Decisão da Justiça determina a realização de audiências públicas para o plano diretor de Florianópolis e nova votação
Por Elaine Tavares, em Palavras Insurgentes
No último dia 05 de março, saiu a sentença, assinada pelo juiz federal, Marcelo Krás Borges, sobre a ação civil pública do Ministério Público Federal contra a prefeitura de Florianópolis, sobre o Plano Diretor da cidade, que foi votado no apagar das luzes de 2014, de forma polêmica e irregular. Tudo o que fora denunciado pelas entidades e pela comunidade que se mobilizou em protestos foi respaldado pelo juiz. O plano terá de passar pelas audiências públicas, com consequente nova votação na Câmara. É uma grande vitória das gentes de Florianópolis, afinal, não é todo o dia que o judiciário rima com Justiça.
A mídia catarinense divulgou de maneira tímida a decisão de que deverão ser feitas as audiências, conforme exigiam as comunidades, e, de certa forma ocultou a riqueza dos argumentos do juiz Marcelo Borges, ao proferir a sentença. Por isso, recuperamos aqui boa parte do documento, que tem 11 páginas, para que a cidade saiba que aquilo que foi denunciado tem amparo também na letra fria da lei. Não dá para esquecer que nas duas votações, realizadas de maneira irregular pela Câmara de Vereadores, a comunidade organizada participou, protestou e até apanhou da polícia, como sempre acontece quando a maioria reivindica direitos. Alguns desses manifestantes terão cicatrizes para sempre, mas elas também servirão para mostrar que a luta não foi em vão.
Os fatos
Na ação, finalmente julgada agora em março, o MPF pleiteava que a Câmara de Vereadores devolvesse o Projeto de Lei do Plano Diretor ao Poder Executivo Municipal e que a prefeitura realizasse as audiências públicas obrigatórias. É bom lembrar que o projeto foi votado, sem que nem os próprios vereadores conhecessem o conteúdo das mais de 600 novas emendas que foram agregadas. E, conforme a lei, se há mudanças, a comunidade deve ser ouvida novamente. Além disso, muitas das contribuições feitas durante o processo participativo também ficaram de fora.
Por conta disso, o Ministério Público Federal insistiu que as audiências fossem feitas e que a União fiscalizasse o estrito cumprimento da Lei do Estatuto das Cidades, já que o mesmo define a participação efetiva da população na elaboração do Plano Diretor. Em Florianópolis, o processo aconteceu durante sete anos, mas sempre entre marchas e contramarchas, e acabou atropelado pelo prefeito César Souza Jr, bem como pela maioria dos vereadores.
A ação contra a prefeitura tramitou e o executivo apresentou sua defesa alegando que o processo teve ampla participação popular e que a polêmica só estava dada por conta da “ideologização” do tema, uma vez que muitos dos representantes comunitárias tinham sido candidatos nas últimas eleições. Argumento sofrível.
Cumpridos todos os ritos, o processo teve então a sua sentença final nesse dia cinco. Nele, o juiz entende que persiste o interesse da sociedade de participar de audiências públicas, a fim de que haja uma nova votação do Plano Diretor, na qual seja respeitado o direito ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. Diz ainda que nada impede que a prefeitura realize as treze audiências públicas solicitadas, vindo a Câmara de Vereadores a reapreciar o Plano Diretor já aprovado. “Com efeito, o próprio prefeito declarou publicamente que o Plano Diretor poderia ser reavaliado este ano, não havendo qualquer impossibilidade por parte da Câmara de Vereadores na reapreciação da matéria”.
Sobre a alegação, por parte da prefeitura, de ilegitimidade de participação da União na fiscalização do Plano, o juiz não acata, argumentando que, conforme a Constituição: “Todos têm o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Logo, fica claro que todos os entes da federação têm a obrigação de defender o meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Entende ainda o juiz que foi por isso mesmo que a União Federal teve a iniciativa de editar o Estatuto das Cidades, no qual foi criado o conceito de cidades sustentáveis. “Com efeito, no passado, as grandes cidades possuíam uma maior qualidade de vida. Florianópolis, por exemplo, não possuía problemas de mobilidade urbana e todas as suas praias eram limpas. Com o crescimento desordenado e sem planejamento, o trânsito tornou-se caótico e muitas praias, tais como em Coqueiros, Estreito e Beira-Mar Norte, tornaram-se quase totalmente poluídas, em face do grande crescimento e da ausência de obras sanitárias. Assim, revelou-se a necessidade de a União defender a sustentabilidade dos espaços urbanos, o que culminou na edição do Estatuto das Cidades e obrigou os municípios a uma gestão participativa do espaço urbano, a fim de que não fosse privilegiado apenas o desenvolvimento econômico, mas também o meio ambiente sadio, como prevê a Carta Magna”.
O juiz esclarece que, com base nesses exemplo, é patente que o Município de Florianópolis deixou de cumprir as disposições expressas do Plano Diretor, tornando mais vulnerável o direito fundamental ao meio ambiente sadio, o qual deve ser defendido por todos os entes federativos. “A União tem investido centenas de bilhões em saneamento básico, mobilidade urbana e mais outros milhões de reais nas Conferências Nacionais das Cidades, justamente para instruir os Municípios a criar uma gestão participativa e democrática. Ora, é obrigação da União instruir e coordenar os municípios, a fim de que respeitem o Estatuto das Cidades, de modo a tornar sustentável o município de Florianópolis”.
Segundo ele, a partir dos ensinamentos do Desembargador Federal Antônio Albino Ramos de Oliveira, não existe um meio ambiente exclusivamente municipal, e sim um meio ambiente único, a cujo equilíbrio ecológico todos têm direito. Por isso, compete também à União defendê-lo, mesmo na esfera municipal. E que o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado não diz respeito apenas à proteção de matas, floras e da fauna, mas também ao espaço urbano onde vive a maioria da população. “Desta forma, revela-se evidente a legitimidade da União, inscrita expressamente na Constituição Federal, eis que um Plano Diretor no qual não há consulta à população por meio de audiências públicas pode vir a prejudicar bens da União, tal como autorizar projetos de construção em manguezais e áreas de restinga, bem como estimular a ocupação em praias e outras áreas de preservação permanente de interesse direto da União”, diz a sentença.
Para o juiz Márcio Borges, o prefeito comete ato de improbidade administrativa quando impede ou deixa de garantir os requisitos contidos nos incs. I a III do §4º do art. 40 do Estatuto da Cidade, que define a necessidade de audiências públicas sobre o Plano Diretor, a publicidade dos documento e o acesso público a eles, coisa que não foi cumprida no caso das 600 emendas. Alega que: “não existe verdadeira democracia, nem Estado Democrático de Direito, se não for possibilitada a efetiva participação popular por meio de audiências públicas quando da elaboração do Plano Diretor”.
Na sentença, rejeita também a argumentação da prefeitura de que seria a Câmara de Vereadores a que deveria ser citada: “A Câmara de Vereadores não possui personalidade jurídica própria. Não se está discutindo no processo os interesses institucionais de seus membros, mas sim o direito da sociedade em participar democraticamente da elaboração do Plano Diretor. Não se está discutindo nenhum ato ‘interna corporis’, até porque a votação do Plano Diretor foi um fato superveniente que não está descrito na petição inicial. Assim, não há sentido em se exigir a citação da Câmara de Vereadores, eis que a ilegalidade foi cometida pelo Município de Florianópolis, não estando descrito na petição inicial nenhum ato ilegal cometido pela Câmara de Vereadores”. Insiste ainda que mesmo a autonomia municipal não é um princípio absoluto, ilimitado, quando o que está em jogo é um direito fundamental da sociedade.
Alega ainda, na sentença, que o Município de Florianópolis tenta alterar a verdade dos fatos ao dizer que houve sete anos de debate. O tempo do processo é verdadeiro, mas “o Ministério Público Federal trouxe provas documentais inequívocas de que em 2008 o IPUF desmontou as estruturas dos núcleos distritais e deixou de convocar as reuniões do Núcleo Gestor, justamente quando estava sendo preparada audiência pública para discutir o anteprojeto”.
Segue a argumentação do juiz: “Assim sendo, houve uma interrupção e se iniciou um processo de elaboração totalmente novo. Tais fatos estão amplamente documentados e são públicos e notórios, tendo o Ministério Público Federal já naquela época exigido a realização de audiência pública para análise e debate sobre o anteprojeto, para cumprimento do requisito essencial da participação legítima da sociedade.
Sobre a atuação da nova administração, de César Souza Jr, reconhece que houve uma retomada do processo, mas que isso não garantiu a participação popular. “Com efeito, o Município alega que houve um clima de enfrentamento ideológico e que novamente o Núcleo Gestor teve que ser dissolvido. Ora, a finalidade das audiências públicas é justamente que todas as correntes políticas e ideológicas possam ter liberdade de expressão para discutir, contestar, expor suas inconformidades, como em uma democracia verdadeira. Se não é aberto espaço para a expressão do pluralismo político, não há uma real democracia. Mesmo entidades minoritárias, em uma democracia, tem o direito de manifestar sua opinião quando está em discussão o planejamento de toda uma cidade”.
Segue a sentença: “Assim sendo, revela-se falacioso o argumento de que houve mais de sete anos de discussões. As dezenas de reuniões, oficinais setoriais e outros eventos realizados não podem ser equiparados a audiências públicas. Mesmo que o Município tenha realizado mais de uma centena de reuniões, tais reuniões não obedeceram ao Princípio da Publicidade, não tiveram seu objeto de discussão previamente noticiado, a fim de que a população pudesse participar e discutir preparada tecnicamente”.
Observa ainda que “o próprio Município de Florianópolis confessou em sua contestação que suprimiu o direito à participação da sociedade alegando várias justificativas, tais como burocratização excessiva, problemas de proporcionalidade da representatividade, entre outros. Ora, o Núcleo Gestor foi criado pela própria prefeitura. Sua forma de organização e representação tem origem no próprio Decreto Municipal antes citado. Assim, jamais poderia tal processo de participação ter sido abortado em razão das mais diversificadas desculpas”.
Para o juiz, as audiências setoriais e as oficinas técnicas que a prefeitura alega ter feito não se constituem em Audiências Públicas, com todos os ritos que elas implicam. Logo, entende que o município não respeitou a lei. “Se o Estatuto das Cidades estabelece a realização de audiências públicas para real efetivação da participação, não há como o Município querer fraudar o Estatuto das Cidades, realizando oficinas técnicas justamente para afastar os oponentes políticos dos debates. Tal ardil fraudulento impede o pluralismo de ideias e a verdadeira democracia, a qual somente pode ser possibilitada pela efetiva participação popular”.
Diz ainda que “a finalidade das audiências públicas não é apresentar para a população o anteprojeto do Plano Diretor e sim discuti-lo democraticamente, o que não foi realizado. Somente após a votação pela Câmara de Vereadores é que as comunidades de bairros ficaram conhecendo o verdadeiro conteúdo do novo Plano Diretor e como tal Plano impactaria a sua vida. Tal fato é público e notório. Como é possível chamar isso de participação democrática? Estivéssemos em pleno regime militar, tal procedimento ainda seria plausível, já que naquele tempo não era estimulado o livre debate de ideias. Todavia, nos dias de hoje, a pública e notória supressão do debate sobre um projeto de lei tão importante revela que ainda existe um preconceito sobre o exercício da participação popular. Desse modo, tenho que foi claramente violada a Constituição em seu artigo 1º, caput, que assegura a participação da população no processo democrático”.
O juiz aponta ainda que a União deve ter uma fiscalização mais dura no que diz respeito ao Estatuto da Cidade: “de nada adianta criar o Estatuto das Cidades, dispender bilhões em obras sanitárias e de mobilidade urbana, mas simplesmente concordar com a criação de um Plano Diretor sem qualquer participação popular. Assim, a evidente violação da Constituição impõe uma atitude mais ativa da União no futuro, de modo a prevenir e não apenas reparar danos ambientais que irão certamente ocorrer em um futuro próximo, notadamente em bens pertencentes à União, tais como manguezais e vegetação de restinga”.
Assim, julga procedente a ação do MPF e determina que se realizem, em 60 dias, as Audiências Públicas sobre o Plano Diretor, com ampla divulgação e incorporando o que foi discutido nas comunidades bem como as propostas do executivo. Condena também a União a orientar e fiscalizar o estrito cumprimento da Lei do Estatuto da Cidade e das Resoluções relacionadas ao processo participativo para elaboração do Plano Diretor de Florianópolis, adotando as providências extrajudiciais e judiciais necessárias para tanto. Fixa ainda uma multa de 10.000.000,00 (dez milhões de reais) para hipótese de descumprimento da sentença, salientando que o prefeito municipal incorrerá em improbidade administrativa em caso de descumprimento.
A prefeitura ainda tentou reverter, mas perdeu. A sentença foi mantida pelo TRF em 26 de maio.
Dito isso, agora é acompanhar as audiências e fazer valer a voz da comunidade. A luta de toda a gente que se envolveu com a discussão do plano ainda não acabou. Mãos à obra, então.
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Destaque: “Comunidade lutou, protestou e enfrentou a polícia… mas, a luta segue”