‘Tempos de Retomadas’ permitirá ao público saber mais sobre os conflitos que têm vitimado indígenas no Mato Grosso do Sul, alvos de organizações paramilitares que os expulsam de suas terras
por Redação RBA
O documentário Tempos de Retomadas, que traz a realidade dos Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul,será lançado hoje (15), na Câmara dos Deputados, para que o público tenha uma compreensão sobre os problemas vividos por essas comunidades indígenas, alvos de organizações paramilitares que as expulsam de suas terras em favor dos ruralistas e fazendeiros.
O filme é resultado do relatório da missão da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal nessas comunidades indígenas. O presidente da comissão, deputado Paulo Pimenta (PT-RS), diz que a realidade dessa região, que vive sob conflito permanente, afeta cerca de 45 mil índios Guarani Kaiowá. Ele diz também que há 90 fazendas ocupadas, e 33 áreas de conflitos em situações mais agudas. “Assistimos a uma morosidade por parte do processo de demarcação dessas terras e essa situação ocorre no âmbito do próprio governo; na Funai, que tem uma dificuldade inclusive estrutural, ocorre no âmbito do poder executivo do estado e no Judiciário. Portanto, na Justiça estadual do Mato Grosso do Sul, como também na Justiça Federal”, afirmou em entrevista a Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual.
Segundo o deputado, essa morosidade leva ao acirramento da instabilidade e contribui para que os conflitos ocorram de modo cada vez mais frequente e mais violentos. “Há uma situação muito delicada, várias lideranças indígenas já foram assassinadas, há uma sensação enorme de impunidade e agora recentemente tivemos dois episódios que revelaram à sociedade a gravidade da situação e o estado de extrema violência a que são submetidas as lideranças indígenas e suas famílias que lutam pela demarcação, pela retomada de suas terras originais”.
Muitas pessoas não entendem por que os indígenas Guarani Kaiowá e outros de várias partes do país estão fazendo retomadas de áreas em conflitos com fazendeiros. Pimenta diz que a expressão “retomadas”, que os Guarani Kaiowá utilizam, não é por acaso. “Na realidade, são áreas que historicamente foram de convívio das comunidades tradicionais Guarani Kaiowá e que em um processo irregular, inclusive do ponto de vista da Constituição, o Estado brasileiro retirou os índios dessas áreas, muitas vezes com o uso da força em diversas oportunidades”, afirma.
O deputado diz que há casos na época do Estado Novo, de Getúlio Vargas, muitos casos que se agravaram durante o período da ditadura e esses índios foram levados para reservas sob a supervisão da Funai. “As retomadas significam o retorno para as terras que foram confiscadas”. São áreas em que muitas delas já foi feita a demarcação, estudo antropológico, reconhecimento de que essas áreas são efetivamente tradicionais dessas comunidades, mas chega um determinado momento em que esse processo começa a emperrar.
“Os índios já tiveram reconhecido o seu direito, as terras já foram identificadas, mas eles não conseguem ter a posse. E quando a situação chega no limite – muitas dessas comunidades hoje vivem em beira de estrada, em situações completamente inadequadas de saúde, educação e de segurança – eles acabam fazendo a retomada daquilo que o Estado de maneira morosa não faz”. Nos últimos tempos, os conflitos têm se acirrado porque os ruralistas, cada vez mais, resolvem não buscar na Justiça o seu suposto direito. “E aí criam espécies de milícias paramilitares e expulsam os índios de suas terras”.
“Ali é uma região muito próxima da divisa com o Paraguai, então, é comum o uso de veículos, armas, inclusive de pessoas que não são brasileiras nessas operações. Vários casos em que houve assassinato de lideranças os corpos foram roubados, e com certeza levados para o Paraguai, então há um cenário, digamos assim, de perda de presença do Estado. E aonde cada vez mais a ação desses grupos paramilitares é frequente. E isso leva ao acirramento do conflito. É com relação a isso que a comissão está intervindo”, disse Pimenta.
Recentemente, no ataque ao acampamento em Kurussu Ambá, perto do município de Coronel Sapucaia, a 420 quilômetros de Campo Grande, duas crianças desapareceram e foram encontradas dias depois. “Esse é um exemplo típico da desproporção do uso da força nessa relação entre os ruralistas e as lideranças indígenas”, disse Pimenta. “Em primeiro lugar, as pessoas que expulsaram os índios de lá não são as donas da fazenda. Nem sequer o proprietário estava envolvido na operação. Uma das pessoas é um arrendatário de uma parte da fazenda, que reuniu outras pessoas, que por uma questão de natureza ideológica querem tirar os índios de lá porque optam pelo conflito, e não pela via negocial, mas por fazer justiça com as próprias mãos.”
O grupo ameaçado era formado por dez índios homens, adultos, 15 mulheres e 25 crianças, com cerca de 60 indígenas. “E esses indígenas, o instrumento de resistência mais perigoso que eles tinham eram enxadas, e do outro lado havia 56 caminhonetes, várias delas com placas do Paraguai, todas elas com pessoas na carroceria, armadas, esse foi o conflito. São pistoleiros contratados, vários deles paraguaios, armas do Paraguai, então, é uma luta desigual e um absurdo do ponto de vista da desproporção, da violência”, diz o deputado.
Ele diz que houve uma fuga dos índios em direção ao mato, a qualquer lugar em que pudessem se esconder, alguns utensílios deles foram quebrados e queimados, e nesse momento duas crianças se perderam. “E foram encontradas quase uma semana depois, a 25 quilômetros do local do ataque, bastante debilitadas, fruto desse momento de terror. Os índios ficaram quatros horas submetidos a esse ataque até que aparecessem as autoridades”.
Como presidente da comissão, Pimenta solicitou a presença da Força Nacional na região, que também é marcada por conflitos do narcotráfico e do tráfico de armas. “Temos hoje a Força Nacional presente em Ponta Porã e Corumbá, e o que nós pedimos foi que essas unidades fossem mobilizadas também para patrulhamento ostensivo na região, para prevenção de conflitos e evitar a ação desses grupos paramilitares, o que já está ocorrendo. Desde que a Força Nacional foi mobilizada não tivemos outros conflitos.”
Vários líderes indígenas, no entanto, vêm sofrendo ameaças de morte. “Nós temos vários líderes que recebem proteção. Então, os assassinatos, as agressões são frequentes e há um imenso sentimento de impunidade.”
Pimenta também diz que está fazendo um trabalho específico na comissão sobre a questão da saúde e educação. “Encontrei uma sala de aula com 43 crianças sem água, sem luz, sem nenhuma condição. Tem uma denúncia específica que nós estamos fazendo sobre as condições da educação.”
E sobre a questão da saúde, a comissão está fazendo o encaminhamento para o Tribunal de Contas da União, pedindo uma tomada de contas especial sobre os convênios que existem naquela região, pois há entidades contratadas pelo Ministério da Saúde, “mas que têm uma presença que deixa muito a desejar na região. Segurança, saúde e educação são os três temas que nós estamos trabalhando mais”, afirma Pimenta.
Tudo isso é pano de fundo da luta pela demarcação. Pimenta já esteve tratando do assunto com o ministro da Justiça, Eduardo Martins Cardozo, com o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), com a Funai, “mas o que falta é a decisão política de resolver o problema”, acredita. “Esses sucessivos adiamentos são fruto de uma omissão, digamos assim, por parte do Estado na responsabilização das suas tarefas que são encontrar uma solução e realizá-la. A Constituição de 1988 definiu um prazo de cinco anos para que o processo de demarcação estivesse concluído, portanto, nós estamos atrasados há 20 anos. E é inaceitável essa omissão e esse atraso por parte do poder público”, diz.
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Imagem: Índios Guarani Kaiowá: 33 áreas de conflitos e morosidade na demarcação de terras no âmbito dos governos federal e estadual (PERCURSODACULTURA / FLICKR)