Novo livro sobre massacre de sem-terras em Rondônia revela: nos rincões, impunidade do latifúndio permanece; Brasília não faz valer Lei de Informação
Por João Peres | Foto: Gerardo Lazzari – Outras Palavras
Quando a corda arrebentou, o governador fez o que faria qualquer figura pública que se preze: mandou o vice ao local dos fatos e continuou em seu gabinete. Havia doze mortes confirmadas e um sem-número de informações desencontradas, mas Valdir Raupp considerou fora de cogitação deslocar-se até o Cone Sul de Rondônia, talvez por imaginar que a visita causaria danos a sua imagem. Coube a Aparício de Carvalho, psiquiatra no papel de vice, lidar com a imprensa, os políticos, os representantes de movimentos sociais e uma população em estado de choque.
O episódio era o pior da história de Rondônia. Elevada de território a estado no começo da década de 1980, aquela unidade da federação estava acostumada a conflitos agrários, mas não na proporção daquele episódio, que ficaria conhecido como “massacre de Corumbiara”. O caso era inédito também para o Brasil pós-ditadura. Na metade de julho de 1995, famílias sem-terra entraram na fazenda Santa Elina, uma entre muitas terras de alta fertilidade dadas pela União a empresários de todo tipo durante o regime autoritário. Hélio Pereira de Morais, pecuarista de São Paulo, comprara a propriedade pouco antes de Ovídio Miranda de Brito, o rei do gado.
Depois de muitas tensões e pressões, a PM realizou, entre a madrugada e a manhã de 9 de agosto, a operação de reintegração de posse. Ocorreu, primeiro, um conflito e, em seguida, uma chacina, com a morte de nove posseiros, dois policiais e um rapaz não identificado. Grupos dos ocupantes manteriam durante as décadas seguintes a visão de que muito mais pessoas perderam a vida no local, informação que nunca pôde ser nem desmentida, nem confirmada.
Sem ter visitado a Santa Elina, Raupp lançou mão de uma das respostas-padrão mais comuns da futura Escola Geraldo Alckmin de Justificativas: presumiu a inocência dos policiais e disse que entre os sem-terra havia “atiradores de elite”. Era a mesma tese defendida no relatório que recebera no mesmo dia 10 de agosto, elaborado pelo Comando Geral da Polícia Militar: duas páginas, com 70% do espaço ocupado pela descrição de tudo o que teria sido apreendido em poder dos posseiros – armas, foices, machadinhos e pás. No único parágrafo em que descreve os fatos, o texto diz que os agentes públicos foram vítimas de emboscada, numa operação que durou aproximadamente duas horas e meia.
No mesmo dia, no outro extremo do estado, Luiz Inácio Lula da Silva, mais tarde presidente, visitava o acampamento na fazenda em companhia do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, mais tarde deputado federal. Durante entrevista em Vilhena, cobrou a presença de Raupp, de quem seu partido era aliado. “O que o PT quer fazer nesse instante, antes de reavaliar a participação no governo, é exigir que o governo possa apurar toda a verdade sobre a chacina acontecida aqui em Rondônia.”
Mas Raupp já havia riscado Corumbiara de seu mapa. Desde então, evita chegar perto da cidade amaldiçoada, localizada no extremo sul do estado, próxima da fronteira fluvial com a Bolívia pelo rio Guaporé. À época, o governador preferiu ir a Brasília, onde buscou demover o ministro da Justiça, Nelson Jobim, da ideia de permitir que a Polícia Federal realizasse um inquérito paralelo sobre o caso. A promessa de que dotaria as polícias Civil e Militar de todas as condições necessárias para um bom trabalho jamais se cumpriu, e a apuração foi realizada sob uma capenguice sem tamanho.
“O grande responsável pelos atrasos verificados no desenvolvimento dos dois inquéritos que apuram o caso do massacre de Corumbiara é o exmo. governador do estado de Rondônia, que não demonstrou até o presente momento qualquer preocupação em resgatar a imagem de Rondônia perante a opinião pública nacional e a comunidade internacional”, acusou a Comissão Pastoral da Terra em documento divulgado no começo de 1996. Àquela altura, o responsável pelo inquérito policial militar, João Carlos Sinott Balbi, circulava com uma picape cheia de problemas mecânicos, arcando do próprio bolso com alguns dos custos – Raupp ainda não respondera ao pedido apresentado em setembro do ano anterior para que Balbi contasse com R$ 5 mil em mãos.
A mistura entre a preocupação com a imagem pública e a garantia efetiva do interesse público não é exclusividade do ex-governador. Há dezenas de exemplos todas as semanas de como informações de interesse do cidadão são controladas como se fossem patrimônio privado. E há uma infinidade de casos obscuros em que forças privadas entendem que o Estado deve a elas submeter-se.
O episódio de Corumbiara é farto nesta seara. O comandante da operação de reintegração de posse, o então major José Ventura Pereira, claramente relutava em dar cumprimento ao mandado. “Eu não queria ir”, mais tarde confessou à jornalista Mônica Bergamo, em reportagem para a revista Veja. Recebeu no 3º Batalhão da Polícia Militar, em Vilhena, a visita de Antenor Duarte do Valle, dias antes da operação. O proprietário de áreas vizinhas à Santa Elina exigiu que a ação de remoção dos sem-terra se desse rapidamente, sempre ciceroneado por um capitão mais tarde acusado de receber presentes de suas mãos generosas. O fazendeiro se sentia à vontade na função de líder local: fundador da seccional rondoniense da União Democrática Ruralista (UDR) e beneficiário de 43 mil hectares doados pela ditadura, acumulava uma lista farta de denúncias por escravidão, relação que seria aumentada ao longo das décadas seguintes.
Em 1º de agosto, pressionou o juiz Glodner Pauletto para que exigisse da PM a reintegração da Santa Elina. “Requisito de Vossa Senhoria o envio de reforço policial para o cumprimento IMEDIATO de Mandado de Manutenção de Posse expedido nos autos nº 160/95”, determinou o magistrado naquele mesmo dia, cobrando atitudes rápidas do comandante da PM. Com uma cópia em mãos, Antenor viajou a Porto Velho em companhia de Hélio Pereira, proprietário da Santa Elina, para entregar o documento pessoalmente a Valdir Raupp.
Quando procurei o ex-governador para conversar, algumas vezes ao longo dos últimos três anos, seu assessor informou que seria impossível agendar uma entrevista: o hoje senador reserva-se o direito de falar somente sobre assuntos que lhe sejam favoráveis. Privatiza uma narrativa que deveria ser pública e que forma a história do estado pelo qual fez carreira.
Valdir Raupp de Matos, nascido em Santa Catarina há 60 anos, tem uma trajetória comum para um político de Rondônia. Via de regra, governadores são empresários com condições de se bancar ou profissionais liberais com ganas de serem bancados. Raupp é um pouco dos dois. Comerciante, mudou-se ao estado na época do boom populacional, no final da década de 1970, elegeu-se vereador em Cacoal pouco depois e chegou a prefeito de Rolim de Moura, na região central, em seguida.
O atual governador, Confúcio Moura, é médico e pecuarista. A família de Ivo Cassol, o antecessor, fez fortuna com madeira, gado e hidrelétricas. O senador Acir Gurgacz é dono da Eucatur, empresa que cresceu fazendo viagens do sul do país para Rondônia no momento da migração em massa. Amir Lando, ex-deputado e ex-ministro da Previdência, é advogado e dono de terras vizinhas à Santa Elina. O clã Donadon, recentemente abalado por denúncias de corrupção, cresceu no Cone Sul com atividades empresariais diversificadas.
Estas são as linhas gerais da política local. Talvez resida nisso uma das explicações para que se considere privado o que em verdade é público. Rondônia é o 18º colocado no ranking de respostas à Lei de Acesso à Informação divulgado este ano pela Controladoria Geral da União. A nota de 5,56, num total possível de 10, significa que está longe do Rio Grande do Norte, com nota zero, mas também não está perto do topo da lista, ocupado por Ceará e São Paulo. Segundo a CGU, há problemas de divulgação nos sites do Executivo e os pedidos são respondidos “parcialmente” fora do prazo e de conformidade com o que foi solicitado.
Olhando a partir das apurações sobre o massacre de Corumbiara, o ranking parece bondoso com a situação de Rondônia. A tentativa de uso da Lei de Acesso à Informação teve momentos que oscilaram do irritante ao cômico, passando pelo bizarro.
– Esta lei não existe aqui em Rondônia, não – disse uma funcionária do Poder Executivo quando telefonei para saber com quem poderia falar a respeito de um pedido que desejava protocolar, uma vez que o site não fazia qualquer referência à legislação.
– A lei é federal. Se Rondônia é uma unidade da federação, então a lei existe em Rondônia – quando soltei esse argumento, surgiu do outro lado da linha um silêncio de desespero que se repetiu em N conversas sobre o assunto.
Em outra ocasião, a tentativa frustrada foi via Poder Judiciário.
– Por que você quer esses dados? – questionou uma servidora.
– Não preciso responder o motivo.
– Se você quer os dados, me parece uma questão de isonomia que diga por que quer.
– Justamente por não haver isonomia entre Estado e cidadão é que a lei preserva meu direito de não ter de responder por que quero os dados.
– Bom, isso facilitaria as coisas, mas, se você quer assim…
Os dados, é claro, nunca chegaram. Na única ocasião em que a Lei de Acesso à Informação funcionou em pedidos encaminhados a Rondônia, a má vontade predominou. A juíza Roberta Cristina Garcia Macedo, da Vara de Cerejeiras, vizinha de Vilhena, autorizou o acesso aos 33 volumes de processos do caso Corumbiara. A ordem judicial, porém, não determinou que o responsável pelo cartório nos recebesse com cordialidade. Ao longo de dois dias, tivemos de acelerar muito na tentativa de fotografar e copiar tudo o que fosse possível, sempre sob obstáculos colocados no caminho pelo sujeito.
São papéis que estão se perdendo. Há folhas rasgadas, informações impressas que estão por se apagar totalmente, documentos que já desapareceram. Segundo o Tribunal de Justiça, não foram guardados os vídeos relativos ao julgamento do caso, ocorrido em 2000 em Porto Velho. Se isso é verdade, significa que o registro audiovisual de um episódio importantíssimo se perdeu. Restam apenas dados escritos sobre a condenação de dois sem-terra e três policiais. Se isso for mentira, não será de se surpreender: é a privatização de mais um trecho de uma narrativa que deveria ser pública, mas não é.