Wilson Matos da Silva*, Jornal O Progresso
Os direitos constitucionais dos índios estão expressos em oito dispositivos isolados, em um capítulo no título “Da Ordem Social” e em um artigo que consta do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Eles são marcados por pelo menos duas inovações conceituais importantes. A primeira é o abandono de uma perspectiva assimilacionista que entendia os índios como uma categoria social transitória, fadada ao desaparecimento. A segunda é que os direitos dos índios sobre suas terras são definidos enquanto direitos originários, isto é, anterior à lei ou ato que assim o declare. Isto decorre do reconhecimento do fato histórico que os índios foram os primeiros ocupantes do Brasil.
Pela primeira vez reconhecia-se aos índios no Brasil o direito à diferença; isto é: de sermos índios e de permanecermos como tal indefinidamente. A Constituição de 88, inovou em todos os sentidos, estabelecendo, sobretudo, que os nossos direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupamos são de natureza originária do nosso povo, ou seja, que são anteriores à formação do próprio Estado, existindo independentemente de qualquer reconhecimento oficial.
Na evolução legal dos direitos indígenas no ordenamento jurídico brasileiro constatou-se que a tutela dos direitos indígenas fundamentais compreendidos entre aqueles imprescindíveis à sobrevivência com dignidade desse grupo étnico, se consubstanciou de forma gradativa e em atendimento a determinados objetivos políticos e econômicos, pelos quais se identificamos a formação de três modelos jurídicos indígenas, o exterminacionista, o integracionista e o de reconhecimento e ampliação de direitos, este último advindo da CF de 88.
No entanto, há em curso um golpe contra a Constituição em trâmite no Congresso Nacional. Esse golpe está expresso nessa sigla e nesse número: PEC 215. Esse projeto de emenda à Constituição uma vez aprovada transfere a competência exclusiva do Congresso Nacional à aprovação das demarcações das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e ratificar as demarcações já homologadas, uma vez aprovada, extrapolará a competência legislativa, subjugando o Executivo de forma que a ação administrativa de demarcação das Terras indígenas, atividade inerente ao Poder Executivo, ficará condicionada à validação de outro Poder da República, o Poder Legislativo.
A demarcação decorre de imperativo constitucional, consignado no caput do Art. 231 da CF, ao estabelecer “competir à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios consiste em ato administrativo, por intermédio do qual a administração pública federal explicita os limites das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, baseado em elementos de prova documental, testemunhal e pericial, fixando marcos oficial, sinalizadores do limite da terra demarcada. Esse ato administrativo tem natureza declaratória dos limites da terra tradicionalmente ocupada pelos nossos povos indígenas, que consiste em um bem da União, por força do que estabelece o inciso XI do art.20 da CF e sobre a qual os índios exercem a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo, nos rios e nos lagos.
O território ancestral é uma garantia fundamental da Constituição porque a terra é parte essencial da vida dos índios. Sem ela, condena-se povos inteiros à morte física (genocídio) e cultural (etnocídio). Isso explica por que, em 2012, um grupo de Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul pediu, numa carta aos brancos, que fossem declarados mortos. Preferiam ser extintos a ser expulsos mais uma vez. A PEC 215 traz de volta o modelo exterminacionista que a legislação indígena colonial em nome de uma “ordem indígena” buscou extinguir os povos tradicionais que não se sujeitaram a espoliação imposta sendo contrários aos interesses dos colonizadores.
O Congresso Nacional, no exercício da função reformadora (Poder Constituinte derivado), pode alterar o texto constitucional, através de emendas supressivas, aditivas ou modificativas, desde que respeite as vedações (cláusulas pétreas), porque estas, constituem manifestações da vontade soberana do povo, expressa nas decisões adotadas pela Constituinte.
A PEC 215, a ser votada, é uma proposta flagrantemente inconstitucional e viola o princípio da independência dos poderes. Legislativo e Executivo em confronto não contribui em nada, para o Brasil vencer o preconceito e se firmar como um país pluriétnico, saldando a dívida histórica com os povos indígenas.
*Wilson Matos da Silva, índio, residente na Aldeia Jaguapirú, Advogado OAB-MS 10.689, Jornalista SRTE 773MS. e-mail: [email protected]
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Foto: Mídia Ninja