Julia Jones – Rio On Watch
Na segunda-feira 1 de junho, policiais, guardas municipais e funcionários da prefeitura se juntaram no Santa Marta para demolir várias casas, deixando os moradores confusos, em estado de pânico, e sem teto devido ao atraso nas construções das prometidas casas populares. No mês passado, o RioOnWatch fez um tour pelo Santa Marta conduzido por Vitor Lira, um morador de quinta geração. Além de dirigir tours afim de mostrar a realidade da vida na comunidade, Vitor tem uma voz crucial no ativismo local e nos ofereceu sua visão das atuais transformações e pressão das remoções.
Vitor se mantém em pé encostado no parapeito da plataforma do bonde e lança seu olhar endurecido à encosta vertical da montanha. Como pano de fundo, algo milagroso–um mosaico único e colorido de lares abraçam o morro arborizado, e a estátua do famoso Cristo Redentor se ergue logo em cima com seus braços abertos. O resto do grupo que acompanha o tour segue Vitor até a plataforma, sem fôlego por terem escolhido subir centenas de degraus em vez de esperar pelo próximo bonde.
“A minha casa é bem ali em cima”, diz Vitor para o grupo, apontando para o lugar onde os lares do Santa Marta, a mais íngreme das numerosas favelas do Rio, se unem à pedra da encosta. Pássaros voam no nível dos olhos levando o olhar para baixo onde se vê os caminhos estreitos e casas juntinhas, o topo de altos edifícios, e a Lagoa, até o Atlântico. Essa vista é mais do que um lar para Vitor, cuja família foi uma das primeiras a se assentar na favela nos anos 30. A vista representa mais de cinco gerações de famílias e amigos que construíram juntos uma comunidade vibrante, que testemunharam a rápida expansão da cidade abaixo e, mais recentemente, enfrentaram as ameaças por parte do governo de lhes ser tudo retirado.
A visita guiada por Vitor começou na base da favela, onde uma fila–de moradores idosos papeando, mães e estudantes–se formava para pegar o bonde até lá em cima. Dois adolescentes carregavam sacolas pesadas de tijolos vermelhos, e se encostaram à área de cargas do bonde. Inaugurado em maio de 2008, o bonde é uma parte vital do Santa Marta e de acordo com Vitor, “a única boa assistência que o governo providenciou para a comunidade”. Vitor é rápido ao destacar que o bonde anda tantas vezes quanto quebra, deixando os moradores sem opção a não ser subir e descer as escadas a pé pelas ruas íngremes carregando material de construção, alimentos, livros de escola e lixo. O primeiro turno de remoção no Santa Marta foram devidos à construção do bonde; o seguinte veio depois da instalação da UPP.
Em dezembro de 2008 o Santa Marta tornou-se a “favela-modelo”, sendo altamente divulgada pela sua UPP, a primeira do programa, e é sempre usada como exemplo marcante de sucesso da política de pacificação. Desde então, o Santa Marta foi convertido em uma atração turística ‘chique’, sendo até objeto de uma TED Talk onde se destacavam as fachadas pintadas em uma iniciativa liderada por artistas holandeses. Para moradores como Vitor no entanto, “a UPP fez de tudo para autorizar turistas a entrar dentro da comunidade, mas não fez nada por mim”. Como muitos empreendedores pensadores da comunidade, Vitor aproveitou a oportunidade para mostrar aos estrangeiros uma face mais verdadeira do Santa Marta.
Como guia turístico, Vitor revela uma intensa paixão e uma luta marcante que perdura para sustentar sua vida no Santa Marta. Ele quer que os visitantes vejam a comunidade pelos olhos dos moradores, para quem cada camada de tinta cobre uma outra realidade de remoções, ameaças e falta de investimento. Durante os últimos anos, Vitor e seus amigos da comunidade lutaram contra as demandas infundadas de remoções por parte do governo, especialmente nas partes mais altas da favela. Considerada “uma “área de risco“, a prefeitura ordenou aos moradores do alto que deixassem para trás 80 anos de história e que fossem realocados em um conjunto habitacional. Os moradores formaram uma comissão e conseguiram assegurar com êxito seus direitos à terra, inclusive trazendo um contra-laudo de um engenheiro que contradizia o laudo da Geo-Rio. Ele provou que as casas não eram moradias perigosas como o governo afirmava que eram, mas sim bem mais seguras do que aquelas propostas pelo reassentamento.
Vitor também liderou uma manifestação de aproximadamente 300 moradores em julho de 2013, protestando contra as remoções e contra as tentativas inadequadas para providenciar saneamento básico e infraestrutura. “Ao ser a primeira favela pacificada, a cidade tem que proteger a imagem de ‘sucesso’, mas falha ao não providenciar às nossas necessidades de cada dia”. Vitor declara que a localização da UPP no topo da comunidade não trouxe a prometida segurança, mas que sim cria medo e traz um olhar onipresente para que o governa possa impor sua ordem.
A história de Vitor com a pressão da Prefeitura e a falta de confiança em policiais infelizmente não é única, mas sim cada vez mais comum, e cada vez mais intensa nas favelas do Rio dada a preparação para as Olimpíadas. No dia 28 de maio, a imagem de segurança foi questionada quando agentes da UPP trocaram tiros com indivíduos suspeitos de serem traficantes.
Vitor terminou sua visita guiada num mirante apropriado: o local onde foi filmado o vídeo de Michael Jackson, “They Don’t Care About Us“. O rosto de Michael em forma de mosaico, vibrante na parede, nos olha, enquanto a estátua de ferro fundido abri seus braços com orgulho. “Olhem só para a vista daqui”, Vitor admira. “Não é coincidência que aqueles que têm as melhores vistas do Rio tenham que lutar mais contra as remoções”. Esse argumento é destacado pelas características sócio-geográficas do Rio, sendo este último um dos únicos lugares do mundo onde cidadãos de baixa-renda desfrutam das melhores vistas panorâmicas. Também traz à luz o desafio maior da segurança fundiária e da necessidade de ter um mercado regulado dado que a cidade esteve passando por uma fase de ressurgência econômica.
Vitor sabe que a luta por seus direitos irá continuar, só para permanecer na casa que ele conhece desde sempre. “Trabalhar com direitos humanos no Brasil é colocar sua própria vida em risco”, declara. E ele demonstra com dignidade e confiança que defender seu sustento e uma geração de memórias é um risco que ele está disposto a correr, por uma comunidade pela qual vale a pena lutar.
Para agendar uma visita com o Vitor, entre em contato pelo Facebook.