Por Patrick Mariano, em Justificando
O Senhor assine aqui, por favor.
Aquelas mãos desgastadas pelos quase 80 anos de vida na lida da roça, cheia de sulcos, cicatrizes, rugas e formada por uma pele grossa tão dura quanto a própria vida que aquele homem havia até então levado. Passei o papel pelo vão das grades que nos separava. As letras rabiscadas lembravam as tortas e inexatas listras daquelas mãos sofridas.
O senhor é de Frutal? Eu morei lá e meu pai foi gerente do banco. Seu Antônio me perguntou o ano em que havia morado na cidade e logo veio a surpresa.
– Conheço o seu pai, foi ele quem abriu a primeira e única conta no banco.
Aquele reencontro inusitado com meu próprio passado, na cela de uma penitenciária de segurança máxima de Brasília me proporcionou um comovente instante de paralisia nostálgica.
De certa forma, a memória oferecia um sentido para a própria existência, pois juntava em um instante aquela criança do interior de Minas com o agora advogado criminalista.
Adquiri, com a inusitada cena, uma vontade imensa para lutar pela liberdade daquele senhor que, por uma dessas inexplicáveis coincidências da vida, se tornava cliente de pai e filho, quase 20 anos depois.
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Seu Antônio foi preso na Câmara dos Deputados no dia 06.06.2006 com base na Lei de Segurança Nacional, após participar de uma manifestação por reforma agrária do Movimento de Libertação dos Sem Terra – MLST.
Foi a maior prisão em massa da democracia brasileira. Ao todo, 615 trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra foram presos, após terem sido barrados pela polícia legislativa o que gerou uma confusão generalizada. Todos foram levados para o ginásio Nilson e Nelson, fichados e enviados à Papuda em dezenas de ônibus.
Todos eram primários, nunca haviam sido processados. Trabalhadores das mais variadas regiões do Brasil que, pela primeira vez em suas honradas vidas, haviam sidos presos.
Conseguimos liberar a maior parte daquela massa e restaram 42 porque seriam as lideranças do protesto, de acordo com a genial interpretação do ministério público e polícia federal. Entre elas, Seu Antônio. Ele possuía um pequeno sítio na região de Frutal e perto de sua propriedade havia um acampamento do movimento ao qual, por solidariedade, se aproximou. Foi convidado para ir a Brasília com os acampados e, já que nunca havia conhecido a capital do seu país, aceitou.
Outro com uma história semelhante era um mestre de capoeira que dava aulas no acampamento e que, convidado para viajar, não pensou duas vezes.
Assim como os dois, todos os 42 “perigosos” cidadãos que colocaram em risco a segurança nacional eram primários e não tinham qualquer envolvimento direto nos atos imputados como criminosos. Mas estavam ali naquela penitenciária, sofrendo os horrores do cárcere brasileiro. Depois de um mês, conseguimos a liberdade para todos eles, mas o processo continua ainda sem sentença definitiva.
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O relatório final da Comissão Nacional da Verdade determinou a revogação da LSN porque não compatível com a Constituição da República de 1988.
Assim como essa Lei, temos outras inúmeras que compõem o chamado entulho autoritário. São leis e decretos da época do regime militar que não sofreram qualquer alteração com a democratização, sendo utilizadas, na ausência de fantasmas do passado contra muitos Antônios, Josés e Marias Brasil afora.
No Rio Grande do Sul, oito trabalhadores sem terra foram acusados com base na LSN. Recentemente, a justiça federal do DF absolveu João Pedro Stédile que fora acusado com base na mesma famigerada Lei.
As leis penais são como serpentes esfomeadas prestes a inocular veneno. Por isso mesmo, é preciso extrema responsabilidade política com a elaboração e manutenção de instrumentos legislativos que aumentam o poder punitivo.
Após a II Guerra, a Alemanha[1] realizou uma reforma legislativa em 1940/45 para retirar aqueles instrumentos legais que permitiram o exercício do poder de forma ilimitada do regime nazista. No entanto, por aqui, continuamos a conviver com esse lixo autoritário que serve para continuar punindo e encarcerando pobres e inimigos políticos.
Recentemente, o Poder Executivo enviou ao Congresso um projeto para tipificar o crime de terrorismo. O texto era muito ruim, completamente desnecessário e permitia a criminalização de movimentos sociais. Depois, até melhorou um pouco nos acordos havidos na Câmara, mas impossível não ficar abismado com tamanha irresponsabilidade política e histórica.
Ao invés de enviar projetos que criminalizarão desnecessariamente condutas já tipificadas, seria a hora de começar a retirar do sistema textos normativos que foram a base do regime ditatorial e que não se coadunam, portanto, com a democracia. A LSN seria um bom começo.
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Seu Antônio voltou de ônibus para a terra que talvez tenha se arrependido em ter deixado. Foram muitas conversas com ele e com seus outros colegas de cárcere. Amizades se formam nos lugares mais inusitados e a advocacia criminal possibilita essa interação porque é movida, sobretudo, pela solidariedade humana.
Esse processo rendeu o maior honorário que já tive na minha carreira como advogado. Os 42 presos pegaram a camiseta do grupo de capoeira do qual era mestre um deles, assinaram com frases e agradecimentos e me deram como lembrança.
Foi me entregue pelo próprio seu Antônio, aquele que numa desesperançosa tarde seca no cerrado me incutiu inexplicável fé para lutar contra o arbítrio estatal ao tocar meu passado. Aquele que ao conhecer a capital do seu país, após 80 anos de duros trabalhos na roça, acabou preso acusado de ser perigoso à segurança nacional sem nunca ter feito outra coisa na vida que pegar a enxada, abrir sulcos na terra, despejar a semente, aguardar pela chuva e esperar que desse flor. Flor e frutos, como diria Milton Nascimento.
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Patrick Mariano é doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no século XXI na Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em direito, estado e Constituição pela Universidade de Brasília e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares-RENAP. Junto a Marcelo Semer, Rubens Casara, Márcio Sotelo Felippe e Giane Ambrósio Álvares, assina a coluna ContraCorrentes, publicada todo sábado no Justificando.