“Bem-vindos” a Vila Autódromo, “a comunidade que venceu o premio internacional de urbanismo”. Ali, espremidos entre o Parque Olímpico —que concentrará as principais atividades das Olimpíadas de 2016— e a lagoa de Jacarepaguá, no meio do gigante canteiro de obras que se tornou a zona oeste do Rio de Janeiro, os adolescentes andam de bicicleta nas ruas de terra batida e as crianças brincam no parquinho. Não há tráfico e nem milícia. O terreno é plano, de fácil acesso. E a vida, mesmo com todas as suas dificuldades, sempre foi tranquila, feliz. Seus moradores, há décadas vivendo lado a lado, batem papo nas esquinas, nos comércios e nos botecos. Mas o assunto parece ser único: resistir a deixar o local. “Todos nós temos medo, mas não podemos nos acovardar”, discursa Maria da Penha Macena, de 50 anos, diante de duas dezenas de vizinhos que, às seis horas da tarde de um sábado, se reúnem na pequena igreja da comunidade
Felipe Betim – El País/ IHU On-Line
Na verdade, o projeto de urbanismo premiado internacionalmente nunca foi implantado. A maioria das casas parecem ter sido bombardeadas —e nesse caso, pela própria Prefeitura do Rio. A tranquilidade é apenas aparente, parte de um passado não muito distante. Hoje, vivendo entre escombros, em um cenário de guerra, 192 famílias (cerca de 800 pessoas) prometem lutar até o final para não terem que deixar a Vila Autódromo. Esse número representa cerca de um terço das 583 famílias (cerca de 2.450 pessoas) que, segundo os moradores, viviam na comunidade até fevereiro de 2014, quando o governo municipal começou a desocupa-la —ao mesmo tempo que, cabe ressaltar, reassentava essas famílias ou pagava indenizações.
A história da Vila Autódromo simboliza todo um legado de remoções e desapropriações deixado pela organização das Olimpíadas do Rio de Janeiro. Apenas entre 2009 e 2013, 20.299 famílias (cerca de 67.000 pessoas) foram removidas —e indenizadas ou reassentadas— de suas casas pela Prefeitura devido às recentes intervenções urbanas ou ao argumento de que moram em zonas de risco, segundo os dados da Secretaria Municipal de Habitação (SMH) apresentados no livro SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico (Mórula Editorial), do arquiteto e pesquisador da UFRJ Lucas Faulhaber e da jornalista Lena Azevedo. Outras milhares —não se sabe o número exato— foram desapropriadas por decreto (quando a família possui a propriedade legal do imóvel).
Trata-se, de qualquer forma, do período histórico com o maior número absoluto de remoções na cidade, ultrapassando os governos de Carlos Lacerda (1961-1965; 30.000 remoções) e de Pereira Passos (1902-1906; 20.000 remoções), tidos como os principais representantes dessa política. Hoje, na metade do segundo mandato do prefeito Eduardo Paes (PMDB), a cifra de pessoas removidas ultrapassa os 70.000, mas o governo municipal não atendeu a solicitação deste jornal de confirmar o dado exato —entre outras mais.
“Não vou sair da minha casa porque a Prefeitura quer. Se eu tenho o direito de ficar lá, eu vou lutar para ficar”, continua Maria da Penha seu discurso. O encontro dos moradores da Vila Autódromo na Igreja tem como objetivo reafirmar a união entre eles. Dez dias antes, no dia 3 de junho, foram reprimidos pela polícia municipal ao tentar impedir a reintegração de posse de duas casas pelo governo municipal. Nove pessoas ficaram feridas, entre elas a própria Penha, que terminou com o olho esquerdo ensanguentado. “Os guardas nos bateram, mas não nos derrubaram. A comunidade tem que estar unida”.
Histórico de luta
A Vila Autódromo nasceu como uma comunidade de pescadores nos anos 60, em uma época que a zona oeste do Rio era praticamente deserta, sem os condomínios de luxo e shoppings center de hoje. A partir dos anos 90, com o prefeito César Maia (DEM), a comunidade passou a conviver com a ameaça constante de ser removida devido a sua privilegiada posição geográfica, alvo constante do expansivo setor imobiliário. Foi nessa época, em junho de 1994, que Penha e seu marido, Luis, compraram um terreno na comunidade para criar a filha Natália, então com sete anos. “Minha sogra também estava doente, então queríamos um lugar com mais espaço para todos”, conta Penha. Também buscavam um local mais seguro, longe dos becos da favela da Rocinha, onde nasceram e foram criados.
“Vendemos nossas casas e viemos para cá. E já existia uma luta dos moradores, mas não sabíamos”, explica Penha. “No início vivíamos em um lugar pequeno, mas com muito espaço em volta. Como já havia a ameaça de ser removidos, demoramos até construir nossa casa. Mas tudo o que tínhamos investimos aqui, né? Então fomos ficando. Construimos nossa casa aos poucos, com muita dificuldade… Na época, eu era diarista e meu marido, gari”.
Ainda nos anos 90, o Governo do Estado finalmente concedeu aos moradores o uso da área. Anos mais tarde, em 2005, a Câmara de Vereadores aprovou a lei complementar 74/2005, que transformou a comunidade em Área Especial de Interesse Social. E as vidas de Penha, Luis e Natália, assim como a dos demais vizinhos, aos poucos foram se estabilizando. “Aqui é tudo diferente. O espaço é maravilhoso. Não é uma favela, é uma comunidade: tranquila, ordeira, pacífica. Temos nosso espaço, nossos pé de frutas, nossas casas são espaçosas”, conta Penha, que também acolheu em seu terreno seus cunhados e sua mãe. “Éramos livres. Somos livres”.
Olimpíadas e o Plano Popular de Urbanização
Quando o Rio de Janeiro foi eleito para sediar as Olimpíadas de 2016, o fantasma da remoção apareceu novamente. O plano da Prefeitura previa demolir o antigo autódromo de Jacarepaguá para construir o Parque Olímpico, uma série de obras públicas em seu entorno e a remoção completa da Vila Autódromo. No primeiro semestre de 2013, em conjunto com uma equipe técnica da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os moradores da Vila Autódromo apresentaram o Plano Popular de Urbanização como alternativa a remoção. O projeto, cuja implantação não chegava a 14 milhões de reais, ganhou o prêmio internacional Urban Age Award, do Deutsche Bank e da London School of Economics and Political Science.
As doações de construtoras “Olímpicas” a Eduardo Paes
Entre as dezenas de empresas que financiaram o prefeito Eduardo Paes e o seu partido, o PMDB, nas eleições municipais de 2012, estão três construtoras diretamente envolvidas nas obras das Olimpíadas de 2016.
A Carvalho Hosken Engenharia e Construções foi a principal doadora da campanha: contribuiu com 650.000 reais. A construtora é proprietária do terreno da Vila Olímpica e forma parte do consórcio responsável pela construção do Parque Olímpico, no terreno do antigo autódromo de Jacarepaguá e ao lado da Vila Autódromo.
Empatadas em segundo lugar estão as construtoras OAS, que forma parte do Consórcio Porto Novo, para a recuperação da Zona Portuária, e da Cyrela Monza Empreendimentos Imobiliários, associada às obras do campo de golf olímpico. Cada uma investiu 500.000 reais.
Outros empreendimentos imobiliários também se destacam na lista de doadores, como a MPH Empreendimento Imobiliário (500.000 reais), Multiplan Empreendimento Imobiliário (500.000 reais) e a EMCCAMP Residencial (400.000 reais).
A coligação “Somos um Rio” captou um total de 21 milhões de reais, segundo declarou ao Tribunal Superior Eleitoral.
Não é necessário ser um especialista para constatar o óbvio: a Vila Autódromo, com seu terreno plano, ruas abertas, casas bem estruturadas, além de uma população unida, é perfeitamente urbanizável. Basta vontade política. “E sempre tivemos uma preocupação ambiental. O plano resguarda uma faixa de proteção da lagoa de Jacarepaguá [em teoria, uma área de proteção ambiental], a recuperação do mangue e da vegetação nativa, além do reassentamento das pessoas que moram nas margens da lagoa para o miolo da comunidade. E desde o início nos adaptamos ao projeto do Parque Olímpico”, explica Regina Bienenstein, coordenadora adjunta do projeto e do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (NEPHU), da UFF.
Bienenstein conta que o projeto foi enviado para o governo municipal ainda em 2013, mas que o prefeito só decidiu negociar após as manifestações de junho do mesmo ano. “Ele fez uma autocritica e disse que já não queria retirar a Vila. Montou um grupo com secretários da Prefeitura, os moradores da comunidade e seus assessores técnicos, no caso nós da UFF e da UFRJ. Começamos a debater e a Prefeitura apresentou uma proposta. E sobrava muito pouco da Vila, e muitos teriam que sair”. Isso porque, entre as intervenções previstas, estão as vias de acesso ao Parque Olímpico, que deverão passar por dentro da favela.
Os moradores apresentaram então uma segunda versão do plano que resguardava tudo aquilo que o governo municipal anunciava como imprescindível, como o acesso independente ao Parque Olímpico dos atletas, de jornalistas e do público, entre outras coisas, mas sem atingir tanto a Vila Autódromo. “A gente foi fazendo alguns ajustes em cima do plano original, adequando à nova situação. Era só uma questão, por exemplo, de afastar um pouco essas saídas. Mas na solução da Prefeitura, ficava claro a intenção de retirar um grande numero de famílias. Tecnicamente havia outras soluções. Conseguimos provar com o plano popular que a permanência é viável”, explica Bienenstein.
Remoções
Depois que apresentaram esta última versão do plano, as negociações foram rompidas e o governo municipal passou a negociar individualmente com os moradores. Começou, a partir de então, um assédio cotidiano dos funcionários da Prefeitura, segundo relatam os moradores. “O prefeito mente. Os moradores estão sendo coagidos a aceitar a indenização”, diz uma pichação logo na entrada da vila. Bienenstein explica: “Esses funcionários dizem que a família deve sair senão vão perder tudo. Fazem pressão, dentro da comunidade e dentro das famílias”.
Essa pressão é a mesma estratégia (documentada no livro SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico) aplicada em outras desocupações: as pessoas acabam cedendo a abandonar o lugar, as casas são demolidas e vários pertences —fogões, geladeiras, móveis— são deixados na rua. Os que ficam passam a viver em um insuportável cenário de guerra, ao mesmo tempo que são pressionados a fazer o mesmo. Os moradores vão ficando uns contra os outros e a favela acaba dividida. E assim, pouco a pouco, vai sendo removida.
As remoções na Vila Autódromo começaram em fevereiro de 2014 e, desde então, cerca de dois terços de sua população deixou a comunidade —os moradores calculam que cerca de 390 famílias, enquanto que a Prefeitura fala em 590. O governo municipal ainda mantém o discurso oficial de que não tem a intenção de desapropriar a área por completo. “Os que tiveram que deixar o local ocupavam uma área ambientalmente protegida, na margem da lagoa, ou estavam na rota de vias públicas em construção. 246 famílias não precisavam sair, mas pediram à Prefeitura para serem reassentadas mesmo assim, porque não queriam permanecer no local”, argumenta. Os moradores têm certeza de que o objetivo é a remoção completa das famílias para que, finalmente, algum tipo de empreendimento imobiliário seja realizado.
A maioria dos que deixaram a vila foi reassentada no Parque Carioca, um conjunto habitacional a um quilômetro de distância “com área verde, piscina, espaço gourmet, creche e espaço comercial”. Outros optaram por receber a indenização em dinheiro. O valor total das compensações é de 96 milhões de reais, muito superior, portanto, ao plano de urbanização apresentado.
Essas compensações, no entanto, são uma exceção: a maioria dos cidadãos que são obrigados a deixar suas casasnas favelas do Rio de Janeiro são reassentados em áreas distantes da cidade, onde são construidos os edifícios do programa Minha Casa, Minha Vida (Governo Federal) ou Morar Carioca (Prefeitura do Rio), e sem poder de escolha. Esses programas habitacionais são, segundo conclui o mencionado livro, um instrumento de “segregação espacial”, uma vez que “libera” as áreas mais valorizadas da cidade para a especulação mobiliária e remove a população mais humilde para as margens da área urbana, longe de suas relações sociais, familiares e de trabalho.
No caso específico da Vila Autódromo, a resistência de seus vizinhos fez com que as compensações fossem mais justas. Mas para os que ainda mantêm a esperança de continuar na comunidade, a questão não é conseguir uma boa indenização, mas sim de respeitar o direito de permanecer onde desejam. “O que queremos é urbanização!”, gritava Penha e outras dezenas de vizinhos em um ato de Copacabana no último domingo. Há uma semana, entregaram na prefeitura um abaixo-assinado e tentaram marcar uma audiência com o prefeito Eduardo Paes para, mais uma vez, pedir a implantação do plano de urbanização. Ainda não receberam uma resposta.
O que explica esse desejo de permanecer na vila? Altair Guimarães, de 61 anos e presidente da Associação de Moradores, resume: “Aos 14 anos, eu e minha família fomos removidos da Ilha dos Caiçaras, na zona sul do Rio, ao lado da praia e da Lagoa. Roubaram a minha infância. Fomos reassentados na Cidade de Deus e, anos depois, fui desapropriado de novo, por causa das obras da Linha Amarela. E agora passo pela minha terceira remoção. Só que agora vejo minha filha, de 13 anos, passar pelo mesmo que passei quando era criança. Ela sofre porque varios de seus amigos já não estão na comunidade”.
“Muitos estão lá há mais de 40 anos. Começaram com barracos e, ao longo do tempo, foram investindo em suas casas. Alguns de meus alunos se surpreendem porque muitas são grandes, mas é que as pessoas têm o direito de melhorar suas moradias! É natural, é desejável! O que sempre faltou foi a presença do poder público, urbanizando a área”, explica a arquiteta Bienenstein. Caso os últimos moradores da Vila Autódromo resistam até as Olimpíadas, os escombros deixados pelas remoções serão todo um espetáculo para os meios de comunicação internacionais, que estarão instalados em um edifício construído ao lado da comunidade. “É uma pena. A recuperação da Vila Autódromo poderia ter sido um legado, um cartão de visitas, de como fazer Olimpíadas. Esse seria o legado verdadeiro”.
É possível realizar intervenções urbanas sem remover favelas?
Quando se fala em realizar grandes intervenções urbanas, como as que estão sendo levadas a cabo no Rio de Janeiro, e organizar megaeventos como a Copa do Mundo ou as Olimpíadas de 2016, a percepção geral é a de que não se pode escapar das remoções ou desapropriações. Nos últimos anos, as principais ocorreram no entorno dos estádios do Engenhão, do Maracanã, do Parque Olímpico, dos novos corredores viários (BRTs) e na Zona Portuária.
Para o arquiteto Lucas Faulhaber, coautor de SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico, a questão é outra: “Tantos os BRTs como o Parque Olímpico ou a revitalização da Zona Portuária são usados, moldados, justamente para viabilizar a retirada de uma favela. Não é que elas precisam sair porque o trajeto passa no meio. Não. O trajeto foi intencionalmente colocado em cima da favela”, explica.
Em seu livro, Faulhaber explica que no caso das remoções —que ocorrem quando a família não possui a propriedade legal do terreno, apenas a posse, o que diminui os tramites burocráticos— a prefeitura argumentou em mais de 40% das vezes que se tratava de uma área de risco. “É um argumento difícil de ser refutado, porque o motivo é querer salvar sua vida. Mas existem exemplos na estradinha Botafogo, no Morro da Providencia e no Santa Marta que moradores conseguiram uma assessoria técnica para fazer um contra laudo. No morro da Providencia, tinham marcado 800 casas em risco, e logo ficou provado que não era assim.”
No caso das desapropriações —que ocorrem por decreto, quando a família possui a propriedade legal do terreno—, a maioria se concentra nas regiões de grandes obras públicas. Em determinados casos, quando não há outra solução, argumenta Faulhaber, “o importante é colocar opções para essas pessoas e que elas possam participar desse processo”. “Para a construção do BRT Transoeste, por exemplo, favelas como a Vila Recreio II foram retiradas, mas o terreno continua vazio. Se alguém precisasse sair de fato, poderiam ter sido reassentado na própria comunidade. O norte deveria ser urbanizar esses espaços, não remover”.
Esses grandes projetos, que removem e desapropriam diversas famílias, refletem o que, para Faulhaber, as comunidade representam historicamente para a cidade. “Os territórios populares sempre foram algo que tem que ser combatido. Desde a época dos cortiços, na era do prefeito Pereira Passos. E isso até hoje. A favela é vista como o espaço da criminalidade, da indignidade humana. E algo que tem que ser combatido a partir de argumentos morais, estéticos ou ambientais”. O pesquisador argumenta que o “cerne da questão” é que “ninguém quer ter uma favela em frente a sua janela”. Eliminar as favelas significa, portanto, “liberar terreno” e valorizar o que está perto. “A própria política das UPPs é isso, valorizar o que está no entorno da comunidade”.