O Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito contra o Clube Pinheiros, um dos mais caros da capital paulista, para apurar se a exigência que babás estejam vestidas de branco configura prática de discriminação social. A investigação foi motivada por denúncia de uma sócia que se indignou com o tratamento dado à babá de sua filha.
O clube afirmou à BBC Brasil que o uso do uniforme branco é norma interna, da mesma forma que o crachá em outras empresas, e que há áreas proibidas às babás.
A promotora do caso, Beatriz Helena Fonseca, discorda: “os convidados dos sócios, amigos, e familiares não são obrigados a usar uma identificação que os discrimine, que indique não serem associados”. E afirmou que “ao exigir o uso de determinada roupa pelas babás, o clube pretende marcar as pessoas que estão no local, circulando entre os sócios, mas que pertencem a outra classe social”.
Pode parecer uma discussão banal, mas não é. É simbólica demais, diz como nossa sociedade está organizada e como aceitamos certas “tradições” como verdades que não precisam ou não podem ser discutidas. Tradições que reafirmam quem manda e quem obedece.
Tempos atrás, em uma praia do litoral norte de São Paulo, um casal passou, sorridente e de mãos dadas, à minha frente, seguido de perto por duas babás, cada uma cuidando de dois pimpolhos, devidamente uniformizadas na areia, em uma adaptação contemporânea de uma gravura do Brasil colonial de Debret ou Rugendas. Sabe aquelas, com escravos, carregadores, amas de leite, sinhá, sinhô e a criançada?
Desculpem, mas babá que é obrigada a ir uniformizada à praia ou ao clube com os filhos dos patrões choca.
Parece que o objetivo do desnecessário uniforme em um espaço público é deixar claro os papéis de cada um nesse grande teatro social.
Tanto que há organizações não-governamentais defendendo que a imposição do uniforme branco deixe de vigorar. No Rio de Janeiro, uma lei foi sancionada no ano passado proibindo clubes de exigir a entrada uniformizada de babás e acompanhantes de idosos.
Já tratei desse assunto mas, com o inquérito do MP, a discussão vale ser retomada. Há clubes em São Paulo que refutam dizendo que se os sócios quiserem vir com babá em roupa normal, tudo bem, desde que usem sua cota de entrada para “convidados”.
Outros pegam depoimentos das próprias babás dizendo que elas preferem assim. Afinal, quem só recebeu pelanca cozida a vida inteira não vai entender que, lá fora, os sortudos da vida estão comendo bife ancho. Ou como disse à BBC a própria sócia do clube que denunciou a situação: “O mais triste é que acho que, de tão acostumada a esse tipo de tratamento, [ela, a babá] não percebe a gravidade do problema, acha que é só uma questão de roupa”.
Particularmente, acho que melhor seria colocar a hipocrisia de lado e amarrar logo uma bola com correntes ou tatuar no braço o nome da família-proprietária da pessoa em questão. Com henna, é claro, para poder apagar e registrar outro nome depois – sabe como é essa rotatividade do mercado de trabalho.
Porque o trabalhador pode até ter obtido a garantia legal da liberdade em maio de 1888. Contudo, não raro, segue como instrumento descartável de trabalho.
A parte desse pensamento hegemônico que está flutuando feito cocô todo mundo vê. É feia, recebe críticas de todos os lados. O horror, o horror! O drama é o que lá no fundo há coisa pior e que precisa de uma observação mais atenta para ser decifrado. E nem sempre uma descarga manda embora o que há nesse fundo, não.
Ok, poderia ter usado um iceberg na analogia. Seria mais fino, mas definitivamente não provocaria o mesmo efeito.
Já contei aqui que que fui convidado a ir a um clube da classe alta paulistana tempos atrás. Não sei se foi o horário em que fui ou o azar que tive, mas as únicas pessoas negras presentes eram as babás uniformizadas e os empregados do estabelecimento.
É claro que o clube possui sócios negros, mas esses devem ser proporcionalmente muito poucos.
Não creio que só a pequena participação relativa de negros entre o 1% mais rico de São Paulo- menor que a proporção de sua presença na sociedade – seja a causa do sumiço dos negros em locais dessa elite. As decorrências indiretas da desigualdade étnica-social também estão presentes e se realimentam.
A herança da escravidão se faz sentir ainda porque ela é constantemente reinventada, não mais atrelada à cor da pele, mas ainda consequência desta. Muitas das adesões dos clubes, por exemplo, vêm através de conhecidos, pessoas que apresentam seus amigos que, por sua vez, acabam pleiteando comprar um título.
Qual a chance de você, sendo muito rico em São Paulo, ter no seu círculo de amigos próximos pelo menos a mesma quantidade de negros e de brancos na proporção da sociedade brasileira?
“Ah, mas os negros da periferia também segregam!” Faça-me um favor a si mesmo, pare de garantir vergonha alheia. Vá entender, por exemplo, a história do movimento Hip Hop na capital paulista e entender o que é resistência social.
E sabendo como funciona a formação de parte de nossa elite (segregando, separando, limitando, excluindo), a chance de um branco fazer contato com um negro quando criança é mínima.
Fiz jornalismo na Universidade de São Paulo e, na época, sem polítias afirmativas éticas e sociais, só tive uma amiga negra em uma turma de 25 pessoas. Há classes em que dei aula na PUC sem negros.
A desproporcionalmente pequena quantidade de negros como representantes no Congresso Nacional, nas chefias de grandes empresas, como professores de universidades de prestígio, em grandes bancas de advocacia ou à frente de grandes hospitais e, por que não, no comando de grandes redações de jornalistas, deveria chocar tanto quanto a questão das babás, brancas, negras, indígenas, estrangeiras em questão.
Estou pedindo que fechem os clubes da elite paulistana? Não. São frequentados também por pessoas ótimas, conscientes da sua cidade, mas – como meus amigos sócios mesmo atestam – não raro acabam funcionando como um local de reprodução de determinados comportamentos detestáveis consciente ou inconscientemente. Local de circulação e reafirmação daquele pensamento hegemônico que citei acima.
No mais, considero os punhados de riqueza cercados de muros por todos os lados uma realidade paralela. Ou uma viagem de ácido por assim dizer, daquelas que, no final, a pessoa só consegue balbuciar: “Mano, lá dentro é tudo muito doido! Eu vi coisas que não fazem sentido algum!”
Queria viver em uma cidade em que não houvesse cidadãos de primeira e segunda classes.
Ambientes mais coloridos de pessoas mas também de ideias.
Só não sei se todo mundo ia querer viver nessa cidade também.
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Imagem: Aqui vemos a pintura “Um funcionário a passeio com a família”, de Jean Baptiste Debret (1768-1848). É um funcionário público, de classe média, saindo para um passeio com a família e escravos no Brasil