Por Mônica Francisco*, no Jornal do Brasil
O Brasil está experimentando um período interessante de choque de realidade. Não sei se o “choque” vai produzir resultados práticos no futuro ou um certo estado de catatônia.
O engraçado disso tudo, ou não, é que estamos também em um dos momentos mais estranhos em relação a ele, o futuro. Já mencionei aqui que um retrocesso se percebe, tomando conta de nossas estruturas sociais. Mas podemos voltar a isso em um outro momento.
Voltemos ao tal “choque de realidade”. Ele tem produzido cenas interessantes e discursos mais interessantes ainda. Acredito que daqui a algum tempo tenhamos que produzir estudos acadêmicos, que deem conta de nos fazer entender o descortinamento da verdadeira identidade do Brasil e seus efeitos.
O Brasil não é cordial, democrático racialmente , pacífico, gentil e hospitaleiro. Vejamos então, por exemplo, o último episódio da menina Kayllane, que recebeu uma pedrada de supostos “fundamentalistas” religiosos.
Nossa tendência de afirmarmos categoricamente que somos uma democracia e que aqui há lugar para todas as manifestações, religiosas ou artísticas, não vêm se sustentando, e isso é resultado direto dos discursos não tão alinhados com a mensagem bíblica pregada por Jesus, o amor, a paciência, a compaixão, justiça, em muitas esferas de nossa sociedade.
Não podemos ficar o tempo todo falando em fatos isolados, em pessoas descontroladas, em “brincadeiras” de mau gosto, quando o que temos vivenciado é uma total ausência de consideração com a vida, com o humano.
O caso de Kayllane é só mais um no âmbito religioso, mas temos os casos de racismo, que no âmbito institucional têm produzido a morte de jovens negros e pobres em escala assustadora, ininterrupta e ascendente, o enclausuramento de mais um outro contingente, o analfabetismo de fato, analfabetismo funcional e o sub-emprego para mais outro tanto.
Mas continuamos dizendo como mantra, que são só fatos isolados, mal-entendidos, equívocos. Afirmamos e reafirmamos isso, como aquele ou aquela que fizer materializar a própria mentira, que já sabemos, repetida muitas vezes toma o status de verdade.
A pedra que atingiu Kayllane é a “pedra no sapato” da nossa consciência. E corremos para tratar logo de produzir desagravos, passeatas, fotos, discursos, entrevistas, análises, “jogar luz” nos fanáticos e depois de produzir-se a sensação de que somos “todos irmãos” voltamos ao nosso lugar, à nossa zona de conforto.
Nos mantemos em um quadro esquizofrênico de condenar com veemência a “brutalidade” dos policiais brancos estadunidenses contra jovens negros, mas produzimos cadáveres de jovens negros em ritmo fordista. Proferirmos discursos de horror diante da negação de apoio aos refugiados por parte dos europeus, mas tratamos logo de “despachar’ ônibus com haitianos. Aos píncaros do assombro, mediante a barbárie de algum grupo extremista contra pasquins.
É, eu sei, é bem mais fácil do que encarar a realidade do que somos, e que, assim como o doutor Henri Jekyll, de o Médico e o Monstro, não façamos vir à tona Hyde e depois não consigamos mais deixá-lo sob controle.
Penso que o melhor caminho é encararmos de frente o que somos, da melhor maneira que nos for possível, e trabalharmos nossas fraquezas com a serenidade necessária para avançarmos.
“A nossa luta é todo dia. Favela é cidade. Não aos Autos de Resistência, à GENTRIFICAÇÃO e ao RACISMO, ao RACISMO INSTITUCIONAL, ao VOTO OBRIGATÓRIO e à REMOÇÃO!”
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*Mônica Francisco – Membro da Rede de Instituições do Borel, Coordenadora do Grupo Arteiras e Consultora na ONG ASPLANDE (Twitter/@ MncaSFrancisco)