Por Talita Bedinelli, de Santa Rosa do Purus (AC), em El País
Há um ano, um vídeo que mostrava sete homens quase nus, com cabelos cortados à tigelinha e que tentavam uma aproximação com índios ashaninka em uma terra indígena do Acre, na fronteira do Peru com o Brasil, causava alvoroço no país. Eles faziam parte da etnia Sapanahua, que até aquele momento tinha escolhido viver de forma isolada, no meio da floresta, mas procurava ajuda para fugir de pistoleiros peruanos que atacaram seu povo.
Desde aquela primeira aparição, em 27 de junho de 2014, quase 30 índios da etnia decidiram deixar o isolamento. Entre eles, mulheres e ao menos seis crianças. Neste período, um bebê nasceu. E todos pegaram gripe, doença para a qual não têm imunidade.
Vídeos obtidos com exclusividade pelo EL PAÍS mostram um pouco da vida desses índios dentro de uma base da Fundação Nacional do Índio (Funai) onde eles foram abrigados. Em um deles, dois sapanahua, os mesmos que faziam parte dos sete primeiros a deixar o isolamento, estão ajoelhados ao lado de um homem gripado em uma rede. São xamãs, que fazem um ritual de cura, em meio a cânticos.
No outro, uma mulher, que aparece sentada no chão, está tossindo. Está ao lado de duas mulheres acomodadas em redes – uma explica em sua língua, do tronco linguístico pano, os nomes de seus parentes (segundo informações fornecidas por uma fonte, que pediu anonimato). O diálogo faz referência aos tempos em que viviam na sua aldeia original. Ela diz que, por causa dos ataques de pistoleiros, sofridos por seu povo na floresta, eles têm encontrado dificuldades para achar nomes para novos membros da aldeia. O grupo acredita não trazer sorte nomear alguém a partir de pessoas mortas.
No outro canto da sala, uma quarta mulher, bem mais jovem, tece uma rede. Todas usam cabelos longos, com franjas curtas e têm o topo da cabeça aparentemente raspado. Elas riem bastante, mesmo a que aparenta estar doente, e usam roupas comuns.
A chegada desses índios, que viviam em isolamento dentro da Amazônia, tem se mostrado um desafio para a política indigenista brasileira, especialmente na área da saúde. Desde 1988, o país tem como regra só se aproximar de povos isolados quando se detecta que eles correm grandes riscos – antes disso, a regra era procurar esses grupos, afastá-los de áreas necessárias para a construção de projetos de infraestrutura e confiná-los em outros locais. No entanto, quando a saída do isolamento parte dos próprios índios, como nesse caso, cabe à Funai atendê-los e, caso seja a vontade deles, auxiliar para que façam suas aldeias.
Os sapanahua decidiram seguir por esse caminho. Criaram uma aldeia perto da base da Funai, que foi reativada depois do contato. Ainda voltam de tempos em tempos para a aldeia antiga, onde viviam, que fica distante dali. Durante muito tempo, se alimentaram de comida levada até lá em barcos ou avião. Mas, atualmente, possuem um roçado, onde plantaram banana, mandioca, cana e milho. Dividem com os ashanika a Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio Envira, de 650.000 hectares.
O problema é que os casos de contato costumam ser desastrosos quando não há auxílio médico – há casos de aldeias que perderam 90% de seus membros. Quando decidem deixar o isolamento, esses índios demoram até três gerações para adquirir a imunidade necessária para lidar com gripe, malária, hepatite ou sarampo, doenças comuns entre os brancos e índios da região, como os ashaninka ou os jaminauá, que por falarem uma língua do mesmo tronco, viraram intérpretes entre eles e os funcionários do Governo, em uma relação que tem gerado atritos, já que os índios reclamam de não terem segurança ou atenção médica para praticar o trabalho.
Segundo relatos obtidos pela reportagem, todos os sapanahua que ficaram doentes passam bem e foram vacinados. Uma fonte relatou ao EL PAÍS que a equipe médica esteve por três vezes com esses índios neste intervalo de um ano. Eles chegam ao local após 1h30 de voo, a partir de Rio Branco – de barco, a mesma viagem dura sete dias. Uma das mulheres, entretanto, apresenta dor de dente, mas o dentista até o mês passado nunca havia aparecido.
Os índios optaram por permanecer próximos à base da Funai, segundo os relatos obtidos pela reportagem. Esse local, que deveria servir de posto de vigilância para garantir a segurança desses povos, estava desativado antes da chegada dos isolados, justamente por causa da ação de pistoleiros que circulam ali para a retirada ilegal de madeira ou para usar a região como rota para escoar a produção de drogas. Com isso, os povos isolados, alguns deles já conhecidos e monitorados pelo Governo brasileiro, ficaram abandonados à própria sorte. Na região, há relatos de que outros isolados têm se aproximado de aldeias e, durante a noite, levam embora objetos, como facões, panelas e roupas, que podem estar contaminados e representar risco à saúde deles.
De acordo a organização não-governamental Survival International, a Amazônia brasileira é a área com a maior quantidade de índios isolados do mundo. A Funai afirma que existem ao menos 104 registros de presença de índios isolados no país – 26 grupos já foram localizados, confirmados e são monitorados de longe pela entidade. A aproximação desse grupo é o maior caso de contato já registrado pelo Governo brasileiro desde 1988, quando a política mudou. Foi a segunda vez que a procura partiu dos indígenas. Em janeiro deste ano, três índios awá-guajá que viviam isolados e dentro de uma terra indígena do Maranhão também fizeram contato com outros índios depois de serem cercados por madeireiros. Uma das mulheres ficou gravemente doente por causa da gripe.
Com tantos anos de uma política de não-contato, o Governo brasileiro tem sido criticado por não saber lidar com esses grupos. E isso agrava a situação, pois a tendência é que os contatos continuem a acontecer. Segundo uma pesquisa financiada pelo Centro Pulitzer para a Cobertura Informativa de Crise e publicada na revista norte-americana Science em junho deste ano, as aparições desses grupos isolados têm se multiplicado na fronteira entre Brasil e Peru, devido à livre atuação de madeireiros ilegais, garimpeiros e narcotraficantes.
Em uma audiência convocada pela Comissão de Meio Ambiente do Senado para discutir a situação dos sapanahua logo após o contato, o então coordenador de Proteção e Localização de Índios Isolados da Funai, Leonardo Lênin Santos, afirmou que há relatos de que os índios estão fugindo de situações de conflito na floresta. “Estamos lidando com uma situação emergencial. Ou nós, de fato, fazemos uma intervenção competente, qualificada, ou estaremos repetindo as histórias de contato, onde a mortandade dos grupos indígenas foi muito alta”, desabafou ele na época.
O EL PAÍS enviou em 6 de agosto para Santos, que agora trabalha diretamente na frente que atende os isolados do Acre, e para a assessoria de imprensa da Funai, em Brasília, oito perguntas sobre a situação dos sapanahua e a intervenção feita pelo Governo para atender esse grupo. Mas elas não foram respondidas até a publicação desta reportagem.