“A ilegalidade ocorre, em sua maior parte, fora das áreas que são autorizadas para o manejo florestal; é dessas áreas que vem a madeira que é acobertada pela documentação legal”, informa o engenheiro florestal
Por Patrícia Fachin – IHU On-Line
A exploração madeireira no Mato Grosso atingiu 46% da área florestal do estado em 2013, segundo dados da pesquisa Transparência Florestal: Mapeamento da ilegalidade da exploração madeireira, realizada pelo Instituto Centro de Vida – ICV, e 70% do total da madeira explorada ilegalmente é oriunda de dez municípios, que estão localizados ao Noroeste do estado, onde há uma maior quantidade de florestas. A exploração ilegal é atribuída, entre outras razões, “às falhas que os sistemas de monitoramento e controle florestal apresentam”, explica Vinicius Silgueiro na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone.
De acordo com o engenheiro florestal, a exploração madeireira ilegal é mais intensa em áreas sem categoria fundiária definida, “onde ocorreram 34% do total de área explorada ilegalmente. (…) Essas áreas podem ser tanto privadas quanto públicas, mas são áreas sobre as quais não se têm um controle e tampouco um sistema que as monitore e observe o uso que está sendo feito delas”, pontua.
Entre os impactos da exploração madeireira predatória, Silgueiro destaca o aumento do “grau de compactação do solo, que dificulta a regeneração da floresta”. A exploração indevida, realizada inclusive em períodos em que a extração da madeira é proibida, causa sérios danos à estrutura florestal. Segundo ele, “a ilegalidade continua porque existem aspectos de gestão, técnicos e de mercado a serem superados e melhorados”.
Entre as alternativas para reverter o atual quadro, ele ressalta que “é preciso acompanhar a dinâmica das áreas florestais após a exploração, adotar tecnologias já existentes para melhorar o planejamento e o monitoramento, e o desenvolvimento de iniciativas de mercado no sentido de exigir a comprovação da legalidade da madeira através da cadeia de custódia”.
Vinicius Silgueiro é graduado em Engenharia Florestal pela Universidade Federal de Mato Grosso, pós-graduando em Gestão Integrada de Sistemas Socioecológicos de Produção Familiar na Amazônia Legal pela University of Florida e Universidade do Estado de Mato Grosso. Atualmente é analista de geotecnologias no Instituto Centro de Vida – ICV. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como foi realizada a pesquisa feita pelo Instituto Centro de Vida – ICV, a qual aponta que 46% da área florestal explorada no estado do Mato Grosso entre agosto de 2012 e julho de 2013 foi ilegal?
Vinicius Silgueiro – A pesquisa foi produzida pelo Instituto Centro de Vida – ICV e é baseada numa metodologia elaborada pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia – IMAZON para mapear a exploração madeireira. Essa metodologia se utiliza de imagens de satélites, que são processadas para gerar um produto de sensoriamento remoto próprio para a identificação de áreas de florestas impactadas pela exploração madeireira. Nesse estudo, o período de referência é agosto de 2012 a julho de 2013, o mesmo período em que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE produz o Programa de Monitoramento do Desflorestamento da Amazônia Legal (Prodes). Assim, fomos em uma a uma das imagens de satélite que cobrem a área florestal de Mato Grosso, identificando e mapeando todas as áreas com sinais de exploração madeireira.
Após esse mapeamento, checamos as áreas dentro das autorizações de exploração emitidas pela Secretaria do Estado do Meio Ambiente – SEMA e que estão disponíveis publicamente para consulta no Sistema Integrado de Monitoramento e Licenciamento Ambiental do Mato Grosso (SIMLAM). Acessamos todas as autorizações vigentes dentro desse período de análise e cruzamos com as áreas mapeadas para verificar a legalidade ou não dessas explorações. Contudo, nós não entramos na análise da volumetria de madeira explorada nessas áreas.
IHU On-Line – A que região do Mato Grosso corresponde essa área de 46%? Geograficamente, ela está dividida pelo estado do Mato Grosso ou está concentrada num determinado local?
Vinicius Silgueiro – Essa exploração foi identificada em 42 dos 141 municípios existentes no estado, mas dez desses 42 representam praticamente 70% do total da área explorada ilegalmente. Então, o que se percebe é uma concentração dessa exploração nos municípios que apresentam uma quantidade maior de floresta. Esses municípios estão localizados na região Norte e Noroeste do estado, que tem aproximadamente 70% de cobertura florestal e, obviamente, é onde os recursos estão disponíveis tanto para atividades legais quanto para as ilegais.
Essa exploração no estado do Mato Grosso segue uma tendência que já vem sendo observada desde 2006, pelos mapeamentos realizados pelo IMAZON, que produziu estudos sobre a exploração madeireira entre os anos de 2006 e 2012, nos estados do Pará e do Mato Grosso.
IHU On-Line – A que atribui o aumento da exploração ilegal de madeira no Mato Grosso? Quem são os responsáveis por este tipo de prática? Qual o destino dessa madeira?
Vinicius Silgueiro – A exploração ilegal de madeira é atribuída principalmente às falhas que os sistemas de monitoramento e controle florestal apresentam e que permitem a geração e utilização de créditos legais de volumes de madeira para acobertar a madeira ilegal. Então, não é uma situação que tem só um responsável. É uma situação em que a gestão e a fiscalização ainda são falhas, e estamos falando de órgãos ambientais, tais como o Ibama e a Secretaria de Estado do Meio Ambiente, que gerem esses sistemas. E isso permite, ao mal-intencionado, a prática da ilegalidade.
Ainda há questões técnicas que precisam ser melhoradas dentro da prática do manejo florestal, como, por exemplo, o inventário florestal, que é a quantificação e qualificação das árvores da área a serem exploradas, onde o volume de madeira é geralmente superestimado. Então, dentro do sistema é gerado um volume de madeira maior em relação ao que se tem realmente de madeira na área, e é esse volume que sobra no sistema que serve para acobertar a madeira que vem de uma origem ilegal.
O terceiro aspecto que contribui para a continuidade da ilegalidade é o fato de que o mercado ainda não exige, de forma efetiva, uma comprovação acerca da origem da madeira legal. Para resolver esse problema, sugerimos que, através de uma plataforma, seja possível deixar claro de que área a madeira saiu, por qual indústria foi processada e para qual comércio foi destinada. Essa seria uma maneira de ter maior controle acerca da origem da madeira, deixando claro para o consumidor de onde a madeira veio.
IHU On-Line – De acordo com o estudo, a exploração ilegal ocorreu majoritariamente em áreas sem categoria fundiária definida, em terras indígenas e em propriedades rurais cadastradas no Sistema Integrado de Monitoramento e Licenciamento Ambiental. Por que a exploração ilegal ocorre especificamente nessas áreas e como se dá esse processo ilegal?
Vinicius Silgueiro – Essas áreas sem categoria fundiária definida, que são as que ficaram responsáveis por 34% do total de área explorada ilegalmente, são áreas onde não se tem registro do imóvel rural em um sistema de controle, tal como o Cadastro Ambiental Rural – CAR, mas que também não é uma terra indígena ou unidade de conservação. Assim, essas áreas podem ser tanto privadas quanto públicas, mas são áreas sobre as quais não se têm um controle e tampouco um sistema que as monitore e observe o uso que está sendo feito delas.
Em relação às terras indígenas, elas são muito visadas porque são áreas que têm grande quantidade de madeira disponível. Historicamente há uma relação e modo de vida dos indígenas com os locais onde eles vivem, mas em muitos casos eles não conseguem fazer a vistoria de todo o território. O Ibama e a Funai também não têm condições de fazer a fiscalização de todos esses territórios e, portanto, é possível que os exploradores estejam entrando nessas áreas de modo que não está se percebendo a presença deles.
Existe ainda uma situação dos imóveis rurais cadastrados no CAR: 22% da exploração ilegal no período analisado ocorreram nessas áreas. Nessas áreas é possível identificar os infratores, uma vez que já possuem registros nos sistemas de controle e monitoramento. Então, é uma situação onde é possível proceder a penalização dos infratores. Mas o que se sabe é que essa maior parte da ilegalidade ocorre fora das áreas que são autorizadas para o manejo florestal; é dessas áreas que vem a madeira que é acobertada pela documentação legal. Portanto, há, sim, uma ação de utilização de documentos legais para acobertar madeira que vem de áreas indígenas ou de terras que não têm uma categoria fundiária definida. Esse processo ocorre de uma forma que permite que a legalidade e a ilegalidade caminhem lado a lado, porque se não fosse a autorização legal para “esquentar” a madeira ilegal, não seria possível explorar e transportar essa madeira ilegal.
IHU On-Line – A exploração ilegal de madeira também ocorre em Unidades de Conservação?
Vinicius Silgueiro – Ocorre, mas é um percentual mínimo. Tivemos um total de mais de 300 mil hectares explorados entre áreas legais e ilegais. Contabilizam-se, desse total, em torno de 140 mil hectares de área explorada ilegalmente, sendo que aproximadamente 1.600 hectares foram dentro de Unidades de Conservação, ou seja, cerca de 1% de área explorada. Ainda, desse número, 72% ocorreu na Reserva Extrativista Guariba Roosevelt, que fica justamente na região Noroeste do estado, que tem uma quantidade maior de florestas.
IHU On-Line – Qual é o impacto econômico e ambiental da exploração ilegal de madeira?
Vinicius Silgueiro – Os créditos de volume de madeira que são gerados de forma legal e que são autorizados para a exploração geralmente excedem a volumetria real de madeira explorada. Essa diferença de crédito de volume deve ser estornada no sistema, mas muitos não o fazem, e esse crédito excedente é usado para acobertar a madeira que tem procedência ilegal. Dessa forma, a madeira legal acaba sendo contaminada pela ilegal, uma vez que elas são misturadas dentro de uma mesma documentação e dentro do pátio das indústrias. Como eu disse anteriormente, não se exige uma comprovação da origem legal da madeira, ou seja, qual é o caminho que ela percorreu desde que saiu da floresta, para qual indústria foi e qual seu destino no mercado. Então, essa madeira ilegal entra no mercado com um custo de produção bem mais baixo, uma vez que não é preciso recolher impostos e pagar taxas. Nesse sentido, perde o governo por não recolher tributos. Socialmente, perde o trabalhador por não ter condições dignas e acesso aos benefícios de que tem direito. E o impacto econômico para o setor florestal é grande, porque assim há uma concorrência desleal: aqueles que trabalham na legalidade sofrem em relação àqueles que trabalham na ilegalidade.
Impacto ambiental
E tem o aspecto do impacto ambiental. Hoje talvez não tenhamos noção do impacto que essa floresta está sofrendo, porque a madeira está sendo explorada de forma predatória, gerando sérios danos à estrutura florestal, chegando, em muitos casos, a um nível de degradação. O que serão dessas florestas no futuro? Muitas vezes são exploradas em Áreas de Preservação Permanente – APPs, onde as árvores apresentam um porte maior. Também não se consideram as árvores porta-sementes, que são aquelas que devem ficar na floresta para regenerá-la a fim de que novas árvores germinem; as espécies raras também não são consideradas. Essa exploração predatória leva a um grau de compactação do solo, que impossibilita dificulta a regeneração da floresta. Isso impossibilita a germinação de novas plantas e a regeneração acaba sendo comprometida. São sérios os danos que a estrutura florestal sofre por conta de uma exploração ilegal, onde não se respeita muitas vezes os meses de chuva fevereiro e março em que é proibida a exploração legal, e certamente esse período não é respeitado pelos que fazem extração ilegal.
IHU On-Line – Seria preciso uma atualização de práticas de manejo sustentável?
Vinicius Silgueiro – Precisa de um monitoramento de fato, porque o plano de manejo florestal, desde que ele existe, preconiza a instalação de parcelas permanentes para o acompanhamento das áreas exploradas ao longo dos anos. O inventário de acompanhamento deveria ser realizado de três em três anos para conhecer a dinâmica dessa área, pois dessa forma haveria muito mais argumentos e elementos para dizer que o crescimento da floresta está sendo de tantos metros cúbicos por ano, e seria possível estimar com mais precisão quantos metros cúbicos poderão ser explorados no futuro.
Na essência, o plano de manejo florestal sustentável está em funcionamento, mas a aplicação dele e a cobrança dos órgãos reguladores é o grande problema. Temos uma situação em que, muitas vezes, a vistoria de acompanhamento da exploração não é feita, que dirá de três em três anos depois da exploração. Tecnicamente, claro que os planos podem ser melhorados com a adoção de novas tecnologias, como a utilização das geotecnologias para melhor planejar o manejo florestal, fazer e seguir o microzoneamento da área, a distribuição das estradas no terreno, a alocação dos pátios de estocagem. Tudo isso pode ser feito hoje de uma maneira mais precisa através do uso das geotecnologias, mas a cobrança disso pelos órgãos ambientais é muito importante.
IHU On-Line – O Estado dispõe de tecnologia de monitoramento via satélite?
Vinicius Silgueiro – Sim. Por exemplo, Mato Grosso é pioneiro na implantação do Cadastro Ambiental Rural, que utiliza as geotecnologias. Em Mato Grosso, a SEMA tem uma Superintendência de Geoinformação e Monitoramento Ambiental com analistas comprometidos e qualificados, uma equipe muito boa. Inclusive, na nova gestão estadual no em Mato Grosso, estão focando bastante na questão do monitoramento, estão fortalecendo isso dentro da SEMA, e isso é um grande avanço.
Recentemente foi aprovado um decreto que regulamenta a necessidade ou não de vistoria prévia. Para um plano de manejo ser aprovado, é preciso uma verificação de campo, uma vistoria pré-exploratória na área a ser explorada. Essa vistoria prévia, de acordo com esse decreto, passa a ser facultativa, e somente será feita em áreas em que o analista julgar necessário. Para isso, ele utilizará do monitoramento via imagensm de satélite, que já permite avaliar os principais parâmetros exigidos para a autorização da exploração na área.
IHU On-Line – Como o governo do Estado do Mato Grosso recebeu as informações do estudo?
Vinicius Silgueiro – Não vou dizer que foi confortável, apesar de que a análise compete ao período da gestão anterior, mas a informação não foi recebida de maneira tranquila. Todos querem melhorar. A sociedade não pode receber uma informação dessas de maneira cômoda. Mas o bom é que o estado está aberto ao diálogo, tanto que recentemente lançamos esse estudo no 3° Workshop de Monitoramento e Controle Florestal, workshop organizado conjuntamente com a SEMA e o Centro das Indústrias Produtoras e Exportadoras de Madeira do Estado de Mato Grosso – Cipem, que é a maior representação dos empresários florestais do estado. Nesse evento, que teve outras versões anteriores em 2011 e 2012, reuniram-se a sociedade civil, os empresários, o governo, o Ministério Público Federal, as universidades, para identificar os problemas e discutir soluções para eles. Por exemplo, essa questão de tornar facultativa a vistoria prévia e fortalecer o monitoramento via imagens de satélite foi apontada nas outras duas versões do workshop.
IHU On-Line – Que alternativas poderiam ser aplicadas para evitar a extração ilegal?
Vinicius Silgueiro – Ainda existem vários gargalos a serem resolvidos, tanto no aspecto da gestão, onde discutimos os problemas e as brechas que os sistemas de monitoramento e controle florestal apresentam, mas também as soluções, propostas de melhorias e resoluções desses problemas.
Existe outro aspecto, que é um aspecto técnico, que passa por essa questão de adoção das tecnologias, de fazer hoje algumas melhorias na regulamentação que, por exemplo, irão tornar a exigência de um inventário georreferenciado, trazendo uma maior precisão ao manejo florestal. O terceiro aspecto é o do mercado, porque vemos que muitas das mudanças, quando olhamos essa questão ambiental como um todo, são determinadas pelo mercado, pelo consumidor que não quer mais comprar um produto que seja danoso ao meio ambiente.
Ninguém fica confortável e quer ser cúmplice de um desmatamento ou dano ambiental, ainda mais na região amazônica. Então, o mercado da madeira também tem que se articular e desenvolver algumas iniciativas de comprovar e exigir a comprovação da legalidade da madeira. Implantar e acompanhar uma cadeia de custódia de produção seria uma alternativa. É uma via de mão dupla: se existe uma cadeia de custódia rastreada, há maior facilidade na gestão e no controle.
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Foto: Redegs.com.br