Em Taqui Pra Ti
– Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o Vosso Nome, venha a nós o Vosso que diabo é isso…
Era assim que índios Tukano de uma comunidade do Rio Negro rezavam em sua língua materna, quando o padre Casimiro Béksta lá chegou na década de 50. Intrigado, ele investigou e descobriu que a oração havia sido traduzida no início do séc. XX por um missionário italiano que não falava tukano, ajudado por um índio que não falava bem português. Num processo bastante simplório, o italiano ia perguntando em português e anotando palavra por palavra em tukano:
– Como vocês dizem “pai”, “céu”, “nome”, “terra”, “dia”?
Até que indagou:
– E “reino”?
Sem saber se “reino” se comia com farinha, a resposta do informante tukano, que agradaria a Pierre Clastres, foi equivalente a algo assim como:
– Que diabo é isso?
O italiano não duvidou, inseriu esta locução na versão tukano do Pai Nosso achando que significava “reino” e voltou para a Itália. Mas os índios, que ficaram décadas sem missionário, não esqueceram aquela oração sem nexo até a chegada do padre Casimiro, que identificou o equívoco quando se tornou fluente em tukano.
Essas e outras histórias deliciosas sobre diferença de língua e cultura e sobre a alteridade nunca mais serão contadas por Casimiro Beksta (1923-2015), que faleceu nesta terça-feira, num hospital de Manaus, aos 92 anos. Algumas, porém, ficaram registradas em artigos e cartas, duas das quais enviadas a mim, guardadas como preciosidades, onde discute a história do nheengatu e a tradução, que não se limita ao aspecto formal e sistêmico da língua, mas abarca também outros elementos culturais.
Língua suja
No relato sobre as “Experiências de um pesquisador entre os Tukano” (Revista de Antropologia, USP, 1968) Casimiro defende que na coleta das narrativas míticas não se deve usar intérpretes, porque “a tradução nunca será completa e o intérprete poderá até mesmo adaptar a narração ao gosto do branco”. Recomenda: “a condição indispensável é que o pesquisador conheça a língua”.
Ele aprendeu a língua com seus alunos. Um deles foi Gabriel Gentil. O outro Álvaro Tukano, “o mais brilhante de todos”, lhe ensinou que “as palavras sagradas usadas nas cerimônias tem sentido diferente da linguagem cotidiana, portanto é necessário saber o significado próprio de cada expressão”, o que implica conhecer os meandros da língua e saber interpretar sentidos no seu contexto de uso. Não foi difícil entender os índios, para quem vivenciara experiência similar em sua terra natal.
Nascido na Lituânia, Casimiro falava lietuvių kalba ou lituano, uma língua báltica minoritária que estava em contato com outras de maior prestígio como o polonês, o russo e o ucraniano. Sofreu muito com a discriminação de sua língua materna considerada suja, moribunda, sem futuro, pobre e atrasada. O preconceito se estendia às narrativas, canções e contos populares da mitologia lituana que circulavam na tradição oral e que ele ouvia, encantado, na sua infância. Nesse sentido, Casimiro Béksta era um índio do Mar Báltico.
Por isso, foi amor à primeira vista quando chegou ao Rio Negro (AM) em 1951. Sua história estava lá, na identificação com os índios da região que falam 23 línguas e nelas narram seus mitos. Fugiu da Lituânia, anexada pela União Soviética em 1940, passou pela Alemanha e desembarcou no Amazonas, enviado pela Congregação Salesiana. Mas a diversidade linguística e cultural que o deslumbrava, incomodava sua Congregação que criou internatos, onde as crianças indígenas eram castigadas fisicamente e obrigadas a lavar a boca se falassem a língua materna.
A “paudagogia”
Esse índio do mar Báltico sofria na própria pele o tratamento dado pela escola salesiana, ainda mais porque fazia parte da Congregação que impunha o português a ferro e fogo, reprimia os idiomas maternos e buscava apagá-los do mapa linguístico. Talvez por isso ele buscou refúgio no CIMI – Conselho Indigenista Missionário, órgão da CNBB, que fazia críticas contundentes à “paudagogia” praticada nos internatos. Foi lá que eu o conheci, quando editávamos em Manaus, em 1978, o Porantim, “um jornal em defesa da causa indígena”, com o teólogo Paulo Süss, secretário do CIMI, e os seminaristas Renato Athias e Ademir Ramos.
Casimiro me ajudou a escrever para este jornal do CIMI uma matéria sobre a epidemia de suicídios entre os índios do Rio Negro, que tinham em comum o fato de serem todos alunos ou ex-alunos dos internatos ou de algumas das 117 escolas mantidas pela Prelazia em área indígena. Eram mais de 7.000 crianças e jovens humilhados e emudecidos em suas respectivas línguas. Uma delas, Ana dos Santos, 15 anos, aluna da 7ª série da escola de Santa Isabel disparou um tiro de espingarda na barriga.
– O suicídio é prática desconhecida entre as culturas do Rio Negro. Tanto é que não existe tradução para a palavra “suicídio” nas línguas indígenas – nos informou Casimiro.
Combinei esta informação com o artigo “Langage et Pathologie Sociale” do antropólogo belga Marcel D´Ans, que eu acabara de ler, no qual usa a categoria ‘souffrance’ para explicar que o desespero provocado pelas tensões e conflitos linguísticos criados, neste caso, pela escola “pode chegar, nos casos mais graves, ao suicídio”. Escrevi, então, o artigo panfletário “Como matar índio com giz e apagador”, questionando o internato salesiano. Publiquei no Porantim com o nome do meu finado pai, J. Barbosa, preservando a mim e ao Casimiro.
Os mitos
Suspeito que os superiores da Congregação desconfiavam da relação de Casimiro com o tal J. Barbosa, autor de outros artigos provocadores, que faziam referência aos mitos tukano pelos quais Casimiro se apaixonara, dando dicas valiosas para sua coleta.
Num curso de Antropologia Amazônica ministrado em 1978 por Carmen Junqueira, Beto Ricardo e Rubem César na Universidade do Amazonas, Casimiro contou que presenciara uma criança ser mordida por cobra numa comunidade do alto Uaupés. Era preciso transportá-la para um hospital em São Gabriel da Cachoeira, distante três dias por via fluvial, percorrendo trechos encachoeirados de difícil navegabilidade, onde ocorriam sempre naufrágios e mortes. Um barco de pequeno porte estava disponível, mas não havia quem o pilotasse, os índios especialistas estavam ausentes.
– Eu levo o barco – se ofereceu um jovem tukano.
– Você já fez essa viagem? – perguntou Casimiro.
– Eu nunca, mas meus primeiros ancestrais fizeram este trajeto na cobra-canoa e eu conheço os wametisé – os lugares por onde a cobra-grande passou, meu avô me contou a história das casas de transformação.
A narrativa mítica registra, efetivamente, as referências geográficas, as marcas e os sinais nas pedras, nas praias, nas serras, nas ilhas e acabou sendo usada pelo jovem como um mapa de navegação. Orientado pelo mito, o jovem tukano passou por todas as cachoeiras e guiou o barco com a criança enferma até São Gabriel. Recentemente, a Foirn, o ISA e uma equipe de filmagem do Video nas Aldeias mapearam esses lugares sagrados para fortalecer os conhecimentos tradicionais sobre o território e contribuir para sua proteção e seu manejo adequado.
Casimiro nos deixou as narrativas que registrou, as línguas que estudou, os documentos que produziu e uma admiração incondicional pelos índios. Daqui do Diário do Amazonas o nosso adeus saudoso ao índio do mar Báltico, esperando que a carta de navegação da cobra-canoa lhe seja útil nessa última viagem até Heripõrã duhiriwii, “a casa onde senta coração, alma”.
P.S. – Da correspondência irregular que mantive com Casimiro, conservo duas cartas que me enviou em 2004, onde fala de seu trabalho, de seus projetos, de suas dúvidas, de suas leituras e discute, entre outras questões, a de autoria indígena.
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[As cartas podem podem ser lidas na publicação original, AQUI. TP.]
Destaque: Desenho do Pajé tukano Gabriel Gentil