Em livro, pesquisadora da Universidade Federal da Paraíba disseca o discurso que envolve a beleza negra
por Ana Ferraz — CartaCapital
Saartjie, “pequena Sara”, nasceu na África do Sul em 1789. Nunca se soube seu nome de batismo. Com 1,35 de altura e pertencente à etnia Khoisan, considerada a mais antiga estabelecida na parte meridional da África, aos 10 anos ela foi adotada por uma família de agricultores holandeses, os Baartman, de quem herdou o sobrenome e uma vida de servidão e crueldade.
Saartjie pertencia ao povo Hotentote, cujas características físicas tornaram-na objeto de exibição em circos, feiras, teatros ou onde houvesse um bando de curiosos ávidos por conhecer uma “selvagem”. Como outros representantes de seu povo, Saartjie tinha lábios vaginais hipertrofiados e acúmulo de gordura nas nádegas. A Vênus Hotentote, como passou à posteridade, era exibida nua numa jaula, acorrentada para acentuar seu suposto caráter animalesco.
No recém-lançado História da Beleza Negra no Brasil – Discursos, Corpos e Práticas (Edufscar), Amanda Braga, professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba, analisa o discurso que envolve a questão da beleza negra (desenvolvida em capítulos como Beleza Castigada, Beleza Moral e Beleza Multiplicada), dos primórdios da formação do País até os dias atuais.
Em entrevista a CartaCapital, a pesquisadora fala da truculência científica do colonialismo, do uso da mulher coisificada na publicidade e como as decantadas “popuzudas” remetem a Saartjie Baartman.
CartaCapital: De que modo Saartjie Baartman representa a visão que a sociedade escravocrata tinha em relação aos negros?
Amanda Braga: Saartjie é um grande ícone da ferocidade do colonialismo científico. No decorrer de todo o século XIX, assistiu-se à exibição de africanos em feiras, teatros, circos, exposições. Aos olhos curiosos, além dos truques que faziam, por exemplo, corpos decapitados falarem, estavam expostas também as tantas “deformações” humanas: crianças unidas pelo mesmo tronco, homem-elefante, mulher-barbada, criança microcéfala, espécies monstruosas armazenadas em frascos de vidro, anões, indígenas, orientais. Falava-se em um zoo humano.
O interessante a se perceber aqui é que a promoção desses espetáculos estava intimamente relacionada às teorias eugenistas da época: ao mesmo tempo em que eram oferecidas aos olhos europeus, essas pessoas eram também tomadas enquanto objeto de estudo às teorias médicas, que tinham por finalidade a comprovação da suposta superioridade da raça branca. Marcavam-se, então, os títulos de selvagem e civilizado: ao primeiro, grotesco em forma e gestos, cabia a exibição de sua monstruosidade para deleite e curiosidade do segundo.Nesse palco, o hotentote – povo a que pertencia Saartjie – será a prova final do parentesco entre o animal, o monstro e o selvagem. Saartjie fazia suas apresentações em uma jaula, presa a uma corrente, apenas com a vagina coberta, caminhava de quatro.
A presença da jaula funcionava na ratificação de seu caráter supostamente perigoso, selvagem e incivilizado, diretamente relacionado, à época, à crença de uma sexualidade ameaçadora, posto que irreprimível, cujo símbolo maior era uma espécie de “avental frontal”, ou “avental hotentote”, que denotava a hipertrofia de seus lábios vaginais, bem como a esteatopigia, o que lhe conferia um acúmulo de gordura nas nádegas. São esses símbolos que vão atribuir a Saartjie a imagem de uma mulher hipersexual, cujo apetite sexual é incontrolado e cuja natureza é puramente instintiva.
CC: Mesmo depois de morta, aos 26 anos, essa Vênus negra teve o corpo vilipendiado aos ser distribuído por frascos de formol e exibido em museu. Foi preciso um apelo de Nelson Mandela para que Saartjie finalmente tivesse seus restos mortais deixados em paz. A senhora pode falar um pouco mais sobre este caso tão simbólico e aterrador?
AB: Depois de sua morte, Saartjie continuou a se apresentar, dessa vez em frascos de formol que ilustravam as prateleiras do Musée. Apenas em 2002, por reivindicação de Nelson Mandela, seus órgãos, bem como uma caixa com sua ossada, foram devolvidos à África do Sul.
Carregados de história, racismo e da truculência científica do colonialismo, aqueles ossos, pedaços de cérebro e vagina receberam as honras de um chefe de Estado e tiveram seu sepultamento sob salvas de canhão e um discurso inflamado proferido por Nelson Mandela acerca da herança e da identidade africana.
Em um filme lançado em 2010, dirigido por Abdellatif Kechiche e intitulado Venus Noire, é possível ter acesso a cenas da época. Saartjie é, hoje, um dos maiores ícones da afirmação da identidade africana. A volta de seus restos mortais à sua terra natal, depois de tantos anos “aprisionada” na Europa, versa bem sobre essa dimensão.
Em termos de Brasil, é possível encontrar, mais precisamente em pinturas, depoimentos de viajantes e anúncios de jornal do século XIX, inúmeras referências a negras de origem hotentote. Há nesses documentos uma série de expressões que depõem sua presença em nosso país: bundas grandes, nádegas salientes, empinadas para trás, nádegas gordas,traseiros arrebitados, entre outras.
Aqui, aos sentidos oferecidos ao corpo hotentote, seguirão, ainda, aqueles apontados pelo europeu, repousando entre a deformação e a estética sexual, esta última com mais força, recaindo no papel da prostituição. Esse papel está em consonância, por exemplo, com a aquarela de Debret, intitulada Les Vénus Noires de Rio de Janeiro, produzida, provavelmente, durante a terceira década do século XIX.
Para concluir, se pensamos no momento atual, eu diria que as marcas de corpos esteatopígicos inundam nosso imaginário, foram conservadas, ainda que em outra dimensão, pela nossa cultura nacional. Trata-se de corpos que são iguais, mas são distintos: iguais na forma, distintos no modo como significam.
Prova dessa ressignificação é o modo como, atualmente, a cultura brasileira reverbera sentidos acerca de tantos e tantos quadris. Ora, estamos num país onde o corpo da mulher é comparado às formas do violão: seios comedidos, cintura fina, quadril farto; este último enquadrado sob o rótulo de preferência nacional, expressão que serviria de título, ainda, ao documentário produzido pela GNT em 2010.
Não suficiente, temos concursos especializados em encontrar o mais bonito bumbum do país – Miss Bumbum Brasil –, ou, ainda, uma banda de funk feminina chamada Gaiola das Popozudas. O que entendemos por popozuda? Mais que isso, sobre a gaiola... algum resquício da jaula em que se apresentava Saartjie Baartman?
CC: Gostaria que a senhora comentasse alguns dos anúncios que mostram os conflitos e o modo como a sociedade enxergava a mulher afrodescendente no passado. Como na propaganda do ‘Cabelisador’, produto que prometia acabar com o cabelo crespo sem dor, e do concurso Boneca de Pixe, que falava em “adestrar a mulher de cor para a vida social das classes mais elevadas da nossa sociedade”. Havia ainda um concurso de beleza negra denominado Miss Progresso, que fazia a exaltação não do corpo das candidatas, mas de seu caráter moral. Como se deu a construção da beleza e da imagem da mulher negra nessa época?
AB: Os conceitos de beleza são construções históricas. Aquilo que acreditamos ser natural, aquilo que tomamos como um dado, são, na verdade, produtos lapidados pela história. E isto vale não apenas para os conceitos de beleza, mas para nossos costumes, para nosso comportamento, para o modo como pensamos, o modo como enxergamos o outro e a nós mesmos.
Aprendemos com Michel Foucault que não é possível pensar qualquer coisa a qualquer tempo: estamos sempre a espreitar o nosso momento histórico através de um binóculo. De tempos em tempos, sob a pressão de novos acontecimentos, trocamos o binóculo, permanecendo com este também por um bom tempo. Daí a necessidade de procurar entender nossos objetos de estudo a partir de um olhar que não esteja tão preso aos dias atuais. É preciso consultar o tempo histórico para entender de que modo nos tornamos o que somos.
Mas eu comecei a falar sobre isso justamente para dizer sobre o conceito de beleza negra no momento em que eram promovidos os concursos aos quais você faz referência: o Miss Progresso e a Boneca de Pixe. Todos esses concursos – bem como a “vigilância” exercida pelas associações recreativas afrobrasileiras sobre o comportamento da população negra recentemente “liberta” – estavam ainda ligados aos discursos que haviam emergido em séculos anteriores, de modo que só é possível entendê-los mediante um olhar retroativo.
Segundo essas associações, era preciso “reeducar a raça”, subtrair-lhe os estereótipos consagrados num contexto escravocrata: a preguiça, a deseducação, o “vício da cachaça”. O que entrava em jogo ali era um apelo à moral e aos bons costumes. Os concursos de beleza promovidos para e pela população negra são símbolos desta “contra imagem”, auxiliando na construção de um conceito de beleza negra na medida em que se apresentavam como uma resposta à imagem da mulata promíscua que havia nascido no período anterior.
O que se tem nesse momento é um conceito de beleza construído nos ditames da moral: o objetivo era premiar – e incentivar – a senhorinha que melhor se enquadrasse aos “códigos de civilidade” ditados pela época. A questão do casamento é ícone deste conceito de beleza moralizada. Trata-se de uma concepção – da qual somos, de algum modo, herdeiros – que deposita na mulher a responsabilidade pelo casamento: cabia a ela um comportamento resguardado, digno da constituição de uma família.
Afinal, uma conduta sexual que se anunciava em excesso poderia até “agradar determinados homens, mas a maioria hão de parecer pouco indicadas para mães de seus filhos, motivo por que algumas senhoritas acham noivos mas não maridos”, conforme proclamava o artigo Breviário da Mulher (A voz da raça, 06/ 1936). Assim, era preciso cobrir-se com vergonha e recato, a fim de ressignificar a imagem da mulata fácil – para usar o termo de Gilberto Freyre – que havia emergido em séculos anteriores.
Para concluir, seria preciso dizer, no entanto, que essa tentativa enfrentou resistência, principalmente se pensamos no cancioneiro de nossa MPB. No mesmo momento em que concursos de beleza premiavam a senhorinha mais recatada, mais adaptada aos ditames morais e matrimoniais, algumas produções musicais do período ratificariam a continuidade de um discurso sobre um corpo negro exacerbadamente sensual, o que faz parecer sintomática essa necessidade de fazer frente à imagem de mulata fácil (através dos concursos de beleza).
Exemplo dessa continuidade será, por exemplo, a canção de Alberto de Castro Simões da Silva (Bororó), que, ao final daquela década de 30, cantava os beijos molhados e escandalizados de uma morena da cor do pecado: Esse corpo moreno cheiroso e gostoso que você tem/ É um corpo delgado da cor do pecado/ Que faz tão bem/ Esse beijo molhado, escandalizado que você me deu/ Tem sabor diferente que a boca da gente/ Jamais esqueceu/ E quando você me responde umas coisas com graça/ A vergonha se esconde/ Porque se revela a maldade da raça/ Esse cheiro de mato tem cheiro de fato/ Saudade, tristeza, essa simples beleza/ Esse corpo moreno, morena enlouquece/ Eu não sei bem por que/ Só sinto na vida o que vem de você/ Ai….Ai….
CC: Em termos de discurso (a expressão mulata usada então pela imprensa é substituída por negra), o que significa a eleição de Deise Nunes como Miss Brasil em 1986?
AB: Seria preciso entender, a princípio, a inversão que a nossa cultura propõe ao termo mulato. Em franca oposição ao discurso advindo das teorias eugenistas do século XIX, segundo as quais a miscigenação deveria ser combatida enquanto principal responsável pela possível degeneração e pelo consequente extermínio da raça humana – de onde decorre, inclusive, o sentido filológico atribuído ao termo mulato: referente ao animal resultante do cruzamento entre tipos genéticos distintos e, portanto, incapaz de reproduzir-se, dada sua hibridez –, o que a cultura nacional fará é atribuir valor positivo ao mulato, ratificando uma dada glorificação da mulata como símbolo do que de melhor poderia ser concebido a partir da união entre negros, brancos e índios. Trata-se de uma “cristalização perfeita”, para usar o termo de Roberto DaMatta.
Não por acaso, até a década de 70, é possível encontrar em nosso cancioneiro uma diversidade de letras dedicadas à exaltação dessa mulata. Em 1947, Braguinha cantava: Se branca é branca e preta é preta, a mulata é a tal, é a tal! Em 1959, era a vez de João Gilberto: Olha, essa mulata quando samba/ É luxo só/ Quando todo seu corpo se embalança/ É luxo só/ Tem um não sei quê/ Que faz a confusão/ O que ela não tem meu Deus/ É compaixão.
Em 1960, Elizeth Cardoso, em composição de Ataulfo Alves, fazia referência a uma mulata assanhada/ Que passa com graça/ Fazendo pirraça/ Fingindo inocente/ Tirando o sossego da gente! Já em 1979, a mesma Elizeth Cardoso, em composição de João Nogueira, bradava a malícia de uma mulata faceira: Ah, Olha quem está chegando/ é a mulata faceira/ Que vem na cadência do samba/ empunhando a bandeira/ Vem com o seu valor/ que é só pra mostrar como é/ a malícia da cor, a ginga/ e o dengo da mulher.
Nesse sentido, a eleição de Deise Nunes como Miss Brasil, em 1986, vem coroar toda a exaltação feita até ali à mulher mulata, ela é reflexo dos discursos produzidos ao longo do século XX acerca dessa glorificação. Ao mesmo tempo, a eleição de Deise aponta também para a retomada da problematização desses discursos numa instância estatal, o que culminaria com a volta do termo negro ao cenário político, embalado pela redemocratização do país, bem como pela fundação do Movimento Negro Unificado.
Era um momento de efervescência que atingia não apenas o contexto interno, de redemocratização do país, mas também por um contexto externo: o desenvolvimento de um nacionalismo negro nos Estados Unidos, fundado a partir do movimento dos negros americanos em prol dos direitos civis, além da luta de libertação dos povos da África Meridional (Moçambique, Angola, África do Sul), bem como do movimento das mulheres, que abria portas, então, à militância de mulheres negras.
A eleição de Deise Nunes ratificava então, no cenário nacional, os discursos de africanidade que então voltavam a ganhar espaço, e que desembocariam, mais tarde, no advento das políticas afirmativas, na década de 90.
CC: Como a senhora avalia a publicidade da Cerveja Mulata?
AB: O que eu busco, enquanto pesquisadora, não é atribuir um juízo de valor a uma dada publicidade. O que eu busco é compreender o modo como ela produz sentido contemporaneamente, a partir dos discursos que vieram à tona em períodos históricos anteriores. É essa dimensão que sustenta sua emergência. No que se refere especificamente à publicidade da cerveja Mulata, assim como várias outras que dizem respeito à mulher negra atualmente, ela está no limite entre a ressignificação de memórias escravocratas e sua manutenção.
Valorizar o corpo e a estética negra a partir de um viés positivo, que não esteja preso apenas às descrições de um corpo moreno, cheiroso e gostoso é, sem dúvida, o grande desafio que nosso tempo tem enfrentado; e, no entanto, o que eu vejo, na publicidade da cerveja Mulata, é a valorização de uma memória que traz à tona tanto a imagem da escrava doméstica, quanto a imagem da escrava sexual, esta última mais fortemente.
Basta olhar com algum cuidado para os cartões publicitários produzidos pelo produto em questão. Me impressiona o modo como o corpo da mulher negra aparece ali enredado por um discurso que parte da imagem da escrava doméstica ou da escrava sexual e alcança, hoje, sua exacerbação, principalmente se pensamos na (con)fusão instaurada entre o nome da cerveja e a mulher estampada em seu rótulo: Quem é a mulata: a mulher ou a cerveja? Quem é a gostosa, a mistura perfeita, como diz o cartão publicitário? Qual o produto oferecido à venda? Qual o produto a ser consumido?
Naturalmente, é de fácil percepção o modo como os atuais anúncios de cerveja fazem uso do corpo da mulher em seu material publicitário, fazendo-os confundir com o produto oferecido para consumo. Mas as memórias que aqui são atualizadas dizem respeito, especificamente, à esfera racial de alguns desses anúncios, o que acaba por trazer à tona a memória de um sistema escravocrata, na medida em que trabalha mais em sua manutenção e menos em sua ressignificação.