Entrevista de Raul Fitipaldi, a Daniela Félix, para o Portal Desacato
Laerte Bessa, Deputado Federal por Paraná, entregou ontem, 9 de junho de 2015, um parecer em defesa da redução da maioridade penal de 18 a 16 anos de idade. A peça será lida hoje, quarta-feira 10 de junho, e poderá ser votado para depois passar aos plenários, tanto da Câmara como do Senado Nacional.
A abordagem midiática monopólica tenciona o debate no sentido da punição ao infrator como solução à criminalidade e insegurança que inquieta à sociedade. O Portal Desacato que já se tem posicionou enquanto veículo, contrário a esta Proposta de Emenda à Constituição, no entanto, procurou conversar com uma referência no âmbito catarinense no assunto para abrir, mais ainda, o debate com e entre nossos leitores.
A seguir a *entrevista realizada a Daniela Felix, advogada e professora substituta na UFSC, professora no IES, FASC e CESUSC, Mestre em Direito e Membro da RENAP e do Coletivo Catarina de Advocacia Popular.
Desacato – Daniela, em 2012, o deputado catarinense Onofre Santo Agostini e outros, propuseram uma emenda à Constituição para reduzir a maioridade penal. Tomaram, sugestivamente, o exemplo dos Estados Unidos e da Inglaterra, onde não existe idade mínima para aplicação de penas. Esta proposta de Emenda foi arquivada em 31 de janeiro deste ano pela Mesa Diretora da Câmara de Deputados e foi desarquivada em fevereiro do presente ano. Que significa do ponto de vista social esta nova arremetida do Congresso pela redução da maioridade penal?
Daniela Félix – Temos uma tendência no Brasil, por conta principalmente da influência da “grande mídia” (ou mídia comercial) na construção do senso comum/opinião pública, de dar soluções milagrosas a problemas complexos e, via de regra, esta saída sempre é pela ampliação do Sistema de Justiça Criminal e controle penal. Então, sempre que ocorre um fato que envolve um adolescente – por certo um crime mediante violência ou grave ameaça, praticado por um adolescente não branco contra indivíduos das classes “A” e “B” –, que se torna “notícia” para essa mídia (que diz ser a voz da sociedade), o debate da redução da maioridade penal volta à ordem do dia e, além, passamos a respirar este assunto, não só pela mídia, mas no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas, Câmaras de Vereadores, no Boteco da Esquina, na Escola, nas Universidades, etc.
Nestes momentos Propostas de Emendas Constitucionais (PEC’s) são apresentadas por todos os lados, por diversos partidos de direita, centro e esquerda, com exceção daqueles partidos contrários, em sua própria formação, e que têm na sua base a defesa da infância e adolescência, e muitas vezes, devido ao apelo midiático e a urgência do tema, seus fundamentos são rasos e destituídos de análises sérias que se referem ao tema.
Ainda, é comum no Brasil a importação de modelos, principalmente no campo da política legislativa, sem quaisquer reflexões sobre de onde vêm (em grande parte nossas referências são sempre Estados Unidos ou Europa Ocidental, países desenvolvidos), quais as estruturas sociais do modelo que se pretende adaptar, ou seja, chegamos ao limite da irresponsabilidade às vezes, pois não é porque existe uma experiência de êxito num outro país, é que se torna viável aqui.
Temos esta herança positivista que nos impede compreender que a produção normativa necessita obrigatoriamente de ser pensada a partir do campo social e econômico. Para quem, para quê e de que forma? E é justamente isso que não existe neste debate.
Desacato – Juridicamente, as penas aos menores infratores já não estão previstas na Constituição?
Daniela Félix – Primeiramente, devemos tratar estes sujeitos como Crianças e Adolescentes, não como “menores”, e isso não se trata de arrogância acadêmica, mas a superação do tratamento dado pelo antigo “Código Menorista”, que tratava tão somente da repressão aos menores, que fora, por sua vez, substituído pela Constituição Federal de 1988 e, em 1990, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei nº 8.069/90), que muito embora preveja as medidas socioeducativas, tem uma ampliação de garantia de direitos específicas à infância e à juventude, que no direito denominamos de “teoria da proteção integral”, que vai desde a concepção até o momento que completa 18 anos.
No que se refere à pergunta, a legislação especial, dada pelo ECA, estabelece medidas socioeducativas, que, em tese, são diferentes de pena, mas que alcança a internação (que seria um regime fechado) por até 3 anos. Cabe recordar aqui o “demolido” São Lucas, que até fio desencapado tinha numa sala identificada pelos internos como sala de tortura, ou seja, a finalidade era de reeducação mediante tortura ou seus fins jamais foram cumpridos?
Nos termos do art. 112, do referido Estatuto, essas medidas são: “I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação de serviços à comunidade; IV – liberdade assistida; V – inserção em regime de semi-liberdade; VI – internação em estabelecimento educacional”.
Questiono se alguém já viu se discutir na mídia a implementação da obrigação de reparar o dano nas práticas de atos infracionais de adolescentes? Duvido!
Desacato – O Estatuto da Criança e do Adolescente não resulta ferido com esta proposta de emenda constitucional? Que possibilidade real de reabilitação tem um menor encarcerado?
Daniela Félix – Na minha análise acadêmica e militante, não só o Estatuto como a Constituição restam feridos. Tenho para mim que qualquer proposta de redução da maioridade penal é inconstitucional. Mesmo havendo divergências doutrinárias e jurisprudenciais, opto sempre pela garantia de direitos.
Já no que tange à real reabilitação de um adolescente encarcerado, não vejo qualquer possibilidade de melhoria na sua (re)socialização, pelo simples fato de que o cárcere não resgata qualquer sujeito, ao contrário, tem servido historicamente como espaço de contenção, violências e exclusão. Este cenário está longe de ser modificado no capo das políticas criminais, prisionais e penitenciárias brasileira.
Desacato – As pesquisas indicam um 70% de reincidência infratora por parte daquelas pessoas que sofreram pena de reclusão. Por que ‘fabricar’ mais presos então? Há razões políticas, culturais, de controle social, para isso?
Daniela Félix – Toda essa complexidade dos controles sociais formais e informais é alimentada pela lógica da “crise de eficiência” das políticas de segurança pública, prisionais e penitenciárias (na criminologia crítica chamamos de Eficentismo penal), ou seja, se há crimes e há impunidade é porque precisamos ser eficientes no seu combate. Nossas políticas voltam-se ao cumprimento de metas, sendo elas cumprimento de mandatos de prisões, medidas cautelares para conter o criminoso que oferece risco à ordem pública, bem como a prolatação de sentença preferencialmente com a condenação em regime fechado.
Temos as leis penais, mas, nunca nos questionamos de que forma produzimos nossas leis. Da mesma forma, não voltamos nossos olhos às estatísticas oficiais produzidas para verificar quais são os crimes que estamos punindo com o rigor da privação da liberdade, bem como a forma com que as penas ou prisões cautelares têm sido executadas. Isso pouco importa, desde que esse “Criminoso” (ou o “Bandido” que a mídia adora dizer, mesmo que erroneamente) esteja imunizado e contido pelos muros das prisões.
Por outro lado, esquecemos que não há pena de morte (direta) e prisão perpétua no Brasil, isso quer dizer que aquele Cidadão que está cumprindo sua pena voltará algum dia ao convívio social e, neste sentido, os resultados estão aí, presentes em nossa realidade.
Se o Estado não cumpre o que promete, ou seja, não (re)socializa, não (re)educa, não garante os direitos humanos mais elementares, como o respeito à dignidade, à alimentação, à não violência de seus acautelados, espera o que deles?
Ainda, se nada é ofertado como aprendizado no tempo em que permanece cerceado de sua liberdade, o que fará após ser solto?
Como disse, os resultados estão aí, reincidência, aumento da violência ou grave ameaça. Trata-se de uma relação de ação e reação muito óbvia.
Desacato – A quem poderia lhe interessar esta proposta: a empresas multinacionais de segurança, construtoras, grupos religiosos, traficantes de drogas e armas, ONGs de lavado de dinheiro?
Daniela Félix – Todos eles e mais um pouco.
Lembro aqui que inclusive para acompanhar este agigantamento do Sistema Prisional e Penitenciário precisaremos de muito cimento e empreiteiras que construam mais e mais vagas, ou seja, todo o sistema econômico amplia seu nicho de mercado.
Temos mais de 550 mil presos no Brasil, acresce-se os 0,06% de adolescentes autores de crimes violentos, já são mais vagas a serem construídas, que se somarão ao enorme déficit divulgado pelo Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN.
Desacato – Por que Brasil se encontra entre os 4 países que mais pune com prisão no Mundo, numa lista que é encabeçada pelos Estados Unidos, a China, o próprio Brasil e a Rússia?
Daniela Félix – A punição e aprisionamento, como já verificado acima, é a resposta mais fácil quando não se quer tratar questões em suas causas, tão somente nas consequências. É uma tendência mundial, mas que por outro lado, se tornou uma grande economia. Nos EUA, por exemplo, a “Indústria do Controle do Crime” (Nils Christie) já era na Década de 1990 a 3ª maior economia, entre geração de trabalho e renda.
Não é diferente no Brasil da atualidade, que já tem uma conhecida agremiação de Deputados e Senadores financiados pela indústria armamentista, popularmente conhecida como “Bancada da Bala”, que tem feito um lobby fortíssimo não só pelo retorno da venda e porte de armas no Brasil, mas principalmente na criminalização de condutas.
Desacato – Qual é a solução para diminuir a ocorrência de infrações por parte do menores de idade?
Daniela Félix – Como dito na primeira pergunta, trata-se de um problema de extrema complexidade e que não há fórmula mágica de solução, se é que existe solução à criminalidade.
Temos, a partir do marco teórico da criminologia crítica – minimalistas e abolicionistas –, que o Direito Penal, o Sistema de Justiça Criminal e o encarceramento não são e nunca serão espaços de solução, ao contrário, sempre serão mecanismos de controle social que tendem a potencializar o problema, principalmente enquanto continuarem a ser mecanismos de contenção destinados às classes pobres e de periferia.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, por sua vez, prevê um sistema de garantias e de proteção à criança desde a sua concepção, protegendo a mãe, a família, o seu nascimento dentro de condições normais, com vistas ao seu desenvolvimento saudável e cercado de todo o aparato estatal, como saúde, educação, lazer, assistência, etc.
Para termos uma resposta a partir da realidade, basta um olhar à nossa localidade e certificar quais são as crianças que crescem e se cercam da proteção integral. Por certo chegaremos mais uma vez à conclusão óbvia de quem tem direitos da infância e adolescência no Brasil são aquelas concebidas nas classes médias e altas. Este “Estado” não alcança as crianças e adolescentes das periferias, via de regra àquelas de baixa ou nenhuma renda. A mão do Estado direcionada a elas é a mesma que já passou por membros de suas famílias ou membros da sua comunidade, que é o braço das políticas de Segurança Pública.
Aí quando olhamos este fato, verificaremos que os atos infracionais em grande medida cometidos por adolescentes não estão focados nos crimes contra a vida, mas sim dentro do contexto da política de drogas e de crimes patrimoniais, verificando com isso que a ideia de redução da maioridade penal não está desembocando na punição de crimes de homicídio, mas em grande medida terá como destinatário os adolescentes que são cooptados pelo narcotráfico, e que a resposta do Estado tem sido o genocídio de parte das nossa população negra e pobre.
Isso quer dizer que enquanto não nos debruçarmos sobre as reais causas do crime, da criminalidade e seu reflexo no contexto micro e macrossociológico, continuaremos a nadar nas águas rasas do poder punitivo, que, como dito, só causará ainda mais dor às mães desses meninos e meninas que historicamente já estão à margem da nossa sociedade.
Nossa saída, urgentemente, é a potencialização do debate da discriminalização das drogas. Ainda, vivemos um momento muito complexo e que não podemos, em hipótese alguma, abrir mão de direitos conquistados na nossa jovem Democracia, dentre elas o direito das crianças e adolescentes.
Entrevista concedida em 9 de junho de 2015.
Foto: Arquivo da entrevistada.