ArpinSul
  • Conselho Indigenista Missionário – CIMI
  • Centro de Trabalho Indigenista – CTI
  • Instituto Socioambiental – ISA
  • Greenpeace Brasil

NOTAS DE RODAPÉ:

[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Editora Malheiros, 18.ª edição, 2000, p.831.

[2] ACO 312 – Processo dos índios Pataxó HãHãHãe.

[3] O que são Direitos das Pessoas?, p. 54/55, 1984, Brasiliense.

[4] Advocacia e ilegalidade anti-índio. Disponível em:  http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2012/08/24/advocacia-e-ilegalidade-anti-indio-2/. Acesso: 08/04/2014

[5] Comissão de Legislação Participativa – Audiência Pública.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Helena Ladeira.

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