Gênero e espaço urbano: uma relação de poder e resistência. Entrevista especial com Ana Carolina Brandão

“Ainda é incipiente a discussão do direito à cidade na perspectiva de gênero. Esse direito não pode ser entendido só no seu aspecto normativo, mas como uma abertura democrática que possibilite a apropriação e participação dos sujeitos que produzem a cidade”, afirma a pesquisadora

IHU On-Line

Entre as várias formas epistemológicas e políticas de interpretar as relações de gênero, uma via possível é abordar a questão a partir do espaço urbano. Essa é a perspectiva de estudo de Ana Carolina Brandão, que entende o espaço urbano não somente como uma “dimensão material-concreta fixa e neutra onde as relações sociais se dão”, mas, ao contrário, como um espaço que é construído pelas relações de poder que atravessam a sociedade. “O espaço não é só produto da organização econômica, mas de outras relações sociais, como o gênero, que refletem também sobre nós, na maneira em que nos constituímos enquanto sujeitos”, pontua.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Ana Carolina comenta alguns casos em que a relação entre gênero e metrópole aparece, a exemplo da Marcha das Vadias, que desde 2011 reivindica o direito das mulheres de circularem pelo espaço público sem a ameaça de serem agredidas física ou psicologicamente. “Assim, as mulheres saem juntas com roupas curtas e escrevem nos seus corpos palavras como ‘vadia’ e ‘puta’ para provocar a estratégia dominante de culpá-las e responsabilizá-las pela violência que sofrem”, exemplifica.

As discussões sobre direito à cidade a partir de uma perspectiva de gênero, informa, também “giram em torno da necessidade de fazer as cidades mais seguras e acessíveis às mulheres através da melhoria dos equipamentos e serviços urbanos, bem como o acesso à moradia adequada”. Segundo a pesquisadora, entre as iniciativas propostas a partir de uma perspectiva de reforma urbana, tem se destacado a prioridade da titulação da propriedade ou da concessão de direito real de uso a mulheres que são chefes de famílias. “Por serem, ainda hoje, as principais responsáveis pelas tarefas relacionadas ao lar e ao cuidado, compreende-se que a precariedade da moradia, do fornecimento de água, de saneamento, transporte público, postos de saúde, creche, etc. afetam mais violentamente as mulheres”.

Ana Carolina Brandão é graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica – PUC-Rio. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o espaço na Metrópole é determinado pelo sexo/sexualidade e como o sexo/sexualidade determina o espaço urbano na Metrópole? Como os corpos que não se deixam institucionalizar tornam-se corpos de resistência? 

Ana Carolina Brandão – Essa discussão é bem complexa, com muitas variáveis e desdobramentos, mas vou colocar alguns elementos essenciais que me auxiliam para pensar a produção de gênero na relação com o espaço urbano. É bom destacar que esse debate tem crescido muito no Brasil, em especial na área da geografia, destacando-se os trabalhos do Grupo de Estudos Territoriais da Universidade Estadual de Ponta Grossa e o Grupo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Mulher e Relações Sociais de Gênero da Universidade Federal de Rondônia. Todavia, no meu campo de atuação (o Direito), quase não se discutem as relações de gênero e a produção do espaço, ou o direito à cidade na perspectiva de gênero.

O espaço não é só a dimensão material-concreta fixa e neutra onde as relações sociais se dão (HARVEY, LEVEBVRE e MASSEY); ele constitui e é constituído pelas relações de poder que atravessam a nossa sociedade, e também muda com elas. O espaço não é só produto da organização econômica, mas de outras relações sociais, como o gênero, que refletem também sobre nós, na maneira em que nos constituímos enquanto sujeitos (MASSEY, 1994). Há várias formas epistêmicas e políticas de interpretar como as relações de gênero se dão. Acho interessante a abordagem das teorias queer e interseccional que não partem de uma base universal para dizer o que é a relação patriarcal, o que produz e quais são os seus efeitos. Essas teorias entendem que o gênero é marcado, histórica e culturalmente, na articulação com outros marcadores sociais da diferença como a classe, a raça, a sexualidade, dentre outros; assim, não há uma única interpretação sobre como se dá esta relação.

Gênero: discursos e práticas que interpretam o sexo

Com Butler, entendo que o gênero compõe um regime de discursos e práticas que interpretam o sexo, a orientação sexual, o desejo, o comportamento, etc. de maneira linear, que constrangem a normalização dos modos de ser; penetram e materializam-se nos corpos por atos performativos que dão aparência de uma essência anterior à própria subjetivação desses discursos, conferindo inteligibilidade para participar da vida social. Aqui é bom lembrar a influência de Michel Foucault, que demonstra como a sexualidade se torna um dispositivo de poder na medida em que é administrada dentro da proliferação de discursos que afirmam certa “verdade” sobre o que é normal e sadio. O espaço compõe os atos performativos, ele dá uma forma visual e concreta ao que é legitimado socialmente. Ele naturaliza a separação entre o “normal” e o “desvio”, o que está “no lugar” e o que está “fora de lugar” (HUBBARD, 2003). Então, por exemplo, ao remover-se o trabalho sexual de um lugar a ser “revitalizado”, por entender que este só compõe uma paisagem marginal e semiclandestina, inscreve-se no espaço determinada ordem social (HUBBARD, 2003).

Poder x Resistência

É claro que as relações não são determinantes e podem ser subvertidas; onde há poder também há resistência. Há diversas formas contemporâneas que buscam desestabilizar os atos performativos, expor suas falhas e deslocar o terreno de lutas. Por exemplo, a Marcha das Vadias, movimento que surge a partir de 2011, reivindica o direito das mulheres de circularem pela cidade e ocuparem o espaço público sem a ameaça de sofrer risco à sua integridade física e psicológica, em especial a violência sexual, através da afirmação de que não é a roupa que elas usam, o seu comportamento ou o horário que causam a violência. Assim, as mulheres saem juntas com roupas curtas e escrevem nos seus corpos palavras como “vadia” e “puta” para provocar a estratégia dominante de culpá-las e responsabilizá-las pela violência que sofrem.

IHU On-Line – De que forma a prática institucional de expulsão de prostitutas das áreas visíveis (e do centro) do Rio de Janeiro remonta práticas de higienização urbana do século XIX?

Ana Carolina Brandão – Elizabeth Wilson (2001) indica que a cidade, no período industrial, desperta uma crescente ameaça e paranoia, é atravessada por inúmeros discursos moralizantes e regulatórios que culminam em políticas de controle sobre os corpos das mulheres que circulam pelas ruas e estabelecimentos públicos. A instabilidade dos fluxos e as mudanças contínuas, as multidões que possibilitavam certo “anonimato” e outros fatores criavam certa desordem e deslocamento das relações patriarcais, possibilitando maior liberdade às mulheres. Isso influencia o urbanismo emergente que produz uma concepção rígida entre o público e privado, o espaço de produção e reprodução, reconduzindo a mulher à vida doméstica e reforçando a naturalização do seu papel como cuidadora do lar. As prostitutas, entendidas como figuras opostas à mulher “guardiã do lar”, eram tidas como ameaça à ordem pública e moral, por isso sofrem intervenções médicas e sanitárias, bem como têm sua circulação e aparição controladas na cidade, para “não servirem de exemplo” às “mulheres honestas” e não “contaminarem” o ambiente. Há obras muito boas que explicam os efeitos desses discursos no Brasil, como de Margareth Rago (1985) e Rachel Soihet (1989).

É interessante pensar como esse regime de regulação dos corpos, que podemos entender como dispositivos de poder, se reatualizam contemporaneamente na forma do planejamento estratégico hegemônico e na sua relação com o discurso da diversidade (em especial, nesse caso, a diversidade sexual).

IHU On-Line – O que é o caso das “trabalhadoras sexuais” do Prédio da Caixa, em Niterói? Como a problemática destas pessoas estabelece um paralelo com as questões relacionadas à Metrópole?

Ana Carolina Brandão – Em abril de 2014, alguns jornais de grande circulação noticiavam protestos de trabalhadoras sexuais que tomaram uma das principais avenidas da cidade de Niterói. As mulheres repudiavam a prisão de duas colegas que foram levadas ao Complexo Penitenciário de Bangu. O crime a que respondiam era de manutenção de estabelecimento onde ocorria exploração sexual (art. 229 do Código Penal), porém elas alegavam que alugavam os apartamentos no prédio da Caixa por conta própria e exerciam o trabalho de maneira independente (é bom lembrar que a prostituição realizada de forma autônoma não é crime no Brasil, é inclusive reconhecida pela Classificação Brasileira de Ocupações, mas há um forte processo de marginalização da atividade). Em dezembro de 2013, havia sido aprovada uma operação urbana consorciada em Niterói, que visava “revitalizar” a área central através de uma parceria público-privada e alterações nos padrões urbanísticos.

Ao lado do prédio da caixa, há um terreno onde se prevê a construção de um prédio da justiça federal. O prédio da Caixa é um imóvel de uns 12 pavimentos, localizado na Avenida Amaral Peixoto, na cidade de Niterói, em que do primeiro ao quarto andar todos os apartamentos eram alugados para o trabalho sexual ou destinados ao comércio, como salão de beleza, quentinha, depósito, loja de roupa, etc. Mesmo após o alvará de soltura das duas mulheres, outros protestos ocorreram para denunciar que estavam sofrendo constrangimentos para sair do imóvel. No dia 23 de maio de 2014, as mulheres foram expulsas violentamente do prédio e levadas amontoadas em micro-ônibus até a delegacia, de forma tão indiscriminada que até uma ativista que estava no local para ajudar foi conduzida também. Há inúmeras denúncias de agressões físicas e verbais (ver aqui carta à Secretaria do Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Observatório da Prostituição da UFRJ).

Após o ocorrido, o prédio foi interditado do primeiro ao quarto andar. O edital de interdição justificou pelo “péssimo estado de conservação das instalações e a confirmação de utilização do local de forma reiterada para prática de crime, bem como a necessidade de garantir vistoria e perícia”. Esse edital é bem problemático. Em relação à estrutura do imóvel, se havia algum tipo de risco não seria apenas para o primeiro ao quarto andar, mas para todo o prédio, porém a interdição foi parcial. Além disso, essa avaliação deveria ser feita pela Secretaria Municipal de Defesa Civil e mesmo esta não deveria tirar as pessoas à força. O prédio permaneceu interditado após a realização da perícia policial, o que não se exige no artigo 6º do Código de Processo Penal. Não houve também a especificação de que crime estaria sendo cometido; em caso de exploração sexual, as mulheres seriam sujeitas passivas do delito imputado e deveriam receber assistência do Estado, mas o tratamento foi o completo oposto.

Por isso, acredita-se que essas ambiguidades jurídicas têm uma motivação de fundo que é a necessidade de “limpar” o centro urbano para abrir caminho à renovação. Historicamente, a prostituição é associada a atributos como a degradação, a insegurança, a imoralidade, que são entendidos como fatores que “desvalorizam” a área a ser investida. É preciso pensar como isso entra em conflito com as pautas dos movimentos de prostitutas por direitos, pelo reconhecimento da profissão e a não discriminação.

IHU On-Line – De que maneira a divisão do espaço público e do trabalho sexual (re)distribuem de maneiras distintas a diversidade sexual e o espaço?

Ana Carolina Brandão – Sobre isso, acredito que o trabalho da socióloga Leticia Sabsay (2011) é muito esclarecedor. A autora faz uma pesquisa sobre os discursos jurídicos e midiáticos em torno do estatuto do trabalho sexual de rua, na cidade de Buenos Aires, no momento da edição do Código de Convivência Urbana que tinha por finalidade a defesa da democracia através do reconhecimento das liberdades individuais dos cidadãos e da garantia de segurança no espaço urbano, pós-ditadura. Para a autora, no momento mesmo em que se discutiam as condições do exercício do trabalho sexual, buscando conciliar a ideia de uma democracia sexual com uma concepção ideal de segurança para a comunidade, delineavam-se os valores e símbolos do espaço, quem e como se podia fruir e se apropriar da cidade.

Para entender isso, é interessante observar a apropriação que a autora faz do conceito de “abjeção” de Judith Butler na produção de sujeitos. Para Butler, os sujeitos se constroem no interior de relações que forjam práticas e discursos normalizadores tão rígidos sobre o corpo, a sexualidade e o gênero, que acabam por produzir a naturalização de certa coerência e estabilidade dos mesmos. E essas relações são construídas através de exclusões, de maneira que o humano é produzido por meio de apagamentos radicais. O que é excluído, que fica à margem das fronteiras, e amedronta pela ameaça de rearticulação do discurso que tenta se manter coerente através de sua exclusão. Para a autora, a ameaça da despenalização do trabalho sexual consistia em visibilizar gêneros e sexualidades (importante destacar que ela estava lidando com um caso que abarcava, sobretudo, a prostituição de mulheres trans*) fora da normativa de gênero hegemônica no espaço social, o que deixaria em evidência a fragilidade das representações dominantes. A exclusão do trabalho sexual como o Outro fornecia uma fronteira para definir as condições de possibilidade do espaço público e a própria concepção de um cidadão ideal.

No caso do Prédio da Caixa, percebemos uma dinâmica parecida, pois no momento próximo em que a Prefeitura aprovava o projeto de “revitalização” da área central, que anunciava trazer melhorias para a cidade através de um debate “inclusivo e pluralista” (esses termos são usados na própria página do plano de desenvolvimento Niterói que Queremos) com a sociedade niteroiense, as prostitutas são expulsas violentamente, sem clareza das motivações legais. Haja ou não intenção, o fato é que o debate é “aberto” com uma definição correlata dos sujeitos que o integram e participam, ou seja, de quem pode se apropriar do espaço e formular demandas.

IHU On-Line – Como o direito à cidade a partir da perspectiva de gênero se estabelece na pauta das políticas públicas na Metrópole? Quais são os principais desafios relacionados à garantia dos direitos humanos?

Ana Carolina Brandão – No âmbito do movimento da reforma urbana, pelo que pude mapear, as discussões sobre o direito à cidade na perspectiva de gênero giram em torno da necessidade de fazer as cidades mais seguras e acessíveis às mulheres através da melhoria dos equipamentos e serviços urbanos, bem como o acesso à moradia adequada. Uma das iniciativas, por exemplo, é a prioridade da titulação da propriedade ou da concessão de direito real de uso à mulher chefe de família (ALFONSIN, 2006). Por serem, ainda hoje, as principais responsáveis pelas tarefas relacionadas ao lar e ao cuidado, compreende-se que a precariedade da moradia, do fornecimento de água, de saneamento, transporte público, postos de saúde, creche, etc. afetam mais violentamente as mulheres.

Gênero e outros marcadores sociais

Apesar de ser imprescindível esse debate, nota-se que essas iniciativas são voltadas, em especial, para as mulheres vinculadas ao âmbito doméstico e familiar, não contemplando outras vivências e modos de ser. Percebe-se que o caso das prostitutas em Niterói não pode ser amparado dentro deste enquadramento. As teorias queer e interseccional nos auxiliam a problematizar a necessidade de construir um sujeito fixo e universal “mulher” para atender uma demanda por unidade na luta pela emancipação e que, ao fazê-lo, acaba por reproduzir exclusões, ocultando diferenças de classe, raça, sexualidade e etnia, assim como reforçando a ideia de uma feminilidade genuína e natural. Como já mencionei, essas teorias formulam uma reflexão sobre gênero na articulação com outros marcadores sociais da diferença através da “construção variável da identidade como um pré-requisito metodológico e normativo, senão como objetivo político” (BUTLER, 2010, p. 13). Isto é, entender a identidade como efeito da prática e não sua origem, o que desafia o direito a ser menos rígido e abrir-se às práticas sociais de produção da cidade. Assim, acredito ser interessante também fazer um esforço para pensar o direito à cidade de uma perspectiva de gênero que não se centre apenas no acesso a direitos, mas como prática de produção do espaço (e de direitos) que põe em cheque o próprio modelo de cidade.

A título de exemplificação, podemos pensar no próprio caso da operação no Prédio da Caixa que desencadeou diversas manifestações lideradas por dezenas de prostitutas, que ocuparam uma das principais avenidas da cidade de Niterói, com dança e humor, gritando “eu, eu, eu, eu só dou o que é meu”, “Libera as primas”, “Prostituição não é crime”. As mulheres reivindicavam o direito de permanecer naquele espaço através da afirmação da diferença, sendo prostitutas, com seus corpos e sexualidade repudiados.

É interessante observar outras iniciativas que apontam a precariedade da vida e dos corpos das mulheres (sempre articulado com outros marcadores) na cidade. Uma campanha denominada “Chega de Fiu-Fiu”, derivada de uma pesquisa on-line em agosto de 2013, com a participação de 7.762 mulheres, apontou que 81% das mulheres já deixaram de realizar alguma atividade com medo de assédio. Por estas razões, muitas mulheres abrem mão de empregos ou de lazer pela ameaça da violência. Afirmam também que 98% dos assédios acontecem nas ruas e 64% em transporte público. Ainda, 90% responderam que já trocaram de roupa para evitar sofrerem assédio no lugar que iam e 85% confirmaram que já foram tocadas contra sua vontade no espaço público.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Ana Carolina Brandão – Essas reflexões ainda fazem parte de uma pesquisa em andamento. Ainda é incipiente a discussão do direito à cidade na perspectiva de gênero. Seguindo a linha de Lefebvre, esse direito não pode ser entendido só no seu aspecto normativo, mas como uma abertura democrática que possibilite a apropriação e participação dos sujeitos que produzem a cidade; entendê-la como espaço fundamental das lutas, dos conflitos, onde se produzem as diferenças e desejos.

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