Por Tarso Genro, em Sul21
A manifestação foi em Colúmbia, na Carolina do Norte, dia 18 deste mês. Num sábado sob um sol abrasador, um homem da “Ku-klux-klan”, que vestia uma camiseta com o símbolo do nazismo, começa a passar a mal. Estavam em movimento grupos contrários e favoráveis à manutenção da bandeira Confederada no Capitólio local. A bandeira identificava o Exército do Sul, escravista e conservador, na Guerra Civil Americana, que definiu o fim regime escravocrata (1861-1865) e abriu feridas na jovem nação americana.
Tornou-se “viral” na rede a foto do policial negro, Leroy Smith, ajudando um combalido manifestante, que passava mal quando defendia (como é “programático” para a Klan) a superioridade da “raça” branca e a manutenção da bandeira exibida naquele espaço público. Aquele homem branco, integrante de uma organização violenta, responsável por atrocidades brutais contra a comunidade negra, de repente participa de um evento que pode ser o símbolo de uma época. Ele, branco, junto com o policial negro, Leroy, representavam, ao mesmo tempo, o fracasso da presumida superioridade da “raça branca” e o significado da Democracia e do Estado de Direito.
Não é novidade que qualquer Estado, no seu tecido jurídico e institucional, esconde dominações e privilégios. Organiza formas de dominação e controle social e traduz, nas suas instituições, hierarquias de Poder e força, que se originam de vínculos que estão lá no domínio da economia e da tradição: mais além da Lei e do Direito, portanto. Mas também não é novo, que as relações entre as pessoas e os grupos de interesse na sociedade, podem se dar com maior ou menor liberdade. E que a capacidade de resistência dos que defendem a dignidade humana depende muito da taxa de liberdade disponível, para os que não são privilegiados no regime econômico.
A hipótese da liberdade está inscrita no Estado de Direito Democrático. Este, por ser dotado de um sistema, com um mínimo de previsibilidade no comportamento dos agentes públicos e por ser baseado em garantias formais, possibilita episódios singulares como este: um nazista, originário de uma tradição de autoria assassina, e o policial negro, vitimizado pela tradição secular da escravidão, encontram-se na cena pública como ícones de um tempo sem luz. O negro com a generosidade que nos resta e o branco com o ódio que nos consome.
O que estaria pensando o oficial Leroy Jones, naquele momento? O que passava pela cabeça do nazista, fragilizado pelo sol inclemente, que cai sobre todas as “raças”? É impossível saber exatamente. Mas é possível imaginar, a partir deste fato inédito sob o sol de Colúmbia, uma fatia da humanidade ajustando as contas consigo mesma, nos dois homens que se encontram num momento singular da história com o peso das gerações mortas que lhes precederam.
Leroy deve ter pensado nos seus ascendentes sendo chicoteados nas plantações de algodão? Nas mulheres negras violadas? Nas crianças escravas sofrendo a miséria, tratadas como não se trata hoje nem os animais? Ou deve ter pensado, quem sabe, no legado da sabedoria materna, acumulada pela tragédia da raça negra nos imensos campos do Sul? Ou pensou nas notas de lamento da música do Jazz, que “sobe e desce o Mississippi”? É provável que tenha pensado nas noites estreladas e nos cantos melancólicos de escravos, fugindo da “superioridade” da raça branca!
Não posso imaginar, porém, o que pensou o homem da Klan, quando foi tocado pela mão solidária da “raça inferior”. A mão que lhe conduzia, mais do que em direção a uma sombra real, para protegê-lo do calor sufocante, levava-o para o abrigo simbólico de uma luz, que a Lei não explica: a radicalidade do ato humano solidário com o sofrimento, que supera ódios de classe e ódios raciais. Se o Estado de Direito não servisse para nada, pelo menos serviria para levar para clandestinidade a indiferença perante a dor alheia.
A esperança é que aquele nazista tivesse um momento de lucidez e pensasse, mais além da pulsação do seu coração doentio: “o que me fez assim?” e “quem me fez assim?” E então olhasse para o policial Leroy , reconhecendo que todos somos irmãos na infinita jornada da vida, onde a dor e a morte se sucedem com a certeza da sucessão das estações. Sucedem-se numa vida, onde a grandeza do ser humano não está na sua pele nem na sua classe, mas no que ele, ser humano, pode aportar de energia contra a violência e o medo, nesta vida em que tudo pode prosperar. É certamente o que não pensam os covardes que agridem sem propósitos, nos espaços públicos ou nos restaurantes, os adversários políticos, como está em moda na patologia fascista nacional, estimulada pela “grande mídia”.
Langston Hughes, nascido em 1902, foi um dos grandes poetas americanos do Século que findou. Foi marinheiro,cozinheiro de cabaré em Montmatre e se formou, mais tarde, na “Lincoln University”, passando então a viver da sua pena, como grande poeta traduzido para diversas línguas. Faleceu cedo para os padrões atuais, mas construiu umas das grandes obras poéticas da literatura americana de todos os tempos. É seu este poema “Ku Klux”: “Eles me arrastaram para fora, / para um lugar solitário. / E perguntaram: ‘acredita / na grandeza da raça branca?’ / Eu respondi: ‘Senhores, / para dizer a verdade / acreditarei no que quiserem / conquanto me deixem ir embora’. / O homem branco então disse: ‘Rapaz / quem me garante / que você não fique por aí / à espera, pra me assassinar?’ / Então me deram uma pancada na cabeça / e me derrubaram atordoado, / e me encheram de pontapés, / no chão. / E o valentão gritou: ‘Negro, / olhe para mim, negro, / e jure que você acredita / na grandeza da raça branca’.”
Não sei se o policial Leroy Jones conhece este poema de Hughes. Talvez não. Mas sem dúvida, no momento em que a sua mão negra tocou na pele branca do nazista ele, Leroy, era Langston Hughes e a maioria de nós. E o racista branco, anônimo, poderia ter pensado algo da sua infinita desumanidade e, quem sabe, chegando em casa, olhasse nos olhos dos seus filhos, se os tiver, e dissesse, não que um negro lhe tocou e lhe protegeu, mas falasse como Martin Luther King: eu também passo a “ter um sonho”! Para quando acordar, não mais olhar a pele das pessoas, mas espelhar-se nos atos de grandeza humana de que todos somos capazes
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Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.