Este é o segundo artigo de uma série sobre tecnologia da informação e comunicação nas favelas do Rio, do pesquisador convidado Jeffrey Omari*
Rio On Watch
Durante uma visita recente ao Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio, um amigo e morador da comunidade me levou para conhecer a favela. Foi a minha primeira vez na Maré e meu amigo sugeriu que eu mantivesse meu smartphone no bolso, enquanto caminhávamos pela favela. Eu sabia que o clima político na Maré estava delicado por causa da disputa entre as facções rivais e a ocupação militar. No entanto, como um recém-chegado à favela, eu não tinha de verdade conhecimento das tensões da Maré. Meu amigo disse que poderia usar o meu telefone em lugares privados e espaços semi-públicos (dentro de lojas, restaurantes, bares, etc.), mas em espaços públicos era muito arriscado.
Claro, eu era um estrangeiro, um estranho na comunidade, então talvez houvessem regras diferentes aplicadas a mim? No entanto, quando indaguei, meu amigo me garantiu que muitos moradores se abstêm de utilizar seus telefones celulares em público. Enquanto caminhávamos pela favela, observei que algumas pessoas (principalmente moradores) usavam livremente seus telefones celulares em público. Ainda assim –dado que o celular é o principal modo de acesso à internet nas comunidades, garantida pela recente proliferação dos dispositivos por todo o Brasil inclusive nas favelas– o uso público de telefones celulares não foi tão grande quanto eu esperava em uma comunidade do tamanho da Maré.
Embora meu amigo nunca tenha me explicado totalmente a razão pela qual muitos moradores da Maré não utilizem os seus celulares em público, a controvérsia recente em torno da página da Maré no Facebook, Maré Vive, nos ajuda a entender o porquê. Desde seu início em março de 2014, Maré Vive tornou-se uma referência para notícias e informações sobre a vida na favela. Tal como acontece com a maioria das favelas do Rio, o acesso à internet tornou-se quase onipresente na Maré e a maioria dos moradores da Maré acessam a web através dos celulares, em vez de desktops, laptops ou tablets.
No Brasil, no entanto, encargos com SMS e mensagens de texto de operadoras são frequentemente muito caros. Assim, acessar a internet através do celular e o uso do WhatsApp, comprada pelo Facebook, é muito popular, e, na prática, quase obrigatório. Problemas para o Maré Vive surgiram quando alguém começou uma falsa página no Facebook usando o nome da Maré Vive com mensagens denunciando vários traficantes da Maré. Estas mensagens depreciativas incluindo fotos de muitos dos traficantes em questão não fizeram nenhum link ou citação de fonte (ou seja, para a falsa página do Facebook Maré Vive), e foram compartilhadas via WhatsApp usando a hashtag #marevive. Não é preciso dizer que os traficantes não ficaram felizes. Os criadores da página original do Maré Vive no Facebook passaram a receber ameaças de morte e logo em seguida os traficantes começaram o policiamento dos telefones celulares dos moradores com esperanças de encontrar os informantes.
Inclusão Digital
O medo de represálias por causa de mensagens em mídias sociais não é algo específico nas favelas do Rio. Pesquisas mostram casos semelhantes de censura relacionados com o tráfico em outras regiões, inclusive Vitória, ES. No entanto, ao contrário das favelas de Vitória, as favelas do Rio estão atualmente passando por programas de pacificação com o objetivo de desarmar e recuperar territórios controlados por facções, e ao mesmo tempo, com a intenção de oferecer programas que melhorem a infraestrutura e o fortalecimento dos serviços sociais.
Embora favelas, como a Maré, tiveram sucesso limitado apenas com a ocupação policial, a inclusão digital –a ideia de que o maior acesso à tecnologia pode ser um benefício para a sociedade, servindo como um meio para aumentar a participação democrática, ajudar a reduzir a violência, e incorporar as favelas na economia formal do Brasil– continua sendo fundamental para os esforços do Estado para redefinir as condições econômicas e políticas em favelas.
Enquanto a pacificação facilita a segurança necessária para a controversa gentrificação, o recente aumento do uso do telefone celular no Brasil ajuda a alcançar as metas de inclusão digital. A Prefeitura do Rio, por sua vez, está lançando o que aparenta ser um programa ambicioso para promover a inclusão digital com a sua nova iniciativa, a “Praça do Conhecimento”. Segundo o secretário de Ciência e Tecnologia, do Rio, Franklin Dias Coelho, as vastas desigualdades econômicas no Rio resultam em uma cidade que é “não só socialmente fragmentada, mas também digitalmente, em termos de oportunidade, informação e conhecimento”.
Situadas perto de favelas e outros bairros marginalizados com a necessidade de mais recursos tecnológicos, as “Praças do Conhecimento” são centros comunitários de alta tecnologia que visam promover a inclusão digital e democrática, conectando moradores locais ao mundo digital com acesso público gratuito à internet através de laptops, tablets, conhecimento e treinamento digitais. Além de fazer avançar a inclusão digital, um objetivo mais amplo dessa estratégia é fazer com que o Rio seja uma”cidade inteligente”, que inclua uma moderníssima infraestrutura de telecomunicações, que facilita a “Internet das Coisas” (um desenvolvimento da internet em que objetos do cotidiano têm conectividade em rede), e constrói “Comunidades Inteligentes” (aquelas que incorporam regularmente inovações tecnológicas em suas vidas no dia-a-dia).
Com a realização de um acesso mais amplo à internet vem o impulso corporativo para capitalizar, e empresas como a Microsoft, Google, Facebook tomaram a frente. Embora a meta de aumento dos lucros é sempre um forte incentivo, por outro lado o Facebook fez uma parceria com o governo brasileiro com o objetivo de utilizar a inclusão digital para aumentar o acesso a serviços públicos, como saúde, educação, cultura, trabalho e tecnologia. O programa contribui com o aumento do nível de alfabetização tradicional e também com o acesso à emprego na economia formal. Como parte de sua estratégia de inclusão digital, o primeiro projeto do Facebook tem como alvo uma favela em São Paulo, Heliópolis, e implementa um serviço de internet sem fio de alta velocidade livre.
Embora haja um empurrão de ambos, do governo e das corporações, para um acesso mais tecnológico em favelas, o exemplo do Complexo da Maré ilustra que a inclusão digital não é uma tarefa simples e está ligada a uma série de realidades e riscos sócio-políticos mais amplos. De fato, eu falei com vários moradores que expressaram suas dúvidas sobre a capacidade de tecnologia resolver as desigualdades nas favelas. Ao mesmo tempo, no entanto, eles transmitiram a esperança no potencial da inclusão digital incluírem suas comunidades, economicamente e politicamente, nos assuntos do Estado. Certamente, aumentando o acesso à oportunidades nas áreas de emprego, ativismo, consumo de mídia, educação, acesso aos serviços públicos, e cobertura independente de notícias, a inclusão digital tem o potencial de abrir as portas para a democracia. Nosso exemplo da Maré também mostra que a meta do Estado para inclusão mais ampla, muitas vezes, pode se chocar com as realidades do acesso tecnológico em favelas. Com efeito, no que se refere à repressão na Maré, os sonhos de democracia são, por vezes, adiados.
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*Doutorando da Universidade da Califórnia, Santa Cruz, Jeffrey Omari estuda o acesso à internet e direito digital no Rio de Janeiro.