“A emergência e o crescimento dos círculos de cidadania ao longo de 2015 é uma iniciativa, entre outras, que busca uma recomposição para sair do imobilismo, sem recair nas falsas polarizações e sem, no entanto, pretender repetir junho de 2013″, avalia a psicóloga
Por Patricia Fachin – IHU On-Line
Junho de 2013 significou “a perda do medo e a retomada do político pela população”. Contudo, “depois de junho”, restaurou-se o medo, fragmentou-se a mobilização e houve uma divisão ainda maior entre partidos políticos e movimentos sociais, afirma Talita Tibola, psicóloga que vem estudando as manifestações políticas que têm surgido no país nos últimos anos.
Entre as divisões políticas acentuadas pós-junho, a psicóloga destaca a divisão no Partido dos Trabalhadores, a qual tem como finalidade “conservar a unidade” do partido apesar das posições divergentes.
“Contraditoriamente, no momento em que o governo do PT é praticamente um governo de direita, o que é consenso inclusive entre os grupos mais à esquerda, o ‘sentimento de esquerda’ é convocado para defender, no final das contas, o governo. Isso pode funcionar, mobilizando movimentos bem diferentes que, de alguma forma, se veem nesse campo, por tudo o que significa, por uma memória de lutas que foram realmente importantes, que as frentes de esquerda querem organizar. O resultado é mais imobilismo. Porque em vez de práticas, pautas, reinvenção, o que acontece é uma ação baseada na negação de algo, em ser ‘anti-direita’”, pontua.
Talita Tibola frisa ainda que, além da crise de representação dos partidos políticos, há uma crise nos movimentos sociais novos e antigos. “É uma crise de reconhecimento”, menciona. “De um lado, uma crise de visibilidade, os movimentos mais antigos, já atrelados a partidos, não reconhecem os movimentos novos como sujeitos legítimos; mesmo por que esses movimentos podem, algumas vezes, ter fronteiras flexíveis; e, de outro, uma crise de representatividade, porque muitas pessoas que passaram a se envolver mais nos espaços mais políticos e nas lutas não se sentem representadas por aqueles movimentos e organizações mais antigos, inclusive quando eles se colocam como representantes de uma determinada categoria ou conjunto de categorias (por exemplo, a UNE, a CUT)”.
Na avaliação da pesquisadora, as divisões e rachas entre partidos e movimentos é resultado de dois processos: “a repressão que ocorreu antes que se pudesse dar continuidade” às manifestações de junho enquanto formas organizativas, e “a polarização partidária entre forças tradicionais e constituídas, retomada durante as eleições”. Contribui ainda para esse fenômeno, segundo Talita, a falta de “consenso em como continuar o fenômeno de junho de 2013, em dar continuidade a novas formas organizativas”.
Talita Tibola é psicóloga e tradutora. É doutora em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense – UFF e participa do Grupo PesquisarCom e da Universidade Nômade. A pesquisadora participou do ciclo de Ocupas e de movimentos autônomos em Bologna, na Itália. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que subjetividades identifica no terreno afetivo-político, considerando as reações da população depois de junho de 2013, após a reeleição da presidente Dilma e dos rumos da investigação Lava Jato?
Talita Tibola – Quando falamos em junho de 2013, estamos falando de um movimento que envolveu de uma maneira ou de outra toda a população do Brasil. Tratar esse acontecimento como um fato restrito a grupos e sujeitos sociais ou políticos identificáveis já é um dos efeitos do pós-junho, associados à sua desqualificação e criminalização. Faço essa ressalva inicial, pois se junho de 2013 não é sentido como todos implicados, já estamos sob o efeito de uma violenta operação de desmontagem das relações, afetos e estéticas que constituíram aquele tecido político-subjetivo.
Se junho foi a perda do medo e a retomada do político pela população, de um novo “lutar juntos” segundo uma agenda de reivindicações, depois de junho o processo de criminalização restaurou o medo e fragmentou a mobilização.
A fragmentação se deu de maneira complexa e por diversos fatores, tanto a repressão direta — que além de ser violenta com corpos e pessoas, funcionou propagando o medo — quanto a criminalização e produção de inquéritos. Mas, além disso, houve a constituição de um consenso que foi tornando a criminalização e as prisões toleráveis. Esse consenso foi produzido pela mídia, desde a separação entre manifestantes pacíficos e vândalos, até a total separação do âmbito da manifestação e da “sociedade”, mas foi constituído também pelos partidos a partir do momento em que esses chamam as manifestações de fascistas.
O resultado disso foi o prevalecimento de um consenso “anti-junho”, com a dissolução dos afetos que sustentavam a ação política produtiva. Entendo “consenso”, aqui, não como convergência de opiniões, mas como um regime do dizível e do sensível, novas formas de perceber e representar, no sentido do conceito do filósofo Jacques Rancière. Esse consenso foi um “legado” que depois foi reutilizado nas eleições e, a seguir, para desqualificar os protestos em 2015.
Manifestações de 2015
Em 2015, a indignação continua forte e pautas semelhantes a junho reapareceram, embora organizada por grupos diferentes, com características diferentes na rua e o principal slogan seja a luta contra a corrupção, com foco no escândalo da Lava Jato. O cenário é de crise levando grandes números novamente às ruas. No entanto, existe uma concretude na questão da corrupção, relacionada com o que os governantes fazem com o dinheiro público, os investimentos, os gastos do governo.
Depois de junho e principalmente da reeleição, se mantém uma polarização macropolítica entre partidos ou entre figuras abstratas de “direita” e “esquerda”, o que acaba esvaziando a discussão sobre a corrupção, mas não o sentimento da população diante da retirada de direitos e da percepção de que a “classe política” não serve.
Falando das lutas na Espanha, Paul Preciado, no texto Espanha: é uma onda de levantes que começa, recorda que, num primeiro momento, o sentimento anticorrupção era sempre moral, num desencanto totalmente negativo em relação aos governos (“são todos corruptos, que se danem”); entretanto, ele explica que, a partir do 15M até chegar à formação do Podemos e das plataformas cidadãs nas eleições municipais, ocorre uma qualificação da questão da corrupção, no momento em que as pessoas se apropriam da política e começam a discutir alternativas. Por isso eu vejo como junho de 2013 pode qualificar as lutas de 2015.
IHU On-Line – Quais são, na sua avaliação, as razões dos “rachas” entre os partidos, mas também entre os coletivos e movimentos sociais antigos e novos? O que está gerando essas divisões?
Talita Tibola – Já em junho houve uma divisão interna, principalmente entre os partidos mais à esquerda. Pois, se era esperado que aqueles mais à direita se colocassem contra as manifestações, ou contra determinadas pautas, o fato é que dentro do PT houve acusações de que os protestos tinham um lado fascista e isso significou uma crise nova, porque vai contra a história de constituição do partido enquanto um partido ligado a movimentos de rua, reivindicações e movimentos sociais. Então, uma primeira divisão está entre quem reconhece em junho uma oportunidade de reinvenção política e quem o viu como ameaça. Seja uma ameaça ao governo, aos partidos, ao sistema político. Pois, de fato, os índices de popularidade dos políticos em geral caíram muito, o que provocou essa tendência reativa também à esquerda.
Nesse sentido, também o que se passa quando pensamos em movimentos sociais antigos e novos é uma crise de reconhecimento. De um lado, uma crise de visibilidade, os movimentos mais antigos, já atrelados a partidos, não reconhecem os movimentos novos como sujeitos legítimos; mesmo por que esses movimentos podem, algumas vezes, ter fronteiras flexíveis; e, de outro, uma crise de representatividade, porque muitas pessoas que passaram a se envolver mais nos espaços mais políticos e nas lutas não se sentem representadas por aqueles movimentos e organizações mais antigos, inclusive quando eles se colocam como representantes de uma determinada categoria ou conjunto de categorias (por exemplo, a UNE, a CUT).
Apesar dessas tensões, foi possível que alguns desses movimentos estivessem juntos em junho constituindo um movimento incategorizável — com e sem partido, pessoas ligadas ou não a movimentos que fizeram de junho o seu movimento — que, no entanto, não teve tempo de constituir novas institucionalidades e formas organizativas.
Divisões
As divisões e rachas que têm acontecido nesse momento me parecem resultado, primeiramente, da 1) repressão que ocorreu antes que se pudesse dar continuidade a essas formas organizativas e que realizou uma divisão entre quem era manifestante e quem não era (classificar para reprimir), que foram de certo modo reproduzidas pelos próprios manifestantes, seja como autodefesa diante do vigilantismo real (o inimigo que era externo passou a ser interno), seja como construção de uma identidade militante de junho.
Isso acabou preparando o terreno para 2) as eleições, que restaurou o processo político nos termos anteriores a junho, trazendo consigo suas polarizações partidárias e entre forças já tradicionais e constituídas.
Ambos agem num retorno dos lugares fixos e das identidades como fator de mediação transcendente das relações. Elas são problemáticas porque em muitos casos estão acontecendo sem que haja uma divergência política ou de práticas como fundo, mas sim como efeito de uma polarização “desde cima”, desde a macropolítica.
Contribuiu também o fator de que não há nenhum consenso em como continuar o fenômeno de junho de 2013, em dar continuidade a novas formas organizativas. Não que se deva reinventar a roda, recomeçando do zero, mas reconhecer o novo terreno que já está aberto desde junho, como disse Lu Ornellas num debate: precisamos de ouvidos novos para uma música nova. Junho tinha essa diversidade grande nas ruas, não se constituiu exatamente por uma pauta comum, ou por ideologias, mas pela capacidade de abrir-se e espalhar-se horizontalmente, sem um centro.
Saída do imobilismo
Uma iniciativa, entre outras, que busca uma recomposição para sair do imobilismo, sem recair nas falsas polarizações e sem, no entanto, pretender repetir junho, é a emergência e o crescimento dos círculos de cidadania ao longo de 2015. Os círculos existem hoje no Rio de Janeiro e em algumas outras cidades, como Porto Alegre, Salvador e São Paulo. No Rio, com métodos diferentes, eles se organizaram em formatos distintos, que se relacionam entre si: territorial, como o Círculo do Bairro de Fátima; temático, como o Círculo Laranja, cujos protagonistas são os trabalhadores da limpeza urbana, ou o Branco, que reúne pessoas ligadas à questão da saúde; e “confluência”, tal como a plataforma “Cidade que Queremos”, voltada a construir um programa municipal de lutas, sujeitos e pautas.
O projeto dos círculos não nasceu para serem espaços independentes entre si, como se fosse cada um no seu círculo, mas interdependentes e autônomos, de maneira que as pessoas possam circular entre eles, em função de sua experiência vivencial, e participar sem colocar um peso grande na lógica de filiação, pertencimento, ideologia. Assim cada um pode ter a liberdade de construir seus círculos e alastrar essa rede. Então nem tudo são rachas e autofagias, existem também recomposições.
IHU On-Line – Especificamente no caso do PT, há uma divisão entre aqueles que defendem uma frente de esquerda que inclui o modelo governista e aqueles que defendem uma frente que se opõe. Como avalia esse tipo de racha dentro do partido, depois de tantos anos garantindo maior unidade em torno de um objetivo comum?
Talita Tibola – Para começar a responder a esta questão, procuro me perguntar: quais são os caminhos propostos pelas duas frentes e em que medida elas se contrapõem entre si e em relação ao governo, traçando linhas de ação e medidas concretas diferentes? Quais efeitos transformadores essas frentes provocam, ou não, na realidade política brasileira?
A formação de várias frentes não é, por si própria, um racha no PT, ao contrário, o principal efeito é conservar a sua unidade. Se há divergências internas de método, as frentes em formação coincidem em ter o PT, ou movimentos ligados ao PT, como pilar. Outro ponto convergente está na conservação da unidade afetiva por meio de um “sentimento de esquerda” ou “progressista”. Isto atua formando uma identidade que participa dos cálculos eleitorais, ainda mais se levarmos em conta o que aconteceu em outubro de 2014, quando houve um empuxo grande de a identidade de esquerda ser associada à candidata do PT.
Ambas as frentes de esquerda em formação, tanto a frente mais governista como aquela que se coloca como opositora ao governo, existem para além do partido, buscando alianças com outros partidos e também buscando uma religação político-afetiva com a população. No caso da frente mais oposicionista, é mais baseada no “sentimento de esquerda”, uma chamada para contrariar o “avanço conservador” em defesa de pautas tradicionais desse espectro: direitos LGBT, aborto, racismo, direitos humanos. Algumas dessas pautas, no entanto, estão sendo ameaçadas desde antes das eleições, é por isso que se colocam como oposição, apesar de imputarem ao conservadorismo a causa maior.
No caso da frente de esquerda governista, além do “avanço conservador”, o problema é o “golpismo” contra o governo Dilma que viria de setores classificados de golpistas e elitistas. A convocação passa a ser não somente para preservar as conquistas sociais, mas para defender a democracia e o estado de direito. A tática aberta, neste caso, é desviar a atenção da responsabilidade do próprio governo na condução política do país nessa direção até chegar onde estamos.
No entanto, a sociedade nunca deixou de estar mobilizada pelos seus direitos; a greve dos garis, que foi um sucesso em junho com grande apoio da população, repetiu-se no ano seguinte ocasionando demissões, trabalhadores da saúde mobilizam-se por melhores condições e contra o desmantelamento da rede de saúde, mobilizações contra a corrupção, greves nas universidades federais, mobilizações contra a militarização nas favelas, mobilizações pelos direitos das mulheres, pela diversidade sexual, pelos direitos LGBT com diversos formatos, métodos e formas de encontro.
O papel dessas frentes que são o governo seria ouvir as mobilizações que já existem. É por esse motivo que o “sentimento de esquerda”, e ele não está só no PT ou no governo, quando se esquece das ações, pode tornar-se imobilizador, pois o que não se encaixar ali não será considerado uma forma de mobilização válida. Mas nem sempre é reconhecido como “esquerda” o que as pessoas veem como perda de direitos, o sofrimento no trabalho, o desemprego, a diminuição da aposentadoria, a terceirização.
Sentimento de esquerda
Contraditoriamente, no momento em que o governo do PT é praticamente um governo de direita, o que é consenso inclusive entre os grupos mais à esquerda, o “sentimento de esquerda” é convocado para defender, no final das contas, o governo. Isso pode funcionar, mobilizando movimentos bem diferentes que, de alguma forma, se veem nesse campo, por tudo o que significa, por uma memória de lutas que foram realmente importantes, que as frentes de esquerda querem organizar. O resultado é mais imobilismo. Porque em vez de práticas, pautas, reinvenção, o que acontece é uma ação baseada na negação de algo, em ser “anti-direita”.
É verdade que existe um discurso especular, “anti-esquerda”, que aparece em alguns colunistas famosos da mídia corporativa, ou mesmo nas ruas. Ocorre que isto não tira a concretude da indignação da população quando vê o governo que convoca o “sentimento de esquerda” à frente de um ajuste fiscal contra os trabalhadores, redução do salário real e, também, do nominal inclusive justificada pela CUT, gestão e repressão militarizada dos territórios de favelas e comunidades, sem falar nas revelações da operação Lava Jato. Se ao falar “é preciso combater o governo à esquerda” isso não produz sentido nenhum para as pessoas. Se o que se considera como esquerda historicamente não coincide com o que a população em geral atribui como características da esquerda, temos a opção de sair às ruas e dar aula e dizer que elas estão enganadas, ou procurar entender o que se passa e por que essas versões estão tão diferentes.
IHU On-Line – Aqueles que defendem o PT chamam a atenção para uma “descriminalização” do partido. Por outro lado, aqueles que são contrários e críticos ao partido fazem objeções ao discurso petista de que há um “avanço do conservadorismo”. Declarações desse tipo são justificadas?
Talita Tibola – Faz sentido afirmar que ninguém deve ser considerado culpado sem o devido julgamento, como se afirma no Manifesto Brasil lançado em 1º de julho de 2015. Essa lógica da lei deveria valer para todos e não só quando se trata de políticos do partido, mas também para pessoas que cotidianamente são expostas à desigualdade da lei, quando a lei esbarra com questões de raça, classe, gênero. É nesse contexto que a palavra “justiceiro”, também usada no manifesto, espalhou-se no Brasil. Quando moradores da zona sul do Rio de Janeiro amarraram num poste um homem negro, o deixaram nu e o torturaram e a vítima foi chamada de suposto ladrão, demonstrando de que maneira alguém se torna suspeito pelo simples fato de ser negro e pobre e andar na rua. Usar a palavra “justiceiro” mobiliza afetivamente as pessoas, mas é usada no manifesto de uma maneira estrondosamente assimétrica, pois remete à desigualdade que milhões de pessoas vivem cotidianamente perante a lei como um argumento para defender a classe política.
Não é tampouco justificável defender-se pelo fato de que os outros sejam corruptos. E, no momento em que se recorre à lei para fazer a própria defesa e, ao mesmo tempo, chamam-se aqueles que a aplicam de corruptos, cria-se um impasse. A “descriminalização” do partido, no sentido de não ter custos políticos, é o menos importante; o custo maior que o partido vai pagar quem vai decidir não é um juiz, mas a população como um todo, porque é um custo político. Se algum dia o Partido dos Trabalhadores existiu e se constituiu — da mesma forma que falei que Junho não está separado da população na tomada da cidade — foi por causa dos trabalhadores. E, da mesma maneira, se o PT perde a sua legitimidade entre eles e precisa quase chantagear as pessoas para que vão às ruas para defendê-lo, sob risco de algo pior, é sinal de que perdeu suas bases, que deixou de relacionar-se com elas, perdeu suas bases porque deixou de relacionar-se com os trabalhadores.
Nesse sentido, existe sim um avanço de pautas conservadoras no Congresso, mas isso não é muito diferente do governo anterior, onde o PT estava em harmonia com o PMDB. Criar mais essa falsa polarização é procurar mais uma vez incutir o medo, afirmando, além disso, que existe uma parte da sociedade que é conservadora e que deveríamos temer.
IHU On-Line – Ao mesmo tempo, dos dois lados se escuta o uso do termo “fascismo social”. Como avalia o uso desse tipo de termo para se referir ao oponente, do mesmo modo como ocorreu nas eleições, por exemplo, em que os candidatos optavam por desqualificar uns aos outros?
Talita Tibola – Falar em “fascismo social” faz sentido se pensarmos uma estrutura de exploração e dominação que reproduz violências de classe, raciais, patriarcais, nas prisões, na família, nas relações de trabalho, na violência das polícias e milícias. Por exemplo, pensar que os autos de resistência que se intensificaram na ditadura permanecem até hoje como prática que legaliza o assassinato.
Entretanto, o modo como tem sido usada a expressão no debate político brasileiro atual é outro e se refere à atribuição do fascismo a um caldo social amplo e difuso, como categoria de acusação do outro. Nesse contexto, o problema de falar em “fascismo social” é que a própria expressão não deixa escapatória, fecha a questão e acaba sendo paralisante. Então não seria exato falar em “fascismo social”, se com isso quisermos dizer que existe um grande sujeito fascista, a “Sociedade”, ou que a maioria dos brasileiros pudesse ser classificada como fascista. Aconteceu na eleição com as campanhas negativas que, em vez de propostas, buscavam apenas destruir a reputação do adversário. Depois da eleição, o mesmo processo de atribuir ao outro lado as piores qualidades possíveis continuou, o que se espalhou também entre movimentos, coletivos e indivíduos.
Nesse sentido, os discursos que têm apelado ao “fascismo social” no Brasil fabricam uma figura extrema cuja função é demonizar o outro lado de maneira categórica, deixando em segundo plano essas relações de poder, muito mais complexas e próximas do que um binarismo entre fascistas e não fascistas.
IHU On-Line – Como essas disputas, divisões e acusações entre partidos e movimentos, que se dão no âmbito político, irradiam para o restante da sociedade? Ainda nesse sentido, quais são os impactos desse tipo de discussão para a formação política brasileira?
Talita Tibola – Podemos pegar como exemplo o que aconteceu no debate do projeto da redução da maioridade penal, recentemente aprovado em primeiro turno na Câmara dos Deputados para alguns crimes. Nesse momento, o termo “fascismo social” foi usado por quem se posicionou contra o projeto com o argumento de que se tratava de uma mobilização fascista por maior punição contra a juventude. As pesquisas demonstravam que cerca de 90% da população era favorável à redução. Isso significava chamar a grande maioria da população brasileira de fascista ou então de manipulada, o que reforça bastante a construção afetiva das frentes de esquerda, porque reforça a ideia de que a esquerda está cercada por um caldo fascistizante.
É curioso como esse discurso supostamente “de esquerda” fortalece uma cultura do medo bastante semelhante àquela que está presente entre as elites tradicionais e demofóbicas do país, quando vive uma sensação de insegurança ao redor da ideia de cerco social. Se a campanha realizada pela mídia surtiu efeitos numa elite conservadora e que criminaliza a pobreza, por outro lado, talvez funcione no restante da sociedade pelo fato de que a violência na cidade se faz sentir de maneira real, ao ter de viver fora da bolha, muitas vezes sem saneamento básico, em bairros violentos, sem acesso a serviços públicos de boa qualidade. Portanto é muito mais uma questão de democracia real do que se defender de “massas fascistas”.
IHU On-Line – Quais são os principais resultados da sua pesquisa sobre a relação entre política de movimento e psicologia social?
Talita Tibola – Em minha pesquisa, chego até os movimentos por meio de uma investigação que, na sua origem, abordava o “viver juntos”: modos de ocupar, habitar a cidade, constituir territórios de relações, existenciais, político-estéticos. Em suma, tinha por intuito abordar o político em situações que não eram, necessariamente, consideradas como tal pela teoria tradicional da modernidade, baseada em sujeitos mais ou menos bem demarcados. Com a emergência dos movimentos ligados ao Movimento 15 de Maio (os “Indignados”) — no Rio de Janeiro, ocorreu a acampada da OcupaRio em outubro e novembro de 2011, na Praça da Cinelândia — aquele acontecimento se impôs à pesquisa.
No ano seguinte, pesquisei diretamente a Ocupa dos Povos, que foi um acampamento na praça, em junho de 2012, retomando métodos e questões da OcupaRio (2011). O objetivo imediato era questionar a conferência da Rio+20, se contrapondo também à Cúpula dos Povos. A Ocupa dos Povos reunia uma diversidade de atores: ativistas do Occupy no Brasil e mundial, estudantes, sem-teto, punks, anarcopunks, anonymous, movimento anticorrupção, artistas de rua, militantes de esquerda, ecoativistas, com engajamentos diversos naquele espaço, mas uma questão era consenso, cada um ali era Ninguém. Esse Ninguém, como no texto de Peter Pál Pelbart, pode ser pensado como um conjunto não enumerável que é mais do que as particularidades.
Da participação Ocupa dos Povos surgiram três eixos temáticos a partir das relações estabelecidas (dos cartazes, produções, ações, mídias): em trânsito — pelas ocupações e marchas, e também tensões com o trânsito; em obras — pelos questionamentos das obras do governo e pelo político ser visto como um “em obra”; em transtorno — pelo político se dar através da produção de dissenso que não é apenas “ser contra”, mas a abertura de um novo regime de sensível como Jacques Rancière fala em seu livro A partilha do sensível. Ao eclodir os protestos de junho de 2013, esses eixos tomaram uma escala muito maior e se qualificaram. Junho constituiu-se como algo que toma a cidade de maneira muito ampla, no entanto manteve relações com questões oriundas das praças ocupadas, da OcupaRio, da Ocupa dos Povos e outras ocupas brasileiras e além. Foi uma construção que não se dava pela via partidária, nem pelo “terceiro setor”.
Ancorei a pesquisa em autores ligados aos Estudos de subjetividade, assim como em autores da Teoria ator-rede, para a qual o “social é verbo”, conforme Marcia Moraes e Ronald Arendt, o que quer dizer que ele é performado de maneira indissociável das práticas. Desse modo, vejo uma relação de qualificação mútua por encontrar nesses movimentos, do Occupy a Junho, em suas particularidades, processos coletivos que não se organizam ou se guiam por ideias ou estruturas prévias, mas por uma experimentação permanente de reordenamento, composição de novas disposições, uma política “em obras”. Este foi o caráter do movimento de junho: heterogêneo, com fronteiras moventes e flexíveis. Eu fui pesquisadora, fui ativista e fui Ninguém e por isso pude me relacionar com todas as pessoas ali em pé de igualdade.
–
Foto: annoticias.com.br