“As transformações radicais da cidade não podem acontecer unilateralmente num tempo curto demais, sem levar em conta a significância do bem, do objeto, do sítio histórico, do lugar para a população de modo geral”, adverte o pesquisador
Por Patrícia Fachin – IHU On-Line
O projeto de construir 12 torres de uso residencial e comercial no Cais José Estelita, que abrigava o pátio ferroviário onde foi inaugurada a segunda linha ferroviária urbana do Brasil, em 1859, por Dom Pedro, é consequência dos interesses do setor imobiliário na região, após fracasso do empreendimento Recife-Olinda.
De acordo com Tomás Lapa, que vem acompanhando as tentativas de desenvolver algum empreendimento na região costeira de Recife, “desde o início dos anos 2000, uma das gestões do governo do Estado quis empreender a Frente Atlântica, como eles chamaram, que é a área que vem desde Olinda até o trecho chamado Cabanga, no Recife”. Embora o projeto inicial tenha sido abandonado, em 2012 o Consórcio Novo Recife, formado por um grupo de construtoras, apresentou um projeto para a construção de 12 torres de até 45 andares na área do Cais Estelita, das quais duas já foram construídas.
“A construção dessas torres é um ataque à cidade, em que não prevalece mais o modelo de ocupar lote por lote, mas a tática é de ocupar grandes glebas, ou seja, implantar pequenas cidades dentro da cidade”, as quais “nunca são devidamente articuladas com o tecido e a paisagem e com os aspectos sociais da população preexistente”, critica o pesquisador.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Lapa explica que a principal dificuldade daqueles que defendem um modelo de urbanização que preserve os aspectos históricos do entorno do Cais Estelita se concentra no fato de não existir no local uma edificação histórica que tenha sido conservada. “Não tem a antiga estação, não tem oficinas funcionando com acervo, com material que valesse a pena guardar como patrimônio ferroviário. O que restou do ponto de vista material está muito dilapidado e muito fragmentando. O valor histórico é o fato de sabermos que naquele pátio foi inaugurada a segunda linha ferroviária urbana do Brasil”.
Na semana passada, Tomás Lapa participou de uma reunião no Ministério da Cultura solicitando o tombamento do Cais Estelita. Contudo, explica, dada a fragilidade do patrimônio material, “as possibilidades apontam para um tombamento da paisagem cultural. Aí é possível imaginar como é complicada a questão da paisagem cultural, porque envolve muitos aspectos imateriais, e diante do interesse imediatista e material de lucro dos grupos imobiliários é muito difícil conseguir resultados em tempo recorde”.
Na avaliação do pesquisador especializado em urbanismo, um plano urbanístico adequado para a região do Cais Estelita deveria levar em conta a “diversidade de usos”, porque o projeto proposto pelas construtoras “cria guetos”. Além disso, pontua, “nada que venha a ser construído ali deve ultrapassar os pontos mais altos das torres das igrejas preexistentes do bairro de São José. (…) É necessário que o que vier a ser construído permita o descortino generoso das superfícies aquáticas”.
Tomás Lapa é doutor em Geografia Humana e Urbanismo pela Université de Paris I. Atualmente é professor da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e membro da revista científica City & Time. Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que é e onde fica o Cais José Estelita? Quais são as disputas em torno dele?
Tomás Lapa – O Cais Estelita é uma área especial em termos urbanos, porque corresponde ao antigo parque de manobras da Rede Ferroviária Federal – RFFSA e está diante de uma superfície aquática e em uma área histórica. Por todos esses motivos, trata-se de uma área especial e, assim sendo, o próprio Plano Diretor da cidade determina que nessas áreas especiais deve haver um plano urbanístico. Esse é um dos primeiros pontos irregulares do processo que envolve o Cais Estelita.
O Consórcio que agora é responsável pela construção de duas torres no Cais Estelita não apresentou um plano urbanístico, ao contrário, apresentou “algo” que o poder público municipal, por estar completamente comprometido com verbas usadas nas campanhas eleitorais, não se sente em condições de ir contra.
Então, trata-se de uma área que desperta muito interesse, a qual não tenho dúvidas de que deve ser empreendida, mas condeno radicalmente o fato de o projeto ter sido apresentado do jeito que foi. Obviamente tem de empreender, porque o Cais não pode ficar da maneira que está, um antro de marginais, mas o modelo de uso e ocupação do solo para a região não tem de ser o oferecido pelo Consórcio.
IHU On-Line – Que uso a população faz atualmente da área do Cais Estelita?
Tomás Lapa – O Cais é bordeado por uma avenida de grande circulação, e quando nos referimos ao Cais Estelita, nos referimos a todo o antigo pátio de manobras da RFFSA, que está situado nessa borda.
IHU On-Line – Como surgiu a proposta de construir as torres na região do Cais Estelita?
Tomás Lapa – O território do município do Recife é muito pequeno se comparado a outros da região, e o setor imobiliário vive de olho em possíveis terrenos para empreender. Por outro lado, o grande pretexto do setor imobiliário, de verticalizar a cidade, está baseado nessa exiguidade de terrenos.
Empreendimento Recife-Olinda
Desde o início dos anos 2000, uma das gestões do governo do Estado quis empreender a Frente Atlântica, como eles chamaram, que é a área que vem desde Olinda até o trecho chamado Cabanga, no Recife, ou seja, toda essa frente que corresponde a 6 ou 7 quilômetros. A proposta do governo do Estado era submeter a coordenação desse projeto a um grupo que esteve à frente da Expo em Portugal, quando fizeram aquele grande projeto de requalificação do Porto, em Lisboa. Mas nós sabemos que aquele projeto não englobava as áreas urbanas nem as áreas históricas, ao contrário, era um projeto a ser realizado numa área decadente e desocupada. No caso brasileiro, esse projeto chamado Recife-Olinda envolveu várias gestões das prefeituras de Recife e Olinda e os governos estaduais e federal. Havia uma megaoperação prevista para que se atribuísse autoridade a esse grupo português para que eles ficassem à vontade a fim de negociar os terrenos, fazer desapropriações, etc. Era algo gigantesco, que assustou a todos nós.
Houve um debate na Universidade Federal de Pernambuco, onde o projeto foi duramente criticado e condenado. Não acredito que, por fim, o projeto não tenha sido desenvolvido porque a universidade o criticou duramente, mas era preciso que o Recife estivesse numa situação tão privilegiada de crescimento e desenvolvimento que justificasse a necessidade daquela operação. Como esse tipo de empreendimento, obrigatoriamente, está vinculado a uma gestão de governo, certamente o próximo governador não iria encampar a ideia da obra.
Pernambuco começou a aparecer no cenário nacional, sobretudo durante a gestão de Eduardo Campos, a partir de 2006, quando o estado começou a crescer mais que a média nacional, porque ele conseguiu muitas benesses do governo Lula. Mas todas essas promessas feitas no governo Lula foram travadas quando Eduardo Campos se contrapôs ao governo Dilma, e imediatamente ela começou a fechar as “torneiras para cá”. Depois, com a morte dele e agora com esse impasse econômico que enfrentamos, as coisas estão paralisadas. O Brasil todo está assim, e nós, que experimentávamos um ritmo maior que o do Brasil, estamos numa situação muito crítica.
Empreendimento no Cais Estelita
Sem a saída do projeto Recife-Olinda, o setor imobiliário guardou a ideia de empreender massivamente em toda a Frente Atlântica, e em 2005, finalmente, foi aprovada a construção das duas torres de Santa Rita, que, na sequência da borda fluviomarinha, é a que precede o cais Estelita. O Consórcio responsável pelo empreendimento conseguiu, de uma maneira impressionantemente irregular, construir duas torres de 41 pavimentos nesse trecho de Santa Rita, que antecede o Cais Estelita.
À época, quando esse projeto foi aprovado pelo Conselho de Desenvolvimento Urbano da Cidade do Recife – CDU, eu era representante do programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano. Apesar de ter havido três votos contrários à obra, todos louvaram visivelmente a iniciativa, colocando louvores ao projeto e dizendo que as duas torres eram a ponta de lança de um grande projeto que se estenderia por todo o Cais Estelita e que seria a redenção do bairro de São José, que fica imediatamente por trás dessa borda d’água.
O bairro de São José é a ponta da Ilha de Antônio Vaz, que foi objeto do plano urbanístico da Mauritsstadt (Cidade Maurícia), de autoria de Pieter Post, quando da vinda de Maurício de Nassau. O plano foi celebrado como pioneiro nas Américas, mas na verdade não chegou a ser implantado porque quando os holandeses foram expulsos, os portugueses não quiseram dar continuidade ao modelo de urbanização holandês. Esse era um modelo baseado nas cidades italianas, cidades renascentistas, enquanto Portugal ainda trabalhava com modelos medievais de ruelas apertadas, como é o caso do bairro de São José. Na área central, esse bairro é, de fato, a zona mais antiga que conserva características ainda mais autênticas dos séculos XVIII, XIX e XX.
IHU On-Line – Como esse empreendimento irá afetar o Cais José Estelita e o bairro histórico de São José?
Tomás Lapa – Essas duas torres são uma aberração na borda do bairro São José. À época, elas foram construídas num ritmo alucinante: saía uma liminar proibindo, o Consórcio parava as obras, mas como você sabe, as liminares são fáceis de serem derrubadas e aí, quando a liminar era derrubada, eles retomavam correndo a obra, construindo três, quatro pavimentos de uma vez. E assim foi feito. As duas torres existem e até onde eu sei, elas nunca foram regularizadas. Elas estão sob júri ainda, mas a justiça não age e parte do princípio do fato consumado, de modo que está longe de as torres serem retiradas — se fosse no Japão, elas já teriam sido retiradas.
Construção das torres
A construção dessas torres é um ataque à cidade, em que não prevalece mais o modelo de ocupar lote por lote, mas a tática é de ocupar grandes glebas, ou seja, implantar pequenas cidades dentro da cidade. Mas essas glebas nunca são devidamente articuladas com o tecido e a paisagem e com os aspectos sociais da população preexistente. É sempre algo que vem como símbolo do progresso e que vem para obscurecer o preexistente. Depois da construção das duas torres, insistiram com um projeto e em 2008 estavam voltados para a área do pátio ferroviário. A União recebeu essa área, mas precisava transformá-la em dinheiro para pagar as obrigações trabalhistas da RFFSA, então quis repassar a área ao governo do Estado. Isso aconteceu quando Eduardo Campos estava chegando ao poder. Ele não visualizou ali nada que viesse a somar à visão progressista e ao grande projeto presidencial dele. Assim, repassou a responsabilidade da área para a municipalidade, e foi na gestão de João Paulo, do PT, que se deu início às gestões para que essa área viesse a ser leiloada. Terminando a gestão de João Paulo e iniciando a gestão de João da Costa, a área foi leiloada.
O Consórcio adquiriu essa área, mas existe uma ação civil pública correndo nos níveis estadual e federal questionando a lisura desse consórcio. Em seguida, no dia 30 de dezembro de 2008 foi aprovada uma versão do Plano Diretor da cidade, sendo que no dia 28 de dezembro, dois dias antes, o consórcio foi avisado da mudança da lei, e protocolou a intenção de um projeto, porque não havia projeto. Quatro anos depois, de 2011 para 2012, esse projeto foi apresentado ao CDU, dentro de um ambiente muito tumultuado, porque, diga-se de passagem, o CDU é uma organização composta 50% por representantes do poder público e 50% por representantes da sociedade civil. Mas, na verdade, massivamente a opinião que prevalece é a do poder público, porque além de eles terem os 50% e todos votarem unanimemente na posição da prefeitura — embora alguns técnicos não concordem com a posição da prefeitura —, eles nos dizem que são intimidados e coagidos a votar dessa maneira. Nesse contexto, é muito difícil e impraticável que algumas instituições como o Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB, o Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano, a Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais e o Conselho de Arquitetura e Urbanismo, que têm uma palavra abalizada a dar sobre questões urbanas, possam vencer.
Então, perdemos a votação e o projeto foi aprovado. Nós pedimos vista, e paralelamente foram montadas ações civis, mas antes de encerrar o ano, em 28 de dezembro de 2012, aprovaram o projeto. Terminou então a gestão de João da Costa e iniciou a gestão de Geraldo Júlio, que é o preposto de Eduardo Campos. Ele foi votado pelo sufrágio universal, não se sabe de nenhuma fraude, mas ele foi imposto de cima para baixo por Eduardo Campos, de tal maneira que quando ele estava concorrendo à eleição municipal, o slogan da campanha dele era: “Vocês sabem que fez isso e aquilo? Foi Geraldo Júlio, quando foi secretário do governo Eduardo Campos”. Foi uma gozação tão grande, porque parecia que tudo que havia sido feito em Recife tinha sido feito por Geraldo Júlio. Mas com aquele marketing todo, e com aquele discurso da nova política de Eduardo Campos, o povo foi levado a acreditar que o Recife precisava, de fato, de um grande gestor e tocador de obras, que é o caso de Geraldo Júlio, que não tem nenhuma vocação política para o cargo, não se expressa bem, é um técnico do Tribunal de Contas e que não tem nenhum jogo político.
Então, no início estávamos tendo fé de que o projeto, que foi aprovado de forma tão irregular, pudesse ser analisado à luz da justiça, mas percebemos que a habilidade de Geraldo Júlio consiste em engabelar, contar abobrinhas e “empurrar com a barriga”. Ele nomeou um secretário que não é da área urbanística, mas que se apropriou de um vocabulário técnico, é um homem que se expressa bem. Depois, da gestão de Geraldo Júlio para frente, só tivemos decepções. A coisa chegou num nível em que a construtora se sentiu muito encorajada e numa noite levou os tratores e os buldôzeres para o Cais e começou a demolir um dos galpões industriais que armazenava melaço.
Essa área que pertence ao antigo pátio de manobras tem um valor patrimonial, mas infelizmente para nós que lutamos, ela não tem uma edificação histórica que tenha sido conservada, não tem a antiga estação, não tem oficinas funcionando com acervo, com material que valesse a pena guardar como patrimônio ferroviário. O que restou do ponto de vista material está muito dilapidado e muito fragmentando. O valor histórico é o fato de sabermos que naquele pátio foi inaugurada a segunda linha ferroviária urbana do Brasil. Dom Pedro, durante sua visita ao Recife em 1859, inaugurou um trecho de ferrovia até a cidade do Cabo de Santo Agostinho em uma extensão de algumas dezenas de quilômetros, que ligava o Recife à área do Cabo de Santo Agostinho, que é o município onde tradicionalmente existem muitos engenhos de açúcar, engenhos que se transformaram também em usinas, e é onde atualmente está situado o complexo industrial portuário de Suape.
IHU On-Line – Em maio completou-se um ano da criação do Movimento Ocupe Estelita. Em que consiste o movimento e quais suas conquistas ao longo deste ano?
Tomás Lapa – Na noite em que o Consórcio decidiu demolir o galpão industrial, Sérgio Urt, que é fotógrafo e diretamente engajado no Movimento de Direitos Urbanos — ou pelo menos era, porque houve cisão no Movimento de Direitos Urbanos —, fotografou e denunciou a demolição do galpão e disse que o Consórcio não poderia fazer aquilo. Sérgio foi agredido por seguranças, levou “borrachadas” e isso desencadeou todo o movimento, pois no dia seguinte o pessoal estava acampando e ocupando o Cais Estelita. Depois dessa tentativa do Ocupe Estelita, a situação radicalizou-se muito e chegou num ponto em que o Consórcio, impaciente, pressionou o governo do Estado. A essa altura Eduardo Campos havia se exonerado para fazer sua campanha presidencial, então o vice-governador, João Lyra, mandou a polícia fazer a reintegração de posse com violência.
Depois dessa situação houve uma radicalização tremenda, e o prefeito, diante da opinião pública que começava a se agitar, organizou algumas rodadas de reuniões com os reitores das universidades. Participaram o reitor da Universidade Federal de Pernambuco, o reitor da universidade católica, membros do Instituto de Arquitetos do Brasil em Pernambuco – IAB-PE, o presidente da OAB, os presidentes de várias ONGs voltadas para a questão urbana, integrantes do Observatório do Recife. Eu estive presente nessas reuniões, mas não tinha voz de frente, porque apesar de eu ser um dos representantes do PPG, com o reitor estando presente a palavra era dele. Então você pode imaginar que a reunião transcorreu em um clima que buscava, no mínimo, certa diplomacia, com reitores falando, mas eles não são pessoas acostumadas à desfaçatez cotidiana do poder público municipal.
Dois projetos de urbanização
Durante essa reunião foi colocado para o prefeito a questão de que aquela era uma oportunidade rara de refletirmos o modelo de uso e ocupação do solo, o modelo de fazer cidade, em uma cidade comprometida como o Recife, uma cidade que não oferece segurança e onde a mobilidade está cada vez mais reduzida. De modo geral foi colocado para o prefeito que ele poderia se inscrever na história como um Pelópidas Silveira, que foi um prefeito dos anos 1950, no mesmo momento em que Miguel Arraes estava na sua primeira gestão, com uma visão socializante muito correta, ou como um Augusto Lucena, que foi um dos primeiros prefeitos da era biônica, durante o governo militar dos anos 1960, que agiu com um autoritarismo terrível e destruiu pelo menos 1/3 do bairro de São José para criar uma avenida que hoje em dia é um problema, porque liga nada a coisa nenhuma.
Já tentaram de tudo para solucionar esse problema: criaram um camelódromo, já tentaram utilizar a avenida como terminal de ônibus, mas é uma lástima, é uma tristeza o modo como se destruiu o tecido do bairro de São José para construir essa avenida. Então, foi dito isso para o prefeito, de uma maneira até constrangedora para ele, de que iria se inscrever como reformador social ou como um destruidor da cidade, e ele não disse nenhum “ai” como resposta. Ele não se expressa, não tem desenvoltura política, se baseia nos pareceres dos assessores sempre a portas fechadas. Depois disso, chegamos a ir ao Ministério da Cultura para encontrar uma solução.
IHU On-Line – Como foi a reunião no Ministério da Cultura, em que se pediu o tombamento do Cais Estelita?
Tomás Lapa – O Ministro nos recebeu muito bem e colocou na reunião conosco um grupo do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, encabeçado pela presidente Jurema Machado. O Ministro se mostrou muito receptivo e não vou dizer que fez promessas, mas disse que iria se engajar no ambiente político e nas negociações para ver quais são as saídas possíveis. Agora, na realidade ele pediu que nós não divulgássemos o teor das conversas da reunião para que não houvesse interpretações erradas até eles se posicionarem sobre o tema, sobretudo o IPHAN.
O que posso dizer, de modo geral, é que existe uma fragilidade do ponto de vista do patrimônio material que há ali. As possibilidades finalmente apontam para um tombamento da paisagem cultural. Aí é possível imaginar como é complicada a questão da paisagem cultural, porque envolve muitos aspectos imateriais, e diante do interesse imediatista e material de lucro dos grupos imobiliários é muito difícil conseguir resultados em tempo recorde. Sobretudo porque, segundo o próprio Ministro, uma alternativa desse tipo, obrigatoriamente sugere alianças, consensos, e consenso nesse caso é uma coisa que está difícil.
O Consórcio sempre disse, desde o início, que não abre mão de nenhum metro quadrado do que eles projetaram. Então, se projetaram torres de 40, 50 pavimentos, para onde vão estes metros quadrados? Eles perguntam se queremos que preencham tudo com edifícios baixinhos, e dizem que se assim foi feito, vai ficar um negócio horroroso. São sempre argumentos muito falaciosos, sempre partindo da premissa de que aquele modelo é o bom, e qualquer outro será muito ruim.
IHU On-Line – Há uma previsão para receber uma resposta do Ministério da Cultura?
Tomás Lapa – Não. Não saímos de lá com respostas nesse sentido. O IPHAN é que tem as rédeas do processo na mão do ponto de vista técnico. Jurema Machado nos deu uma impressão muito segura de que está informada a fundo sobre o que está se passando, mas também das consequências sociais, políticas e econômicas de todo esse processo. Ela parece ser uma pessoa muito lúcida nas suas decisões e posições; é nesse sentido que continuamos alimentando certa esperança.
IHU On-Line – Mesmo sem a decisão final do IPHAN, o consórcio pode dar andamento à obra?
Tomás Lapa – Não pode, porque mesmo em relação aos elementos materiais, ainda há aspectos que estão sendo deliberados pelo IPHAN. A demolição dos galpões denunciada por Sérgio Urt ainda está sub judice.
IHU On-Line – Em que consistiria um plano urbanístico adequado na região do Cais Estelita?
Tomás Lapa – Um Plano Urbanístico para aquela área do Cais Estelita tem que, antes de tudo, estar baseado em princípios norteadores. Esses princípios foram colocados em audiência pública e a prefeitura tomou conhecimento disso, mas como eu lhe disse, é impressionante como a prefeitura pega essas informações e as distorce, faz uma maquiagem julgando que pode levar técnicos experimentados na conversa.
Um Plano Urbanístico deveria levar em conta, predominantemente, primordialmente, a diversidade de usos. São José é um bairro que tem essa característica de diversidade de usos: comércio, habitação, serviços, que sempre foi a vocação do Recife. O projeto proposto cria guetos: torres de alto nível, torres de uso residencial, assim como torres de uso empresarial, mas não há um mix de usos. É sabido que esse mix de usos se torna muito mais difícil na medida em que se verticaliza a cidade. Não é como quando há um tecido como o de Copacabana, Ipanema, Leblon, Flamengo, Largo do Machado, no Rio de Janeiro, em que é possível sonhar com urbanidade.
Urbanização da cidade
Urbanidade é essa característica de uma cidade que permite que as pessoas sejam os próprios fiscais das ruas, que as pessoas circulem nas ruas, que se encontrem naqueles pontos de encontro, como largos, praças, espaços públicos, nas esquinas. Busca-se, ou tem que se buscar em um Plano Urbanístico desses, um efeito tal que permita urbanidade na cidade, e isso, na minha leitura, é dado inicialmente pela diversidade de usos, pela integração dos usos. Do ponto de vista da forma, qualquer que venha a ser o projeto, o desenho urbano que se estabeleça, por mais inovador que seja, deve levar em consideração os principais eixos que já partem do bairro de São José. Porque o verde que o projeto propõe é um verde privado; é verde para a cidade respirar, mas não é verde para a cidade usufruir como área de contemplação, de lazer e assim por diante.
Ainda do ponto de vista da forma e ao mesmo tempo respondendo a uma questão primordial, nada que venha a ser construído ali deve ultrapassar os pontos mais altos das torres das igrejas preexistentes do bairro de São José. Dessa forma, a igreja de São José e a Basílica da Penha são dois pontos de leitura obrigatória no skyline preexistente, no que está lá. Além dessa preocupação da integração do tecido, integração social e de usos, tem de se prestar atenção para não obscurecer, não abafar e não criar uma barreira, uma cortina entre o que está por trás e a borda d’água, porque a paisagem do Recife — e isso está dito no Código do Meio Ambiente e do Equilíbrio Ecológico da cidade do Recife, que é uma lei exigente — é essencialmente definida pela relação entre o ambiente construído e as bordas d’água. Então, é necessário que o que vier a ser construído permita o descortino generoso das superfícies aquáticas.
Além desses três ou quatro critérios básicos que coloquei, há reivindicações também de que o projeto venha a contemplar certo percentual de habitação. Não se trata de Minha Casa Minha Vida, mas de habitação com certo cunho social, porque o que o Consórcio propõe é a construção de guetos de alto luxo através de torres monofuncionais residenciais ou empresariais.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Tomás Lapa – Posso dizer, à guisa de arremate, o seguinte: diante das pessoas que me perguntam qual é a minha opinião no sentido de se este projeto será construído ou não, seria muito importante que nós aproveitássemos de fato a ocasião para definir uma inflexão no modelo de fazer cidade, no modelo de uso e ocupação do solo. Se não conseguirmos barrar o projeto atual integralmente, será sempre aquela história: eu me darei por contente de ter contribuído, junto com tantos outros, para incutir na cabeça das jovens gerações, mas também na cabeça dos adultos, essa preocupação de que as transformações radicais da cidade não podem acontecer unilateralmente num tempo curto demais, sem levar em conta a significância do bem, do objeto, do sítio histórico, do lugar para a população de modo geral.